quarta-feira, 31 de maio de 2017

cacos e outros pedaços

Do Cassionei Petry li o romance "Os óculos de Paula", de 2014, e os contos reunidos em "Arranhões e outras feridas", de 2012. Recentemente ele lançou uma nova coleção de contos curtos (só dois têm mais que oito laudas, vários não mais que cinco e os menores não mais que uma ou duas). Já registrei aqui o entusiasmo do Cassionei pelo ofício da escrita, seu amor à literatura, sua disciplina, ambição e projetos (é possível acompanhar sua produção literária no blog "Cassionei lê e escreve"). "Cacos e outros pedaços" reúne vinte histórias, que ele classificou em três conjuntos: Eles em pedaços, Eu em pedaços, Vidas em pedaços. São histórias que flertam com o surrealismo, com o fantástico, com o humor contido, com o registro de um estranhamento ou inadequação. Parecem exercícios, sempre uma cousa boa. À experiência pessoal Cassionei acrescenta invenção e técnica, construindo narrativas quase sempre interessantes, poderosas. Várias delas envolvem um  protagonista que precisa enfrentar fantasmas do passado, fazer balanço de pretéritas escolhas, reagir rapidamente ao acaso. Os contos mais extensos são os que mais gostei: "Gabriel", "Mikaela" e "Lá em cima". São histórias que tratam literariamente temas arquetípicos, seja a brutalidade do processo de socialização que todos experimentamos na infância, ou o dilema moral intrínseco das convenções sociais, num mundo povoado por tribunais de correção política ou ainda a imaginação infantil como antídoto para o medo, como encontramos em todos os contos de fada. Vamos a ver o que esse sujeito inquieto nos apresentará em sua próxima fornada (Ele vive escrevendo que abandonará a literatura, mas eu duvido).
[início - fim: 31/03/2017]
"Cacos e outros pedaços", Cassionei Niches Petry, Guaratinguetá: Editora Penalux, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 92 págs., ISBN: 978-85-5833-152-4

sábado, 27 de maio de 2017

uma sensação estranha

Há mais de dez anos fiz uma viagem acompanhado de um pesado volume de Orhan Pamuk. Era "Meu nome é Vermelho", que não está registrado aqui, pois o li em 2004. À minha frente em uma fila para despachar bagagens num aeroporto estava um casal de turcos. Curiosos, eles perguntaram sobre minhas impressões do livro e vaticinaram ali mesmo que um dia ele receberia o Nobel, o que de fato aconteceu, apenas dois anos depois, em 2006. Com o tempo li "Neve", "O romancista ingênuo e o sentimental" e "O castelo branco", mas deixei passar vários outros livros dele, como "Negro", "Istambul", "O museu da inocência". Recentemente foi lançado esse "Uma sensação estranha". Talvez em função das notícias sobre os desastres da guerra da Síria e do papel dos turcos no conflito achei que era hora de voltar ao Pamuk. Trata-se de um romance longo, de quase 600 páginas, e que percorre um período de tempo também extenso, mais de quarenta anos, de 1969 a 2012. O protagonista é Mevlut, um sujeito industrioso, que experimentará várias atividades e ofícios, mas que se identificará sempre como um zeloso vendedor ambulante de boza, uma bebida popular, à base de cereais, açúcar e água, levemente alcoólica. Pamuk conta o trivial da vida deste sujeito, desde a juventude em uma aldeia, a imigração para a capital Istambul com seu pai, os conflitos familiares, serviço militar, seu casamento, nascimento dos filhos, viuvez ainda antes da maturidade, o nascimento dos netos e a velhice. Mas o que realmente surpreende no livro são os relatos sobre a complexidade da Turquia, sua ocidentalização abrupta, o choque do velho e do novo da sociedade turca, as regras de conduta de seu povo (no casamento, nas questões de honra, nos negócios, na política) e sua práticas morais e tradicionais (a violência e o machismo, mas também a musicalidade e o senso religioso). Em muitos momentos lembramos do Brasil, do quão labiríntico e complicado é um país, qualquer país, seja os "em eterno desenvolvimento", como Turquia e Brasil, seja um país rico ou com menor grau de desigualdade social. Racionalizações sociológicas à parte, no fundo o livro trata de uma história de amor, é um longo poema de amor a vida, de como um pecado original condiciona os destinos de um grupo de pessoas. Em "Uma sensação estranha" a fusão dos registros históricos dos últimos anos da Turquia à narrativa é notável. A inventividade de Pamuk na condução das vozes narrativas é sempre uma alegria de se ler. O sujeito parece tornar fácil uma delicada carpintaria literária. Bom livro. Vale. 
[início: 25/04/2017 - fim: 06/05/2017]
"Uma sensação estranha", Orhan Pamuk, tradução de Luciano Vieira Machado, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 589 págs., ISBN: 978-85-359-2869-3 [edição original: Kafamda Bir Tuhaflik (Istanbul: Yapi Kredi Yayinlari) 2015]

