sábado, 27 de outubro de 2018

sabotaje

Com "Falcó" Arturo Pérez-Reverte começou sua série de volumes dedicados aos anos de ascensão do franquismo. Os sucessos gravitavam uma fictícia tentativa de resgate José Antônio Primo de Rivera, líder dos falangistas, logo no início da guerra civil, em novembro de 1936. "Eva", o segundo volume da série, se passavam em Tánger, no Marrocos, no início de 1937. No recentemente publicado "Sabotaje", Pérez-Reverte faz o tempo avançar uns poucos meses deste mesmo ano, para o início do verão europeu. A nova missão de Falcó envolve eliminar um francês, Leo Bayard, sofisticado brigadista internacional que apóia os republicanos na guerra civil. Simultaneamente, ele deve sabotar um quadro que Pablo Picasso pintava por aqueles dias, o impressionante Guernica, que todos conhecemos, sabemos que está exposto no Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid, incólume e digno, ainda cumprindo seu papel de ícone contra o militarismo, sua força expressiva ainda manifestando repúdio à violência e os horrores da guerra, de todas as guerras. Como sempre nos livros de Pérez-Reverte a narrativa é acelerada, cheia de reviravoltas, deliciosas tramas paralelas, algum sexo, uma miríade de referências cinematográficas e chistes, de forma que dificilmente o leitor alcança abandoná-lo. Falcó é um anti-herói, alguém que luta contra um governo legítimo, ao lado de quem aprendemos identificar como fascistas, mas Pérez-Reverte soube dar matizes a seu protagonista, que é mais que um cínico, que um niilista, e faz o leitor aceitar que em situações complexas nem sempre é possível identificar todos os personagens como bons ou ruins, e todas as ações como absolutamente certas ou erradas, justificáveis ou condenáveis. Fascistas, comunistas, anarquistas, trotskistas, nacionalistas e tantos outros combatentes da guerra civil se equivalem, são capazes de atos vis ou honrados, de serem morais ou desonestos. Afinal, o ser humano vive sempre num carrossel de sentimentos contraditórios. Pérez-Reverte faz de Lorenzo Falcó uma espécie de James Bond dos anos 1930, um mestre da ironia, que sabe entender rapidamente a psique de seus interlocutores, agir da forma mais eficiente para cumprir suas tarefas. Não me cabe detalhar aqui os sucessos desta aventura, já que toda a graça do livro está em saber justamente como ele falhará em seu intento de destruir Guernica, como não será capaz de impedir Picasso de finalizá-lo. Ao terminar o volume, para mim o melhor dos três até aqui editados, já esperava encontrar a notícia de que algum outro está em produção. Mas talvez não seja o caso de ser tão açodado. Um escritor pode se aborrecer com personagens que teimam em roubar tempo e atenção. Estes três volumes foram lançados em menos de um ano, parecem ter sido escritos simultaneamente até. De qualquer forma a guerra civil factual ainda seguirá violenta e dura por mais um ano e meio, até abril de 1939. E depois dela haverão os horrores da segunda grande guerra, os anos da ditadura de Franco, e os da redemocratização espanhola. Falcó, que tem pouco mais de 35 anos neste volume poderia ser testemunha disto tudo. Será que Pérez-Reverte dará vida longa a seu personagem, o fará continuar suas aventuras? Logo veremos. Vale! 
Registro #1341 (romance #352) 
[início: 17/10/2018 - fim: 21/10/2018]
"Sabotaje", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2018), capa-dura 16x24,5 cm., 373 págs., ISBN: 978-84-204-3245-8

