segunda-feira, 23 de março de 2009

shakespeare

Em "Shakespeare: O mundo é um palco", Bill Bryson nos ensina como é possível escolher um assunto onde já há muita informação e ainda assim apresentar uma abordagem original. Segundo ele foram publicados nos últimos 400 anos, somente em inglês, mais de 7000 livros sobre Shakespeare. Se um sujeito se dispusesse a lê-los todos levaria uma vida inteira e certamente não chegaria ao fim. Porque então nos apresentar um novo volume? Livro feito por encomenda, ele sistematiza o universo e a fortuna crítica de uma área enorme do conhecimento, apresentando somente as informações totalmente comprovadas e que não são baseadas em especulações e "achismos" da moda acumulada de cada época (isto reduz o que se sabe a algo que se pode trabalhar por um par de anos). Há um pouco de tudo neste livro: história, lingística (a melhor parte eu achei), arte, poesia, economia, arquitetura, geografia e, claro, dramaturgia. O livro apresenta o pouco que se sabe oficialmente e um tanto do que se infere sobre Shakespeare. Por exemplo, somente se aceita a existência de apenas quatorze palavras escritas de próprio punho por Shakespeare, dentre elas seis assinaturas que não seguem, nem ao menos duas delas, o mesmo padrão: ora é Willm Shaksp, ora Wm Shakspe, ora William Shakspere, e outras variações. O sujeito sabia ser discreto e é quase milagrosa a fração de peças dele que sobreviveu, considerando-se o que se conhece da produção teatral de sua época. Mais que apresentar o que se sabe dele: um tanto da vida de seu pai, a escritura das peças, os acordos comerciais que fez, as tentativas de grangear mecenas, a produção dos poemas e dos sonetos, o livro apresenta os muitos enigmas que cercam a vida e a obra de Shakespeare. Uma generosa biografia finaliza o volume. Boa diversão, que deveria levar este leitor a reler algo do velho Shakespeare, mas quem disse que obdeço meus instintos. [início 15/02/2009 - fim 22/02/2009]
"Shakespeare: O mundo é um palco, uma biografia", Bill Bryson, tradução de José Rubem Siqueira, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 199 págs. ISBN: 978-85-359-1333-0

sábado, 14 de março de 2009

a ilha da desolação

Os livros não tem pudor, exibem-se desavergonhados nas estantes, ávidos pedintes por leitores de ocasião. Comprei e li este exemplar de "A ilha da desolação" como quem uma vez mais procura uma amante conhecida, de quem sabemos bem os hábitos mas que acreditamos serem capazes de ainda nos surpreender. Este é mais um dos romances históricos de marinharia de Patrick O´Brian (é o quinto na verdade, tratando de acontecimentos imediatamente posteriores ao "Expedição à Ilha Maurício, que resenhei aqui meses atrás). O capitão Aubrey volta a seu posto depois de ter assumido o de Comodoro na aventura anterior. Após meses de vida doméstica na Inglaterra é incumbido de levar um grupo de prisioneiros à distante Austrália e depois auxiliar o governador do lugar a manter a ordem pública. Apesar da irrelevãncia do comando oferecido Aubrey aceita pois qualquer coisa é melhor que o aborrecido campo inglês e os problemas nos negócios. Seu amigo médico (e espião inglês nas horas vagas), Stepehn Maturin, também vê na viagem uma oportunidade de afastar de uma decepção amorosa e de seu vício crescente pelo laúdano. Entre os prisioneiros do navio há uma americana, anteriormente associada exatamente pela mulher por quem Maturin está apaixonado. No longo caminho até a Austrália Aubrey e sua tripulação se vêem em tribulações mil: tempestades, mortes na tripulação, epidemia de tifo, calmarias longas e desgastantes, falta de água, paradas forçadas - no Recife brasileiro aliás, um renhido combate naval com uma embarcação holandesa, quebra do leme do navio, dificuldades na navegação pelas águas geladas do oceano antártico, abandono de parte da tripulação. Finalmente conseguem atracar em um porto isolado de uma ilha distante chamada Desolação. Americanos e ingleses reinvindicam soberania pela ilha e a chegada repentina de um navio baleeiro americano gera forte tensão entre os dois grupos (hoje a ilha é uma possessão francesa). Aubrey necessita de ajuda dos americanos para consertar o leme de seu navio, enquanto estes precisam com urgência da habilidade médica de Maturin. A tensão entre os dois grupos reflete o ambiente que antecede a guerra que haverá entre os dois países em 1812 (na qual a Casa Branca foi incendiada e o jovem país quase voltou a fazer parte do império britânico, cabe dizer). É um livro bastante movimentado. A perseguição e a batalha contra o navio holandês é animada. Os truques de espionagem e contra-espionagem descritos no livro também. É um bom divertimento de férias. Leitura descompromissada mas que tem seu valor. [início 14/02/2009 - fim 18/02/2009]
"A ilha da desolação", Patrick O´Brian, tradução de Sônia Coutinho, editora Record (1a. edição) 2009 brochura 13,5x21, 413 págs. ISBN: 978-85-01-08078-3