quinta-feira, 25 de maio de 2017

mitologia nórdica

Apesar de conhecer a série Sandman nunca li sistematicamente livros de Neil Gaiman. Neste blog só há um registro de leitura de cousas dele, o interessante "Objetos frágeis", de 2008. Recentemente ele publicou "Mitologia nórdica", uma leitura bem particular das sagas e dos mitos que, segundo ele mesmo, numa curta introdução, diz terem inspirado muito suas graphic novels ao longo da carreira. Assim como ele e eu, boa parte dos garotos nascidos no início dos anos 1960 tiveram seu primeiro contato com Asgard e seus habitantes por meio das revistas em quadrinhos do Poderoso Thor assinadas por Jack Kirby e Stan Lee. Gaiman, agora já com quase sessenta anos retomou esta paixão da infância, pesquisou as fontes primárias dos mitos, os Edda, textos escritos no início do século XIII, leu vários livros clássicos de interpretação, dentre eles os de Roger Lancelyn Green e Kevin Crossley-Holland. Sua linguagem é simples, direta, envolvente. Ele fala, descreve e reinventa os personagens principais (Odin, Thor, Loki), diz algo sobre a origem dos deuses e dos mundos, do entrelaçamento entre os mitos e a natureza, dos ciclos do herói e aventuras que os deuses nórdicos experimentaram, do Ragnarök inevitável. Lembrei-me do ritmo dos livros de Gustav Schwab sobre mitologia grega, que li ainda garoto na biblioteca pública de São Bernardo, já há tantos anos. Gaiman sabe estimular o leitor a procurar entender melhor as histórias, a ler outros livros e fontes, a interessar-se pelo tema (um tolo politicamente correto brasileiro diria apropriar-se dele, mas eu prefiro o velho e bom clichê que é mergulhar nos mitos e nos livros de mitologia). Como bem disse um grande amigo, o Robson Gonçalves: "Gaiman nos ilumina com informações e explicações dos termos, dos hábitos e da formação daquela cultura. Os 15 contos do livro abarcam o dia-a-dia, as festas, as lutas, as conquistas dos deuses escandinavos. Mas também seus temores, suas traições e sua crença num final de mundo absoluto. O fascínio da escrita e das estórias contadas por Gaiman, tornam ameno e bem palatável aquele cenário mítico". Verdade, don Robson, verdade. Grande livro.
[início: 20/04/2017 - fim: 21/04/2017]
"Mitologia nórdica", Neil Gaiman, tradução de Edmundo Barreiros, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 1a. edição (2017), capa-dura 14x21,5 cm., 288 págs., ISBN: 978-85-510-0128-8 [edição original: Norse Mythology (New York: W.W. Norton and Company) 2017]

segunda-feira, 22 de maio de 2017

a sede das pedras

São nove contos curtos, muito bem escritos. Não é fácil dizer se Cassio Pantaleoni  destaca-se pelo apuro no uso da linguagem, pela inventividade das histórias que cria ou ainda pelas sutis reflexões que provoca. São histórias em que um narrador perscruta as razões ou o comportamento de indivíduos raros: uma mulher que parece provocar a morte de seus pretendentes; uma garota que convive nas férias com uma prima que enlouquece; uma mulher que almeja sobretudo a maternidade; uma industriosa migrante italiana recém chegada à Argentina; um garoto que é mal cantor e ainda pior piadista; um mendigo que grita na rua; um sujeito que olha o mar procurando consolo e memórias; um garoto que conta sobre um grupo felliniano que sonha com a expectativa do repasto de um bom bifes; o relato amalucado de um adolescente sobre uma lenda urbana, uma violenta competição entre garotas. Ao leitor Pantaleoni, ou ainda, esse narrador que é tão bom juiz de caráter quanto esteta, parece oferecer a oportunidade de preencher vazios, ligar pontos, completar o antes ou o depois das histórias, nunca esgotando apenas com as palavras cada tema e possibilidades. Muito bom.
[início: 21/04/2017 - fim: 22/04/2017]
"A sede das pedras", Cassio Pantaleoni, Porto Alegre: Editora 8Inverso, 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-62696-18-3