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

instruções para os criados

O irlandês Jonathan Swift viveu entre 1667 e 1745. É bastante conhecido por seu livro "Viagens de Gulliver", sobre o qual mesmo quem nunca o leu verdadeiramente pode dizer que conhece e eventualmente gosta. É reconhecido como um dos maiores satiristas da língua inglesa. "Instruções para os criados" é - como o título promete - um conjunto regras dirigidas aos serviçais de um senhor (trata-se de trabalho ficcional produzido na primeira metade do século XVIII, portanto não há razão para que termos politicamente corretos do século XXI, como colaboradores, trabalhadores ou cousa que o valha, sejam aqui hipocritamente utilizados). Apesar de haver registros da existência dessas instruções desde 1731, elas somente foram publicadas postumamente. As instruções correspondem a regras gerais para todos os criados e instruções específicas para cada um, do mordomo a cozinheira, do lacaio ao cocheiro, e assim por diante, para porteiro, aia, leiteira, ama, governanta e todos os demais (a lista alcança dezesseis indivíduos, Swift foi deão da catedral de São Patrício boa parte de sua vida adulta, deve ter tido mesmo muita gente trabalhando para si). Não é fácil ler esse ensaio satírico de uma vez só. Claro, é brutalmente engraçado, cínico à exaustão, inverte todos os sinais do que possa ser certo ou errado no desempenho das tarefas do dia a dia dos criados, mas é muito repetitivo. O humor ácido sempre indica como correto exatamente o contrário daquilo que o senhor espera que seja realizado, para sua saúde física ou economia financeira. Nas primeiras instruções a narrativa funciona, o sarcasmo provoca um mais que um esgar, mas logo o acúmulo de clichês passa a incomodar o leitor. Desisti deste livro várias vezes, mas minha curiosidade sobre o alcance da verve ferina de Swift sempre foi mais forte. Enfim, divertido, porém só em pequenas doses, um pouco de cada vez. Vale! 
Registro #1340 (crônicas e ensaios #235) 
[início 01/10/2018 - fim: 06/10/2018]
"Instruções para os criados", Jonathan Swift, tradução de Priscila Catão, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #4), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 133 págs., ISBN: 978-85-92649-04-3 [edição original: "Directions for servants" (London: R. Dodsley and M. Copper) 1745]

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

sobre o exílio

Nesse pequeno livro estão enfeixados três ensaios curtos de Joseph Brodsky, o poeta russo que recebeu o prêmio Nobel de Literatura de 1987. Já conhecia os três ensaios (já registrei aqui minhas impressões sobre o bom "On grief and reason"), mas sempre é bom reler cousas bem escritas. "A condição chamada exílio" foi produzido originalmente para uma conferencia sobre exilados em Viena, no final de 1988. "Uma face incomum" corresponde ao discurso de aceitação do prêmio Nobel, pronunciado na cerimônia de entrega dos prêmios em Stockholm, em dezembro de 1987. O último, um tanto menor, corresponde ao dito "discurso do banquete", pronunciado em um almoço na prefeitura de Stockholm, menos formal, solene, e que antecede a cerimônia noturna de entrega dos prêmios. Os três ensaios podem ser encontrados em inglês, ou no site da Fundação Nobel (Discurso de aceitação; Discurso do banquete), ou no site da The New York Review of Books (Exílio). Pois é a questão do exílio que paira perene nos três ensaios, nos três discursos. São ponderações de um sujeito que não apenas sabe se expressar com muita exuberância e clareza, mas de alguém que experimentou o cárcere e o isolamento por muitos anos antes de finalmente alcançar a liberdade e a condição de exilado. Não se trata portanto de abstrações conceituais. O sujeito sabe muito bem sobre o que está falando. Há gratidão nas palavras de Brodsky, aos que o convidam e aos que o premiam, e a seus predecessores, aqueles que reconhece como poetas fortes (Osip Mandelstam, Marina Tsvetaeva, Robert Frost, Anna Akhmátova e Wystan Auden), mas também um sarcasmo silente. Não me cabe aqui sintetizar os muitos e convincentes argumentos de Brodsky, que sabe bem conduzir o leitor / ouvinte ao entendimento de temas complexos, controversos até. Os temas que mais me impressionaram foram sua defesa da particularidade de cada condição humana, seu louvor da relação sem intermediários entre a arte e os indivíduos, da precedência da estética sobre a ética, do cuidado que se deve ter com arautos, com aqueles que se arvoram no direito de interpretar a realidade para os demais, da força inevitável da linguagem, dos inaceitáveis sacrifícios humanos que as doutrinas totalitárias cobram ao tentar alcançar um triunfo e concretizar promessas que nunca se realizam. Nesse bizarros tempos, imagino que só mesmo a hipocrisia ou o Alzheimer moral explicam como legiões de escravos mentais se negam a aceitar o fracasso das ideologias de esquerda e que, eventualmente, querem, num anacronismo perverso, implantar nestes trópicos. Não vale a pena perder tempo com isso. Vamos em frente. Evoé Brodsky, evoé. Vale! 
Registro #1339 (crônicas e ensaios #234) 
[início 12/10/2018 - fim: 16/10/2018] 
"Sobre o exílio", Joseph Brodsky, tradução de André Bezamat e Denise Bottmann, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #2), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 76 págs., ISBN: 978-85-92649-02-9 [edição original: "The condition we call exile" (New York: The New York Review of Books) 1988 / "Noblelevskaja Rec'" and Acceptance Speech "The Nobel prizes, editor Wilhelm Odelbert (Stockholm: Nobel Foundation) 1987]