domingo, 8 de março de 2009

el hombre de mazapán

Ganhei este livro de presente da Helga. Comecei a ler no dia do aniversário do Joyce, 02 de fevereiro, um estival dia neste ano. "The ginger man" foi escrito por um americano descendente de irlandeses chamado James Patrick Donleavy e foi publicado em 1955. É um dos livros mais desavergonhados que eu já li, mas ao mesmo tempo não há nada nele que um brasileiro não ouça ou até mesmo fale desde a juventude (eu diria até que os infantes são igualmente desbocados, mas talvez eu esteja exagerando). O livro foi proibido na Irlanda e nos Estados Unidos durante anos. Acompanhamos as aventuras de um jovem americano (Sebastian Dangerfield) que está radicado na pobre Irlanda do pós segunda grande guerra, estudando direito no centenário Trinity College. A vida boêmia, descompromissada, devassa e torpe afinal de contas, tanto dele como a de seus colegas de escola é contada em um ritmo que prende o fôlego do leitor. Não há limites nas trapaças do sujeito. Ele mente, engana, ilude, distorce, falseia, foge, trai, agride, rouba, corrompe como se estivesse fazendo suas abluções matinais, sem um mínimo de culpa ou consciência moral. Enfim, ele é um trambiqueiro de primeira, mentiroso, beberrão, falso, mulherengo, que se destrói e destrói a todos a seu redor. É um livro divertido, cheio de perversidades e pornografias mil, mas que deixa o leitor com um travo na boca, pois é mesmo um livro escrito para ser engraçado, mas que te deixa triste no final. A história se passa em uma Irlanda dos anos 1950, ainda bem pobre, atrasada, muito influenciada pela igreja católica e amargurada pelo passado de opressão inglesa. Os paralelos com o Ulysses de Joyce são óbvios, esquemáticos até: Sebastian Dangerfield / Stephen Dedalus; Mary / Marion; Kenneth / Kinch; e por aí vai. Nada que desabone o livro. Gostei de ler, mas o final é enigmático, abrupto. Não há moral ou juízo de valor, o livro simplesmente acaba e o leitor fica a pensar se a vida é assim mesmo: uma sucessão de azares, escolhas, que te levam para um lugar qualquer, sem remissão. Cabe aqui um registro final: a edição é realmente primorosa. Que livro bem editado. Trata-se de um verdadeiro tesouro. [início 02/02/2009 - fim 13/02/2009]
"El hombre de mazapán", J.P. Donleavy, tradução de Marta Garcia Orozco, editora Edhasa Libreria (1a. edição) 2008, capa dura 15x23.5, 442 págs. ISBN: 978-84-435-00993-5