terça-feira, 16 de maio de 2017

stempenyu: um romance judaico

Li "Stempenyu" enquanto velava meu pai num hospital, exatamente num 23 de abril, dia do livro, dia de se lembrar de Shakespeare e Cervantes. Meu pai se recuperou bem de sua cirurgia e ambos continuamos a viver para lermos mais um tanto. Escrito originalmente em iídiche, no final do século XIX, essa novela de Sholem Aleichem fixa em palavras algo da vida dos judeus asquenazes nos "Shtetlech", bairros ou cidadezinhas da Europa oriental, no interior do Império Russo, cuja população era predominantemente judaica. Stempenyu é um violinista virtuoso, cuja música enfeitiça que a ouve. Músico principal de uma orquestra, viaja de vilarejo em vilarejo para tocar em festas religiosas e casamentos. É um sujeito sedutor, acostumado a provocar paixão nas garotas da região, sem nunca se envolver completamente com elas. A história não é contada cronologicamente. Aos poucos ele se lembra de um ou outro detalhe das aventuras ora verossímeis ora fantasiosas de seus personagens. Sendo assim, Aleichem antecipa ao leitor alguns sucessos, para logo voltar no tempo e justificar as razões dos protagonistas e os caminhos que os levaram até aquele ponto da narrativa. O tom é bem humorado, mas com o toque característico do melhor humor judaico, ou seja, que antes ri de si mesmo, perscrutando bem suas próprias limitações e defeitos, ao invés de ridicularizar um oponente ou interlocutor. O destino de Stempenyu será definido por duas mulheres, Rochalle e Freidel, mas não darei nenhum detalhe aqui. Ao longo do texto o narrador da história se dirige pontualmente ao leitor advertindo-o dos porquês de suas escolhas, sobre os sucessos da trama, as motivações dos personagens. Cabotino, diz ao leitor que seu romance não é interessante, por não conter cenas de ação ou descrever acontecimentos extraordinários, ou por não abusar do romantismo ou do melodrama. Mas o que Sholem Aleichem cria é algo poderoso, que faz o leitor descansar da loucura do cotidiano e sonhar. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing, das quais já li: "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros", "Michael Kohlhass", "O véu erguido", "O homem que corrompeu Hadleyburg" e "O homem que queria ser rei" e "A pedra de toque"). Vale.
[início: 23/04/2017 - fim: 24/04/2017]
"Stempenyu: Um romance judaico", Scholem Aleichem, tradução de Adriana de Oliveira, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 216 págs., ISBN: 978-85-61578-36-7 [edição original: (St. Petersburg: Folks-bibliotek) 1888 e (London: Methuen and Co.) 1913]

sábado, 13 de maio de 2017

um pouco mais ao sul

"Um pouco mais ao sul" não é para leitores sensíveis, românticos em busca de entretenimento fácil, finais felizes, seres acostumados a narrativas descartáveis. Luiz Rebinski povoa seu romance com personagens sujos, amalucados, drogados, hiper sexualizados, em transe, visceralmente comprometidos com uma única causa, a de se conhecerem, desvendarem seu passado, entenderem-se uns aos outros. O narrador alterna duas histórias que em algum ponto se fundem. Primeiro ele nos apresenta dois irmãos, Vlad e Nóia, perseguidos por desconhecidos pelos subterrâneos e esgoto do Rio Ivo, em uma Curitiba fria e sufocante. Posteriormente o leitor é apresentado à Inácio, um terceiro irmão, que junta-se aos dois numa alucinante fuga, Paraná profundo adentro. A segunda história é de um antepassado deles, mais precisamente, do avô polaco deles, Bazyli, que radicou-se no Brasil após muitos sucessos, cruzando o Atlântico com um amigo, Volkov, e sua amante, a Gorda. O leitor é levado a rir dos desastres, tiroteios, bacanais, diálogos engraçados, enfim, do sarcasmo e inusitado da cousa toda. Com sua alegoria, repleta de citações cinematográficas e ricos registros linguísticos, Rebinski alcança provocar reflexões interessantes sobre como o homem contemporâneo confronta sua história de vida, equilibrando realidade e sonhos, planos e a inevitabilidade do acaso, o conforto do convencional e os perigos daquilo que é intuitivo, vivo. A ritmo do livro lembra muito "Medo e delírio em Las Vegas", de Hunter Thompson, o episódio "Circe", no Ulysses, de James Joyce e o "B*****", de Luciano Bittencourt. Divertido. 
[início: 07/03/2017 - fim: 25/04/2017]
"Um pouco mais ao sul", Luiz Rebinski, Curitiba/PR: Edições, 1a. edição (2016), 13x19 cm., 214 págs., ISBN: 978-85-917171-3-2