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

proust contra a degradação

O polonês Joseph Czapski foi pintor, escritor, crítico de artes, ativista político. Em setembro de 1939, data que marca o inicio da segunda grande guerra na Europa, engajado como oficial do exercito polonês, Czapski foi aprisionado pelos russos (a União Soviética e a Alemanha dividiram entre si o território polonês). Prisioneiro em um convento abandonado, a mais de 400 Km de Moscou, e demasiadamente debilitado para os trabalhos forçados aos quais estavam condenados todos os demais, ele fazia anotações durante o dia sobre assuntos de suas áreas de especialização, sobretudo pintura e literatura francesa. A cada noite, parte destas anotações eram pronunciadas como palestras a seus colegas oficiais poloneses. Cabe registrar que Czapski foi um dos poucos sobreviventes dos quase 25.000 oficiais prisioneiros dos russos que foram mortos em Katyn - um leitor curioso deveria ver o belo e terrível filme já feito sobre esse assunto. Junto com Czapski sobreviveu o manuscrito de suas conferências, que resta transcrito nesta edição da Âyiné. Naqueles dias terríveis, Czapski fala de Proust e sua obra, sem o auxilio de livros, anotações ou cousa que o valha, citando longos trechos do livro de memória (mas não aquela cara a Proust, a memória involuntária). Ele emula aos colegas prisioneiros o que sabe de livros que havia lido vinte anos antes. Um leitor já familiarizado com Proust apreciará o livro sem reservas, encontrará em Czapski um confrade de longe, alguém com quem compartilhar espanto e admiração (don Renato Cohen certamente deverá ler esse livro). As passagens que ele rememora, escolhe e conta para seus colegas prisioneiros são aquelas que encantam qualquer leitor (a morte da avó do narrador, o sofrimento de Swann, a decrepitude de Charlus, o chá e as madeleines, as recepções na mansão da duquesa de Guermantes, a mundanidade encarnada nos personagens), mas é a forma como elas brotam da memória de Czapski que guardam algo de mágico. A bem da verdade ele não se limita a contar as histórias dos livros de Proust. Czapski fala de sua vida, contrasta autor e obra com todos os movimentos artísticos, não apenas na literatura, mas também nas artes plásticas, na música, na dança, do final do século XIX e início do século. Fala dos autores russos, que ele conhecia bem, de política, de psicologia, de filosofia, de autores poloneses - a passagem sobre Conrad é soberba. Trata-se de um livro curto e potente. Essas edições da Âyiné são excelentes, porém só oferecem um aperitivo ao leitor, não saciam sua fome, deixam o sujeito nervoso ao terminar a leitura; e custam caro. Paciência. Escrevo este registro na véspera do dia que é dito do professor aqui no Brasil. Uma passagem de Czapski me fez pensar muito sobre essa data e a terrível situação em que esse desgraçado país se encontra, em que legiões de escravos mentais vagam e votam, deixando a impressão que sua grande maioria é incapaz de tomar decisões sensatas, de colaborar para construir um futuro minimamente digno. Paciência. Mas o que Czapski registra e me fez lembrar, numa lição, é que Proust jamais foi estritamente didático, engajado ou tendencioso em sua obra, jamais foi professoral. Para Proust é a forma, o compromisso estrito, rigoroso, absoluto, com as formas puras na arte, que conseguirá transmitir verdades ao leitor. É a vontade de saber e de compreender todos os sentimentos, todos os estados da alma e gestos dos homens, mesmo quando incompatíveis entre si, que poderá fazer com que possamos alcançar alguma verdadeira sabedoria. Proust nos obriga, a cada leitura, a uma revisão de toda nossa escala de valores, a despertar nossas frágeis faculdades de pensamento e sentimento. Efeitos assim não se alcançam com livros panfletários, ideologicamente comprometidos, que parecem ser o repasto da maioria dos - poucos - leitores contemporâneos. (Nem incluo aqui das informações que as pessoas compartilham nas redes sociais, quase sempre admiravelmente eivadas de vícios e mentiras). É mesmo tempo de reler Proust, de blindar-se da degradação, afastar-se dos miasmas, da abominável ignorância que grassa por este país. Vale! 
Registro #1338 (crônicas e ensaios #233) 
[início 13/10/2018 - fim: 14/10/2018]
"Proust contra a degradação: Conferências no campo de Griazowietz", Joseph Czapski, tradução de Luciana Persice, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #6), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 110 págs., ISBN: 978-85-92649-36-4 [edição original: Proust contre la déchéance: Conferences au camp de Griazowietz (Lausanne: Editions Noir sur Blanc) 1987 & 2011]