sábado, 7 de março de 2009

o príncipe irreal

Em novembro do ano passado, quando da feira do livro de Porto Alegre, encontrei meus amigos livreiros, entre eles o André Gambarra da Nova Roma e o industrioso Marcos Lindenmayer. Estávamos todos acompanhando o folhetim do Tailor Diniz, pinçando a miríade de citações e homenagens que o Tailor incluia na história de detetives que contava. Foi divertido. Mas o André e o Marcos estavam a trabalho, lançando vários livros por lá. Através deles acabei conhecendo o Fernando de Garcia, que lançava ali seu "O príncipe irreal e o poeta errante". Segundo ele alguns poemas terçavam com a física e a metafísica. Comprei o livro, li um punhado de páginas mas acabei desviando por outras histórias. Agora mais recentemente, ainda encantado com os poemas de Sylvia Plath resolvi retomaro livro do Fernando. Bom, a edição é muito bem cuidada, com capa dura, bela diagramação e costuras, ilustrações (de Edu Oliveira) que dialogam com o texto e lembram um tanto as cousas do Magritte. São dois conjuntos de poemas. O maior é de 1973, dos tempos que o Fernando de Garcia estava no serviço diplomático brasileiro, viajando mundo afora, errante poeta experimentando a vida. O conjunto menor me parece mais recente, talvez todo ele de 2008 mesmo, mas igualmente fruto de deslocamentos e viagens. Os dois conjuntos mantem um diálogo, como se o Fernando voltasse no tempo e estivesse a conversar com aquele outro autor, após trinta e cinco anos. O segundo conjunto de poemas é quase todo ele dedicado a terceiros, aumentando assim o círculo de interlocutores das conversas que ele estabelece através dos poemas. Os temas são bastante variados, ora ele fala de um encontro em um Rio de Janeiro estival, ora de um beijo roubado na Tailândia, ou ainda conta o percurso por uma rua movimentada de Porto Alegre refletindo um tanto. Em muitos de seus poemas surge o ouro (uma potência ou deidade, quem sabe?), os amigos, os enigmas da vida. Armindo Trevisan assina uma curta introdução, boa de se ler. Estes dias vagabundos de férias se prestam ao vagar que a leitura dos poemas exigia. Bons dias de leitura. [início novembro/2008 - fim 10/02/2009]
"O príncipe irreal e o poeta errante", Fernando Cacciatore de Garcia, editora Nova Roma (1a. edição) 2008, capa dura 17x25, 96 págs. ISBN: 978-85-60859-01-6

sexta-feira, 6 de março de 2009

ariel

Este belo livro reune 40 poemas de Sylvia Plath. A edição é bilingue, bem cuidada, com fac-símiles das páginas datilografadas originais e com fac-símiles dos vários manuscritos do poema que dá nome ao livro, através dos quais podemos acompanhar a gênese mesma do poema. A primeira edição deste livro é de 1965, mas recentemente, em 2004, o livro foi publicado na forma que se acredita a autora tenha definido como a ideal. A tradução foi feita por Rodrigo Garcia, escritor, acadêmico e poeta ele também, e Maria Lenz de Macedo que graduou-se aqui em nossa gloriosa "universidade federal em santa maria". Ariel e Sylvia Plath sempre geraram controvérsia por conta de uma pretensa adulteração dos originais promovida pelo marida dela, o também poeta Ted Hughes. Como ela suicidou-se pouco depois de terminar de organizar os originais de Ariel, não foram poucos que acusaram o marido de censurar poemas inteiros. Aliás é mais comum ouvir falar de Sylvia Plath em rodas de dicussão feminista ou em debates sobre os direitos das mulheres que em congressos e encontros acadêmicos de literatura. Paciência. O livro inclui um prefácio da filha da autora, a também poeta Frieda Hughes. Pois lendo-o percebe-se que a versão melodramática "mulher frágil e a frente do seu tempo" versus "marido infiel e mutilador de poemas", não corresponde a realidade. Frieda Hughes é muito generosa à memória do pai, tanto como escritor cioso de sua obra e daquela de sua companheira morta, como figura paterna modelar. Não são poemas fáceis, que se prestem a serem recitados em convescotes de poetas tolos, a autora exige concentração e imaginação do leitor. Alguns são curtos e sintéticos, outros bem mais longos e reflexivos. Gostei da série de poemas onde há uma metáfora envolvendo abelhas e balas. Noutro, a menção sofrida ao rio Letes, o rio do esquecimento, é mesmo um repasto para qualquer analista. É bom deixar-se encantar por este belo livro. [início 31/01/2009 - fim 03/02/2009]
"Ariel", Sylvia Plath, tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo, editora Verus (1a. edição) 2007, brochura 12,5x18, 209 págs. ISBN: 978-85-7686-026-6