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Arte Impressa

O Grupo de Pesquisa CNPq "Arte Impressa" foi criado em 2012 por Helga Correa, artista plástica vinculada ao Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria. Ela também é professora do Curso de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Artes, ambos sediados na Universidade Federal de Santa Maria. Esse grupo de pesquisa desenvolve trabalhos nos quais busca expandir o conceito de construção reflexiva usando, entre outros modos, o formato livro. As linhas de pesquisa estão ligadas sobretudo a Gravura Contemporânea e a relação entre a multiplicidade da imagem e os processos gráficos de impressão, mas há também trabalhos associados a várias outras formas de expressão. Nas palavras de Helga: "A partir de diferentes abordagens formais,  o grupo pretende mostrar a inesgotável capacidade da arte em provocar reflexões, sentimentos, propiciar novos questionamentos e leituras sobre temas da realidade atual". Desde 2012 passaram pelo grupo diversos artistas/estudantes. Eles se envolveram em mais de uma dezena de exposições individuais, além da produzirem e divulgarem comunicações acadêmicas ligadas a seus cursos de graduação ou de pós-graduação. Coletivamente o grupo criou as exposições "Bloomsday 2015", "Livro Interferido", "Livro dos Artistas I", "Livro dos Artistas II", "Livros Arte e Bibliotecas do século XXI" e "Livro Interferido II", esse último ganhador do Prêmio Açorianos de Artes Plásticas 2016, na categoria “Destaque em Projeto Alternativo de Produção Plástica”. No início deste maio de 2017 eles publicaram uma revista com o registro da produção mais recente do grupo. Trata-se de um registro invulgar, de grande impacto visual, um verdadeiro e múltiplo livro arte. A revista inclui uma curta apresentação do grupo e de sua história, assinada por Helga Correa, além de um texto assinado por Bianca Knaak, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também participante do grupo Arte Impressa, onde ela fala das bibliotecas como local de recepção da arte, bibliotecas como o lugar de conservação de acervos artísticos. Os dois textos verbalizam conceitos e propostas do grupo, mas os trabalhos incluídos nele sabem se defender sozinhos. Afinal, a principal idéia da revista, sua maior ambição, vamos dizer assim, é a de apresentar as propostas plásticas dos artistas do grupo para além do momento das exposições, para além do momento de contato do público com os trabalhos originais. Quando um eventual sujeito participa das exposições e visualiza a materialidade dos objetos a experiência é única. Já o registro bidimensional que encontramos na revista é uma festa para os sentidos. É algo que, tornando-se perene, regular, como parece ser a proposta do grupo, proporcionará a um número muito maior de pessoas a chance de conhecer uma poderosa e rica expressão artística contemporânea do Brasil. Em tempo: É possível entrar em contato com o grupo e comprar a revista pelo e-mail helgacor@gmail.com . E caso você esteja Santa Maria hoje, 12/5/2017, participe do lançamento desta revista, a partir das 17 horas, na Feira do Livro de Santa Maria. Se a idéia  é  conhecer arte original, de grande qualidade e apuro técnico, você não encontrará cousa melhor na Feira com a qual se deliciar. Bom divertimento.
[início - fim: 12/05/2017]
"Grupo de Pesquisa ARTE IMPRESSA", Helga Correa e Marcos Souto (editores), trabalhos de Raone Somavilla, Kekky Júlia Pfüller, Antonio Junior, Laura Lena, Stéfani Agostini, Viviane Tybusch, Jane Zofoli, Marcos Souto, Aracy Colvero, Edineia Peres, Carolina PK, Abrahão Quadros e Bruna Berger, Santa Maria, Edição do Autor 2017, brochura 14x21, 38 págs, sem ISBN.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