domingo, 14 de outubro de 2018

insolitudes

Com "Insolitudes" Tiago Feijó venceu o premio Ideal Clube de Literatura de 2014. São nove contos curtos, bastante engenhosos, produção de alguém que é jovem, mas tem domínio das boas técnicas de sua arte. Três dos contos são mais explicitamente metaliterários, falam do mundo dos livros; os outros seis são menos brincalhões com a literatura, exploram certos espantos da vida. Todas as narrativas compartilham aquilo que o título promete: algo de insólito, bizarro, deslocado, ou no tempo, ou no espaço. Em "A insólita morte de Ernesto Néstor", Feijó inverte um aforismo de Nabokov que obriga os personagens a serem sempre escravos do autor e faz seu narrador ser dominado e eventualmente eliminado por um personagem; em "Josés" um sujeito recebe o fantasma de José Saramago e alcança escrever um livro em nome dele, num transe ; "Conto tirado de um poema" dá conta de um sujeito que é rechaçado pela namorada e decide tornar seu suicídio um acontecimento literário, coreografando, encenando, seu aborrecimento e morte; "O olho" é uma história que deve algo a Kafka ou Borges, no qual um olho surge em uma parede e, ao se expandir, deixa obcecado o morador daquele ambiente; "O caso do cartão" brinca com os sucessos retrospectivos de uma paixão vivida por um rapaz por uma garota que havia o abandonado; "Aqui, dentro de mim" trata dos ritos do luto de uma mulher que perde filho e nora para os elementos, o mundo natural; em "Uma noite na vida do sr. Lameque" uma mãe, talvez inebriada pelo Alzheimer, recrimina o filho que vela por ela pela morte de um outro filho, seu gêmeo ou irmão mais velho, num remoto acidente; " Há uma gota de orvalho em cada criança" descreve uma cena que adultos tratariam com mundanidade, hipocrisia, mas que no mundo das crianças brota livre, sem amarras, sem engajamentos artificiais, como sempre deveria ser; "A morte e a pequena Ana" conta como uma menininha pensa o suicídio do pai, tentando interpretar o mundo e as pessoas que, por sua vez, não a imaginam ser capaz disto. Ojo, acho que é o caso de acompanhar o que o Feijó inventará no futuro. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1337 (contos #157) 
[início: 18/09/2018 - fim: 25/09/2018]
"Insolitudes", Tiago Feijó, Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 101 págs., ISBN: 978-85-421-0383-0