quinta-feira, 5 de março de 2009

adeus, columbus

Em "Adeus, Columbus", publicado originalmente em 1959, Philip Roth nos ensina como se conta uma história. Qualquer aprendiz de escritor com pretensões literárias termina este livro e só pode desejar em ter uma fração deste talento quando crescer. São seis histórias na verdade, uma é um tanto maior que as demais. No título original ele escreve: "Goodbye, Columbus - and five short stories", portanto temos uma novela e cinco contos. Na novela Neil, um jovem judeu que vive com os tios em um subúrbio de Nova York se envolve com Brenda, judia novaiorquina cujo pai é um próspero construtor (exemplo típico da "jewish princess" cantada sarcásticamente por Frank Zappa, cabe dizer). O relacionamento é bom, mas na primeira crise entre eles (banal, pois surge quando os pais dela descobrem que ela usa um diafragma) ambos concordam que são menos sofisticados do que acreditavam ser. O sexo era mesmo um tabu nos anos 1950. Lembro de ter visto uma versão cinematrográfica desta história (com Ali MacGraw, deliciosa, e Richard Benjamin). Os contos do livro são igualmente poderosos: no primeiro um garoto humilhado por um rabino acaba obrigando toda uma comunidade a abjurar o judaísmo; no segundo um soldado judeu às vésperas de embarcar para a segunda grande guerra utiliza de artimanhas para escapar do serviço pesado; no terceiro um velho senhor trai a esposa e se vê enredado em uma série de confusões por conta de uma nódoa que aparece em sua virilha; no quarto um rapaz se aproxima de garotos encrenqueiros e paga um preço pelo azar; no quinto conto acompanhamos o choque cultural entre os habitantes de uma típica cidade protestante americana e um imigrante judeu ortodoxo (um jovem que está em vias de tornar-se pai é quem faz a intermediação entre a comunidade e o sujeito, que montou uma Yeshivá a revelia das tradições do lugar, hilário). São histórias curtas, mas todas muito interessantes. Muitos dos temas que vão ser tornar típicos da prosa de Philip Roth (o judaísmo, a sexualidade, os ideais americanos) aparecem com força. De fato é o livro ideal para entrar em contato com este excelente escritor. [início 28/01/2009 - fim 02/02/2009]
"Adeus, Columbus", Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2006, brochura 12,5x18, 285 págs. ISBN: 978-85-359-0947-8

quarta-feira, 4 de março de 2009

barcelona

Neste livro há 51 notas curtas, parte de um conjunto originalmente preparado para um blog diário, distribuído para vários sites e jornais, produzidas pelo jornalista Marcos Eizerik em 2003 durante sua estada em Barcelona, na Espanha. Não acompanhei o blog quando ele foi publicado originalmente, talvez tenha sido uma experiência boa, mas transpostas para um livro, a meu juízo, ele perde muito de sua força. Claro, ele escolheu as postagens que são menos datadas, mas, mesmo assim, o que nos é apresentado neste livro é mais daquela Barcelona chapa-branca, artificial, turística (e que o estado espanhol e a Catalunha vendem bem há anos), mas que não tem muito a ver com a realidade daquela cidade. A Barcelona profunda, que certamente ele conheceu ao morar lá durante um ano, aparece apenas em vislumbres em seu texto, e isto é uma pena. Barcelona é uma cidade que sabe ser cruel, como qualquer cidade grande e complexa sabe ser. Isto não é um problema, mas a glamurização que vaza das páginas de Marcos não ajuda o leitor a conhecer esta complexidade melhor. Acho que livros que falem sobre uma cidade devem ter o tom que Robert Hughes encontrou em "Barcelona: a grande feiticeira" por exemplo, onde ele é capaz de cantar as maravilhas da cidade sem deixar de contextualizar suas muitas contradições e defeitos (que afinal todas as cidades, todas as aldeias, todos os bairros, todas as cavernas, têm, e que aliás só se identificam por terem ser defeitos particulares). A meu juízo se alguém quer conhecer Barcelona deve ir a Barcelona, andar pelas ruas, pelo metro, andar a pé, falar com o povo e ir, lentamente, separando o "plan" turístico do "plan" cotidiano. É fácil ter experiências deste tipo. Um sujeito pode pegar um metro qualquer e deixar-se ir até as estações mais afastadas do centro. Lentamente o público vai mudar. Seguro que sim. Mudando o foco um tanto e pensando apenas na forma de apresentação do livro, Marcos usa em excesso fórmulas e bordões que cansam o leitor. As variações do "O caro senhor, cara senhora", usado vezes sem fim por Nelson Rodrigues, à época num falso desleixo que ele usava em suas crônicas diárias, décadas atrás, mais incomodam antes de agradar. José Roberto Torero, santista e jornalista dos bons, faz um generoso prefácio. Concordo com os argumentos que ele usa para apoiar o livro, principalmente com o que há de ficcional nele (há muito de invenção no livro). Nestes trechos Eizerik demonstra que é um bom escritor. [início - fim 28/01/2009]
"Barcelona: um ano com 365 dias", Marcos Eizerik, editora AGE (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 160 págs. ISBN: 978-85-7497-399-9