homenagem a barcelona

Admirado com o acabamento da boa edição que "As ilhas gregas" de Lawrence Dürrell ganhou da portuguesa Relógio D'água resolvi comprar outros volumes da coleção de livros de viagens deles. "Homenagem a Barcelona" é de Colm Tóibín, premiado escritor irlandês. Ele viveu em Barcelona por muitos anos e aprendeu a amar a cidade. Isso costuma acontecer após algum tempo, mas não com todo mundo, nem o tempo todo, pois não é fácil, como parece ao experimentarmos os primeiros deslumbramentos, entender as sutilezas e matizes do caráter dos catalães. Ele viveu em Barcelona quase ininterruptamente entre 1975 e 1978, mantendo-se com aulas de inglês e morando em apartamentos baratos. Depois voltou à cidade, em um ano sabático, já escritor experimentado e com algum dinheiro, em 1988, justamente por encomenda para escrever esse livro, antecipando a curiosidade dos leitores europeus com os sucessos que viriam com a Olimpíada de 1992. O livro é antigo, de 1990, foi parcialmente reescrito em 2002, mas muito daquilo que Tóibín registra é perene, já que nem de longe se trata de um livro para fins turísticos. Gostei particularmente de suas reflexões sobre história e política, sobretudo sobre a guerra civil espanhola, pois ele rapidamente, e com clareza, explica a complexidade das forças políticas e interesses cruzados experimentados pelos cidadãos, seja sobre o período da guerra civil, seja sobre o período que se segue a redemocratização, com a morte de Franco. Tóibín é muito feliz em sua técnica de utilizar um artista plástico, poeta, músico ou arquiteto (Picasso, Miró, Dalí, Casals, Lorca, Maragall, Cerdà, Montaner, Gaudí e Cadafalch) para com ele trilhar uma parte de Barcelona, um parque ou edificação, um período de tempo da história da cidade ou o interior profundo da Catalunha. Seus comentários sobre a língua catalã e as relações sociais dos catalães me pareceram menos brilhantes que os registros políticos e/ou históricos. Para entender algo sobre arte e arquitetura ainda prefiro o detalhamento que se encontra no livro de Robert Hughes, mas esse livro de Tóibín tem algo o Hughes não tem, parece ser mais familiar, quente, menos crítico, definitivo e frio. São experiências de leitura muito diferentes. Escritor talentoso como é, ele enfeitiça o leitor com sua prosa envolvente, criando imagens incríveis das festas, danças, explosões de fogos, dos bares e restaurantes, das mitologias antigas que brotam do chão e das pedras da cidade. Sua descrição das festas da paixão e de Páscoa em um pequeno vilarejo próximo a Girona, dos passeios solitários pela Costa Brava e da aglomeração na Diada (festa nacional da Catalunha, 11 de setembro) são impressionantes. Tóibín contrasta a cidade que conheceu em 1975 com aquela de 1988. Saudosista, faz coro com seus amigos catalães que reclamam dos turistas mal educados, daqueles que não apoiam a causa da independência catalã, dos imigrantes que não praticam o catalão e suas tradições sagradas. Não consigo imaginar o que ele diria da Barcelona de 2017, meca do turismo de massa, hiper cosmopolita. Cabe registrar que o título do livro faz homenagem ao escritor George Orwell, que lutou na guerra civil espanhola e escreveu sobre ela, em seu "Homenagem a Catalunha", de 1938. Vale.
[início: 09/04/2017 -  fim: 18/04/2017]
"Homenagem a Barcelona", Colm Tóibín, tradução de Ana Falcão Bastos, Lisboa: Relógio D'Água Editores (coleção Viagens), 1a. edição (2016), brochura 13x20 cm., 274 págs., ISBN: 978-989-641-640-0 [edição original: Homage to Barcelona (New York: Simon and Schuster Ltd), 1990]