sábado, 13 de outubro de 2018

querida kombini

Na semana passada, próximo ao dia destas bizarras, ridículas eleições, quase todos os cadernos culturais dos jornais que li davam conta da edição desse "Querida Kombini", de Sayaka Murata. Todos falavam do sucesso de vendas (mais de 700 mil exemplares vendidos no Japão) e das boas críticas (o livro ganhou o respeitável prêmio Akutagawa do ano passado). De fato o livro é bem escrito, registra literariamente uma experiência limite, descreve um comportamento social contemporâneo, alcança fazer algo que um trabalho sociológico acadêmico não alcançaria, além de provocar uma reação empática no leitor. A história é simples. Uma mulher ainda jovem, menos de quarenta anos, com estudos universitários completos, Keiko, é funcionária em uma loja de conveniência de Tóquio ("Kombini" é o nome destes lugares no Japão). Esse tipo de trabalho é em geral ocupação de estudantes, mulheres bem mais velhas que precisem ajudar no orçamento familiar, imigrantes com pouca qualificação. Todavia Keiko parece adaptar-se perfeitamente àquela função, onde antes habilidades mecânicas, rapidez e diligência são mais importantes que capacidade de abstração, raciocínio complexo ou iniciativa. O leitor acompanha os dias de Keiko, a monótona rotina de seu trabalho, algo de sua biografia, do estranhamento que provoca em familiares e amigos (se é o que ela vivencia são mesmo relações familiares ou de amizade, pois trata-se de uma pessoa socialmente deslocada em todos os aspectos). Gostei de ler o livro, mas não achei particularmente marcante, já conhecemos todos algo deste tipo de história. Para um leitor estrangeiro o exotismo da cousa, o bizarro da situação, explica algo do interesse que a história provoca, mas como explicar o sucesso de público e crítica no Japão? Talvez a história desnude aquilo que não seja fácil para eles mesmos verbalizar: a intrínseca melancolia e solidão daquela sociedade; o contraste entre o conforto material e as tensões psicológicas experimentadas pela população; a quase impossível mobilidade social; a rigidez que condena todos ou a mais completa submissão às tradições ou ao escracho total, a negação completa das convenções sociais. Esse livro lembra muito um dos primeiros livros da belga Amélie Nothomb, "Medo e Submissão", no qual ela descreve ficcionalmente sua experiência de quase servidão humana, de anulação de personalidade, vivenciada quando trabalhava como tradutora em uma grande empresa japonesa no início dos anos 1990. Lembra muito também aquele poderoso conceito de Elias Canetti: "A inversão do temor de ser tocado", mas esta é outra história e eu já especulei um bocado neste registro de leitura. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1336 (romance #351) 
[início 06/10/2018 - fim: 08/10/2018] 
"Querida kombini", Sayaka Murata, tradução de Rita Khol, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 152 págs., ISBN: 978-85-7448-295-8 [edição original: Kombini Ningen コンビニ人間  (Tokyo: Bungeishunju) 2016]