terça-feira, 3 de março de 2009

a quarentena

Bom. É covardia eu tentar comparar este livro com o anterior que resenhei. Este é mesmo um tremendo livro, daqueles que te fazem parar e pensar na vida, a se imaginar em um mundo diferente, mas ainda demasiadamente humano. Seminal. Há dois registros principais na história: um nos remete a própria biografia de Le Clézio, o sujeito que ganhou o prênio Nobel de literatura de 2008, o segundo registro é a invenção de Le Clézio, sua ficção. Qualquer um de nós, quando quer contar a história de um antepassado qualquer observa rapidamente que há muitas lacunas, datas contraditórias, movimentos que não se entendem muito bem. Em geral linearizamos tudo e escolhemos a versão mais épica e redentora, mas nobre e memorárvel afinal de contas. Le Clézio teve um tio-avô que em um determinado momento desapareceu em uma ilha do oceano Índico em meio a uma quarentena sanitária devido a uma epidemia, cousa comum naqueles tempos. Seus avós nunca souberam ao certo o que foi feito dele, mas contavam sua história. Na ficção de Le Clézio somos levados a acompanhar sucessos algo parecidos. Um jovem casal e um irmão mais jovem tomam o rumo das terras de seus pais (de novo aquela idéia de que devemos voltar para o lugar onde fomos concebidos, que Le Clézio explora nos outros livros dele que já resenhei aqui). Este lugar, este território, é a Ilha Maurício, um importante centro de produção de açucar para o império Inglês do final do século XIX. O avô deles é um poderoso plantador, que importa centenas de "cules", trabalhadores livres, chineses e hindus, trazidos da Índia e das demais possessões britânicas em substituição ao trabalho escravo. Ao chegarem perto da grande Ilha Maurício o navio se descobre infectado por tifo e todos os passageiros, tanto os modestos "cules" quanto os abastados europeus devem ficar em uma pequena ilha por um período de descontaminação. No início a maioria dos passageiros acredita tratar-se de um período curto, mas logo se percebe que o período de confinamento será grande. A pequena ilhota onde estão confinados, Plate, faz parte de um arquipélago próximo a um ilha chamada Gabriel, que por sua vez está localizada a pouco mais de 3Km da grande Ilha Maurício. Todo o conjunto de ilhas é inacessível sem ajuda externa. Estabelece-se um rígido controle dos viventes, os progressivamente mais doentes são isolados e depois, sabe-se num choque, levados a uma ilhota ainda menor, Coin de Mire, para deixarem-se morrer e serem incinerados. Os dois irmãos, Jacques - que é médico - e León, não são acometidos pela doença, mas Suzanne, mulher de Jacques, sim. Lentamente delira e definha. Os demais europeus que os acompanhavam no navio, um casal de botânicos, alguns comerciantes, exploradores, também caem doentes. O pior do ser humano aflora neste isolamento. A crueldade, o despotismo, o fanatismo. Enquanto padecem nestas ilhas, os dois irmãos pensam no avô e nas ricas terras a que eles deveriam ter direito, mas que foram deles usurpadas. A impotência é total, os dias se arrastam, as piras funerárias são varridas pelas ondas, o branco dos ossos calcinados deixa linhas sutis no duro basalto da praia. León aprende a perambular pelas ilhas, toma contato mais próximo com os "cules", que morrem aos montes, em silêncio, passivamente. Ele se envolve e por fim se apaixona por uma garota hindu, Suryavati, cuja mãe, da mesma forma que sua avó antes dela, foi levada por Shitar, a fria morte. Suzanne melhora de saúde ajudada por Suryavati. Após meses de privação, temor e morte, a doença arrefece e aos sobreviventes é permitido finalmente se deslocar para seu destino final. Léon opta por misturar-se com os "cules", deixando apenas Jacques e Suzanne embarcarem no grande navio de resgate. O quê será feito dele? A história nos é contada por um neto deste casal de sobreviventes, que viaja a grande Ilha Maurício para conhecer a última descendente do nobre plantador, Archambau, senhor da vida e da morte de milhares de trabalhadores. Encontra um mundo totalmente modificado. Há coisas demais neste livro para citar em uma curta resenha. Vale a pena navegar por ele, acompanhar os tantos destinos que se cruzam na pequena ilha Plate (que aliás é hoje a sede de belíssimos empreendimentos turísticos no Índico). Há coisas memoráveis neste livro. Um barqueiro, Mari, quase cego (um Caronte, como não), que os leva de Plate e Coin de Mire. A memória de uma noite Montparnasse, onde o pequeno Jacques viu o tonitroaente Rimbaud ameaçar um taberneiro. E a memória de um dia escaldante em Aden, logo no início do romance, onde o jovem médico Jacques é chamado para atender um francês que morre lentamente em um catre de Aden (de novo Rimbaud, mas agora em seu leito de morte). Li boa parte deste livro próximo ao mar, caminhando sem ritmo pela praia de Capão da Canoa, sentido de perto o vento salgado e o rumor bravio do mar. Depois li uma parte em um restaurante santamariense, onde ouvi na mesa do lado: "(...) tenho um pouco de sangue italiano!, diz um sujeito. Sangue bom, sangue bom!, replica um senhor." Que patético. A quarentena é mesmo um livro poderoso. Bom divertimento. [início 22/01/2009 - fim 25/01/2009]
"A quarentena", J.M.G. Le Clézio, tradução de Maria Lúcia Machado, editora Companhia das Letras (1a. edição) 1997, brochura 14x21, 363 págs. ISBN: 978-85-7164-705-4