domingo, 7 de maio de 2017

a pedra de toque

Nunca havia lido nada de Edith Wharton, mas sei agora que já conhecia algo dela, a história "A idade da inocência", que vi filmada no início dos anos 1990. "A pedra de toque" é seu primeiro romance, publicado em 1890, mas vou classificá-lo aqui como novela, pois esta coleção da Grua assim o definiu. Trata-se de uma história moral, no sentido em que o leitor é apresentado a um dilema moral sobre o qual deve refletir e ponderar como se estivesse na situação dos protagonistas do livro. Quando ainda bastante jovem, um medíocre advogado do interior nova-iorquino (do estado, não da cidade), Stephen Glennard, flertou com uma mulher mais velha, recentemente enviuvada, Margaret Aubyn. Ela emigra para a Inglaterra e se torna um escritora de sucesso. Durante todo o tempo em que viveu fora dos Estados Unidos enviou cartas para Stephen, cartas de um amor nunca correspondido. O tempo passa, Margaret morre, Stepehn está enamorado de um jovem, Alexa Trent, mas não tem os recursos necessários para se casar. Stephen fica sabendo por meio de um amigo que os biógrafos de Margaret pagariam um bom dinheiro por informações referentes ao período em que era desconhecida do grande público, quando ainda vivia nos Estados Unidos. O livro descreve muito bem o dilema e suas consequências, sobretudo pressão psicológica e culpa que a decisão de utilizar-se destas cartas, traindo a memória de Margaret para no fundo apenas proporcionar algum conforto material a Alexa, é um um subterfúgio sórdido demais para tolerado. Muito interessante. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing, das quais já li: "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros", "Michael Kohlhass", "O véu erguido", "O homem que corrompeu Hadleyburg" e "O homem que queria ser rei"). 
[início: 30/03/2017 - fim: 31/03/2017]
"A pedra de toque", Edith Wharton, tradução de Bernardo Ajzenberg, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2015), brochura 13x18 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-61578-52-7 [edição original: The touchstone / (New York: Charles Scribner's Sons) 1900]

quinta-feira, 4 de maio de 2017

muerte en mar abierto

Neste volume estão reunidos oito curtos contos policiais, histórias que eventualmente poderiam render um dos romances típicos da série Montalbano, mas que Andrea Camilleri optou por fixar em causos dos primeiros anos de um jovem comissário, no início dos anos 1980. Todos os personagens que gravitam o universo Montalbano aparecem, igualmente rejuvenescidos: o meticuloso inspetor Fazio, o lascivo vice-comissário Augello, o atrapalhado agente Catarella, o diligente motorista Galluzzo, a cozinheira Adelina, o sarcástico doutor Pasquano, os jornalistas Nicolò Zito e Pepo Ragonese, as famílias mafiosas Cuffaro e Sinagra. Livia, a eterna namorada de Montalbano também aparece, claro, ambos ainda numa fase amorosa, sexualmente vigorosa de seu relacionamento, ainda sem as crises de ciúmes e as traições que viverão no futuro literário inventado por Camilleri. Os conhecidos e eficientes truques de ofício de Camilleri povoam os contos: sonhos e insights psicológicos ajudam a desvendar as tramas, pequenos dramas do cotidiano espelham a narrativa principal, histórias em paralelo alcançam seu desfecho simultaneamente. Camilleri sabe que nem tudo precisa ser dito para que o leitor entenda as motivações para os crimes ou delitos e faz uso notável da estrutura das peças teatrais em suas histórias, estrutura que de fato sustenta e dá verossimilhança a tudo. Como se fosse um manual de escrita criativa os contos de Camilleri são todos exemplarmente divididos em quatro partes: introdução, desenrolar da trama, clímax e desfecho final. Os temas são variados (nos romances policiais pouco importa a natureza da história, qualquer uma se presta a ser entendida segunda a ótica de um detetive, no caso, de um comissário): um caso de amor e incêndio; um atentado por dinheiro; um acidente banal em um barco; uma chantagem que provoca desdobramentos incontroláveis; um falso roubo de banco; o terrível que pode brotar daquilo que acumulamos; o inusitado do instrumento da morte de alguém; a ajuda inesperada de um ladrão. Dá gosto ler Andrea Camilleri. Divertido, al solito.
[início: 09/04/2017 - fim: 12/04/2017]
"Muerte en mar abierto y otros casos del joven Montalbano", Andrea Camilleri, tradução de tradução de Carlos Mayor, Barcelona: publicaciones y ediciones Salamandra, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 283 págs., ISBN: 978-84-9838-762-7 [edição original: Morte in mare aperto e altre indagini del giovane Montalbano (Palermo: Sellerio editore) 2014]