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

uniões

No início deste 2018, qual não foi minha alegria ao saber que dois amigos queridos, a Kathrin Rosenfield e o Lawrence Pereira, estavam envolvidos com a tradução de Vereinigungen, um volume de contos de Robert Musil cuja leitura eu havia abandonado há pelo menos vinte anos. Desta vez, pela força da tradução deles e guiado por dois soberbos ensaios críticos da Kathrin, consegui terminar a leitura e entender algo das histórias. Musil publicou esses dois contos ("A perfeição do amor" e "A tentação da quieta Verônica") em 1911. Ele já havia alcançado reconhecimento em 1906 com a publicação de "O jovem Törless", mas o volume com os contos, nos quais dedicou mais de dois anos de trabalho, foram recebidos com indiferença ou ácidas críticas. De fato são histórias complexas, que cobram do leitor concentração, envolvimento, atenção e contínuas reflexões. Nem tudo é dito, explicitado, factual. Nem tudo é linear ou auto-consistente. Em "A perfeição do amor" acompanhamos Claudine, uma jovem senhora, que ao visitar sua filha em um colégio interno, afastada do marido, permite-se testar a atração que provoca nos homens e também testar o alcance do amor que sente por seu marido. Em "A tentação da quieta Verônica" o leitor é apresentado a uma curiosidade de mesma natureza, mas neste caso a protagonista, a Verônica do título, não precisa consumar uma conjunção carnal com um estranho para entender o que sente ou sentia pelos dois homens que a sufocavam (e continuarão a restringir suas ações de certa forma): Johannes e Demeter. Esses dois resumos são obviamente incompletos, falseantes, restritivos. Os dois contos (ou as duas novelas, numa classificação talvez mais precisa) oferecem ao leitor camadas de interpretação, ilações, pistas. Trata-se de exercícios de estilo, através dos quais Musil parece querer demonstrar literariamente as transições de nossas vontades, de nossos gestos, de nosso entendimento da realidade, das razões que entendemos justificar cada uma de nossas ações. Não são narrativas que reduzem as sutis variações de nossa humanidade à psicologia, mas uma tentativa de entender a contradição intrínseca de nossos desejos, de nossas escolhas. Escritas há mais de cem anos, as duas histórias soam frescas, provocativas, apropriadas para descrever até mesmo nós, cínicos e tolos viventes deste inicio de século XXI, ainda encerrados nas mesmas masmorras ideológicas do final do século XIX, incapazes de entendermos a realidade que nos cerca, o mundo natural, nossa psicologia. Mais não digo sobre as histórias. Mas talvez valha a pena contar algo mais sobre meu envolvimento com esse livro. Há quase vinte anos, flanando por uma estival Barcelona, num domingo, lá pelos lados do Mercat de Sant Antoni, comprei "Uniones", a versão espanhola dos contos de Musil, contos sobre os quais nunca havia tido notícia. Meses antes, ainda no Brasil, eu havia terminado de ler uma tradução (assinada por Lya Luft e Carlos Abbenseth) de "Um homem sem qualidades" e estava curioso em saber mais cousas do Musil. Porém, meu espanhol medíocre daqueles dias não me fez avançar muito (meu volume da Seix Barral está pouco rabiscado, quase não amassado, sinal que fui vencido sem dó pelas narrativas). Essa dificuldade, esse desconforto, aliás, também experimentou Thomas Mann ao ler os contos, aprendi isso nos notáveis ensaios da Kathrin, ensaios que por si só já justificam a edição. Enfim, restou ao livro perder-se nos guardados de minha biblioteca. Consultando-o agora vejo que além dos contos a edição inclui alguns mimos: (i) sete curtos relatos ficcionais que foram publicados em jornais e revistas por Musil entre 1923 e 1930 - posteriores, portanto, aos contos; (ii) seis fragmentos ficcionais que só foram publicados após a morte de Musil, em 1942, mas que foram escritos na mesma época da produção dos contos. Esses dois conjuntos de relatos eu já havia lido, estão bem rabiscados (pelo menos isso consegui, o fracasso não foi completo). Não posso finalizar esse registro sem falar mais sobre a edição brasileira, do belo "Uniões" publicado pela Perspectiva. A edição é muito bonita, inclui um conjunto de dezessete ilustrações, reproduções de gravuras em metal de três artistas plásticos (Marcos Sanches, Maria Tomaselli e Raul Cassou). As gravuras foram produzidas por encomenda, fazem parte do projeto editorial do livro e já foram expostas em Porto Alegre e em São Paulo. A edição inclui também uma sobrecapa feita pela dobradura de uma folha em formato A3, impressa dos dois lados, com reproduções das gravuras. Enfim, o livro tem algo de livro arte, de livro objeto, é uma festa para os sentidos. Todavia, convenhamos, são os dois contos do Musil o melhor desta festa sensorial. Grato a Kathrin e ao Lawrence por traduzi-los. Vale! 
Registro #1335 (contos #156) 
[início 01/09/2018 - fim: 04/10/2018] 
"Uniões", Robert Musil, tradução de Kathrin Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, ilustrações de Marcos Sanches, Maria Tomaselli e Raul Cassou, São Paulo: Editora Perspectiva (Coleção Paralelos #35), 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-273-1122-9 [edição original: Vereinigungen - Zwei Erzählungen (München: George Müller Verlag) 1911]

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

nenhum mistério

Você termina de ler "Nenhum mistério" e se sente esgotado, como se tivesse passado horas no mais extenuante dos trabalhos. Todavia, o primeiro impulso após terminá-lo é voltar aos poemas iniciais, folhear o livro para encontrar aquela passagem particularmente feliz, aquele verso que nos arrebatou de vez, retornar ao assombro, ao encantamento. Nas ultimas semanas li vários livros, inclusive de poesias, como o bom "Coral e outros poemas", de Sophia Andresen, que já registrei aqui. Entretanto, nunca deixei longe esse volume de Paulo Henriques Britto, voltei aos poemas enfeixados nele várias vezes. São apenas 27 poemas, alguns anteriormente publicados em jornais e revistas, do Brasil, de Portugal e do Peru. Algumas partes de alguns poemas foram escritas originalmente em inglês (Britto é um dos mais seminais e respeitados tradutores brasileiros). Os poemas tratam das perdas, do vazio, da inutilidade da vaidade, do ofício do tradutor e do poeta, dos rancores contidos, da melancolia, dos esgares provocados pela consciência das limitações alheias, do fluir do tempo, das barreiras, dos limites (do Metron e da Húbris, diria um grego). Cada poema provoca no leitor uma reflexão dura. Somos senhores de nós mesmos ou detritos orgânicos que são continuamente arremessados de um lado para o outro, por acaso, por capricho de uma deidade brincalhona? Já li vários conjuntos de poemas de Paulo Henriques Britto ("Mínima lírica", de 1989; "Trovar claro", de 1997; "Macau", de 2006; "Formas do nada", de 2012), mas esse é o que mais me impressionou. Que poeta dos diabos. Que assombro, que potência, que festival para os sentidos. Qual poema reproduzir aqui? Como dar uma ideia ao eventual leitor das maravilhas que ele cria? Escolho esse (Dos nomes), bom divertimento: "Os nomes se enchem aos poucos, / Um dia eles perdem o estofo, / aos poucos, ou então de repente. / Então ficam ocos. // O mundo está sempre se enchendo / de cascos vazios deste tipo. / Inúteis. No entanto, assim mesmo / continuam sendo, // ocupando tempo e lugar, / iludindo quem os assume, / prestando falso testemunho / do que já não há. // E o mundo se presta a essa farsa. / É como se já não bastassem / as coisas e os nomes das coisas / que as coisas disfarçam. // E há quem (imagine!) ache pouco, / e abrace esses nomes sem estofo / e diga e rediga esses ocos / feito louco". Vale! 
Registro #1334 (poesia #101) 
[início 05/09/2018 - fim: 10/10/2018] 
"Nenhum mistério", Paulo Henriques Britto, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 70 págs., ISBN: 978-85-359-3137-2