segunda-feira, 1 de maio de 2017

noite dentro da noite

Do Joca Reiners Terron já havia lido três bons livros: "Não há nada lá", "Guia de ruas sem saída" e "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves". "Noite dentro da noite" é seu lançamento mais recente. Assim como na conhecida peça de Eugene O'Neill, a longa jornada noite adentro de Terron cobra um bocado de esforço e atenção do leitor, mas o envolvimento com o livro provoca generosas recompensas, frutos de uma carpintaria literária povoada por efeitos hipnóticos, férteis, viscerais e provocativos. Enfim, como nos melhores jogos, o leitor é recompensado pela engenhosidade da cousa. No jogo de Terron o leitor é inicialmente induzido a acreditar que está a ler uma autobiografia, mas só o subtítulo engana, pois logo no primeiro parágrafo, quando esse leitor encontra um improvável Curt Meyer-Clason narrando um acidente que o protagonista não é capaz de lembrar, pois esqueceu-se dele, entende que se trata de uma paródia da construção de uma autobiografia. Quase no final do livro uma voz (em uma fita cassete, de longe no tempo e no espaço, que pode ser da pessoa que diz ser mãe deste protagonista, ou não) diz que "Esta história é sobre nós, mas você vai contá-la como se fosse sobre outros". É de fato isso que o leitor encontra nas quase quinhentas páginas do livro: a história de uma família (como na peça de O'Neill, disfuncional), que viveu e compartilhou sucessos e memórias, acidentes e alegrias, planos e desafios, surpresas e aborrecimentos, como toda família faz, cada uma de seu jeito. O problema é que esse protagonista sofreu um acidente e obnubilou esse passado familiar. Ele esqueceu, ou melhor, não consegue verbalizar suas emoções e lembranças. Ele parece esforçar-se conscientemente, em seu mundo interior, por entender esse passado, sua história, os acontecimentos mais marcantes de sua vida e família, mas nada verbaliza do que pensa. Um dos muitos narradores de Terron, o já citado Curt Meyer-Clason (alemão que de fato existiu, viveu no Brasil, foi preso pela ditadura Vargas e tornou-se tradutor do português, inclusive de João Guimarães Rosa), atua como uma espécie de tradutor das memórias mirradas do protagonista, como se Terron nos dissesse que apenas um tradutor do calibre de um Meyer-Clason poderia fazer com que uma pessoa entenda o que uma outra pessoa qualquer pensa, deseja, sonha ou lembra. Só mesmo um bom tradutor pode ser capaz de traduzir o livro imaginado pelo autor, que talvez esteja mesmo tentando entender melhor seu passado ou o passado recente de seu país e família, no livro escrito, materializado, que o leitor lê. Mas Terron é, claro, o tradutor de seu próprio livro. Os demais narradores do livro são todos igualmente prepostos das lembranças do protagonista, seja um tio que escreve, uma mãe que grava fitas, um outro tio que conta histórias, um suposto pai que deixa guardados para que o rapaz encontre e decifre. O livro incluí fotografias que sofreram algum tipo de intervenção artística, que funcionam como flashes, memórias que espoucam, mas que não fazem sentido algum. São epifanias com sinal trocado. Tudo o que o leitor pode até acreditar ser factual: um inverno de frio intenso no sul do Brasil; o impacto do golpe militar de 1964 na vida daquela família e em todas as demais famílias brasileiras; a eventual presença de nazistas no sul da América do Sul; a linguagem e a herbologia dos mbyá-guarani; o bullying entre estudantes de uma escola militar na fronteira entre Brasil e Paraguai; os ecos da guerrilha no Araguaia; os efeitos alucinógenos do fenobarbital; relatos antigos da guerra do Paraguai; o lento e permanentemente controlado processo de redemocratização do Brasil, entre tantos outros sucessos, são apenas migalhas, que Terron, como Ariadne antes dele deixou para Teseu no labirinto de Dédalo. Esses fatos/migalhas entretém os leitores, os mantém presos na leitura, em seu labirinto, em sua teia. Beckett já nos ensinou, quando escrevia sobre Proust, que "O homem que não se esquece de nada, nunca se lembra de nada". Talvez seja assim, esquecendo, por acidente ou por rejeição, por acaso ou invenção, que incorporamos, na vida que contamos a nós próprios, qualquer coisa, qualquer detalhe ou aventura possível, qualquer passado ou ascendência, qualquer causo mirabolante, verossímil ou mesmo vago. Assim vivemos, ai de nós! Interessante livro. Vale. 
[início: 04/04/2017 - fim: 10/04/2017]
"Noite dentro da noite: uma autobiografia", Joca Reiners Terron, São Paulo: Editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 463 págs., ISBN: 978-85-359-2876-1