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Coral e outros poemas

Cada poeta é um universo, um mundo, um país, uma aldeia, uma voz. Nunca havia ouvido falar de Sophia de Mello Breyner Andresen. Noutro dia, vagabundo por uma livraria, encontrei esse volume. A organização, seleção e apresentação desta antologia é assinada pelo também poeta Eucanaã Ferraz, que conheço pouco, mas que é sempre citado em cadernos culturais como uma das boas referências de sua geração. Pois em sua apresentação, Eucanaã nos ensina sobre uma poeta forte, que viveu muito, viajou muito e publicou muito, sendo ainda seminal e respeitada em seu Portugal fundamental. Os poemas foram retirados de quatorze livros que ela publicou, desde o de estreia, em 1944, até o ultimo, de 1997 (ela morreu em 2004). Segundo Eucanaã ela adestrou seus versos em vagas, em fases, desde os três primeiros volumes ("Poesia", de 1944; "Dia e mar", de 1947; "Coral", de 1950), com os quais ganhou consagração; passando por "No tempo dividido", de 1954, e "Mar novo", de 1958 (livros de continuidade nos temas, mas com mudanças estilísticas); "O Cristo cigano", de 1961, que ela um dia renegou, mas fez ainda em vida voltar às edições de sua obra completa; "Livro sexto", de 1962, e "Geografia", de 1967 (livros que brotaram de uma espécie de angústia da influência de nosso João Cabral de Melo Neto, de uma fase sua onde a arte parecia negar a vida, da descoberta do Brasil); "Dual", de 1972, e "O nome das coisas", de 1977 (volumes que tratam de sua redescoberta de Portugal, de Fernando pessoa, do impacto da esperada Revolução dos Cravos, quando Portugal tardiamente livrou-se da ditadura de António de Oliveira Salazar); "Navegações", de 1983, e "Ilhas", de 1989 (volumes onde são as viagens e o mar que povoam a experiência da poeta); e os dois últimos, "Musa", de 1994, e "O búzio de cós e outros poemas", de 1997, com os quais Sophia faz-se uma Janus, olha para trás, avalia sua trajetória artística, porém, bifronte, encara o futuro e unifica sua obra, numa coda calma e feliz. Seus temas são aqueles sempre caros aos poeta fortes: o mar, a presença grega, uma deidade ou religião, as viagens, a consciência da linguagem, o fluir do tempo. Se aprende um bocado lendo alguém assim. Várias vezes, dentre os poemas recolhidos por Eucanaã, descobrimos uma ânfora. Curioso, fiquei a imaginar se essa imagem é mesma algo perene em sua obra (esta antologia só nos ensina uma fração dela, só nos dá um vislumbre de uma vastidão de palavras). Imaginei-a como um navio repleto de ânforas poéticas, que repentinamente foi resgatado do mar. Eucanaã fez essa antalogia, mas nos convida em sua apresentação a elegermos a nossa, navegarmos no mar de poemas de Sophia Andresen, descobrirmos nós mesmos seus versos, suas imagens, seu mundo. Vale! 
Registro #1333 (poesia #100) 
[início 15/08/2018 - fim: 08/10/2018] 
"Coral e outros poemas", Sophia de Mello Breyner Andresen, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 390 págs., ISBN: 978-85-359-3079-5