segunda-feira, 2 de março de 2009

cordilheira

Neste "Cordilheira" Daniel Galera, jovem autor, emula uma voz feminina, certamente um exercício, um teste, para suas habilidades literárias. O texto é bem escrito, mas eu não fiquei totalmente convencido pelo romance (como uma história que se defenda sozinha e me leve a pensar na vida, ou que simplesmente me dê prazer). Paciência. Uma garota, escritora jovem, com amigos e amigas, tem um relacionamento afetivo com um sujeito ligeiramente mais velho. Na verdade ela quer ter um filho, mas este filho não é desejado pelo outro sujeito. Ela também está bloqueada, não consegue mais escrever após o sucesso de um primeiro romance. É dada a ela uma oportunidade de resolver os dois problemas ao ser convidada a lançar seu último livro na Argentina. A partir deste início bem explicadinho, linear, cheio de informações, o romance muda para Buenos Aires e seus mistérios (borginanos, claro) e surrealismos (cortazianos, claro). Ela se envolve com um sujeito e seu grupo de amigos. Trata-se de pessoas que levam a literatura de um jeito muito particular, não exatamente a sério: inventam um personagem, emulam sua vida até o fim baseados nesta personagem e produzem um livro onde o perfil, as memórias, a vida enfim desta personagem/identidade é contada. É de uma maluquice atroz, fazer o quê, mas metaforicamente claro que é reconhecível neste nosso mundo real, afinal de contas muita gente vive fantasias o tempo todo e abandona gradativamente as agruras do mundo real. A garota fica dividida entre seu desejo (mas que isto, decisão) de ter um filho e a constatação que o parceiro portenho que ela escolheu é totalmente tantã. O romance segue até um final que é mais ou menos previsível. Daniel Galera certamente conhece seu ofício e mantêm o livro nos eixos até o fim, navegando entre a ficção e a realidade, ora usando artifícios, ora descrevendo banalmente a imensidão dos Andes. Não é meu tipo preferido de livro (já que é mágico e irreal demais), mas a seu favor cabe dizer que ao lê-lo tentei lembrar de passagens do mesmo calibre (mas melhor resolvidas) de dois pesos-pesados que li recentente: Ian McEwan e Philip Roth. No fundo Daniel não faz feio. Cabe o registro final de que o romance é fruto de encomenda, pois faz parte de uma coleção chamda Amores Expressos (histórias de amor ambientadas em diversas cidades do mundo, diz a quarta-capa). No fundo todo romance é de encomenda, aprendi com o Carlos Heitor Cony, mas esta é outra história. [início 21/01/2009 - fim 22/01/2009]
"Cordilheira", Daniel Galera, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 174 págs. ISBN: 978-85-359-1326-2

domingo, 1 de março de 2009

el hermano pequeño

Este livro de Manuel Vázquez Montalbán foi escrito em 1994 e reúne oito contos onde o detetive Pepe Carvalho é o protagonista. O primeiro conto (e que dá nome ao livro) "El hermano pequeño" pode entrar na categoria de novela curta, pois trata-se de uma estória que tem pouco fôlego para virar um romance, mas é interessante e movimentada. Nela Carvalho já é um sujeito cansado. Depois de vinte anos ele já é um tanto mais suave, cerebral, não tão violento e cínico como costumava ser (principalmente com as mulheres). Neste primeiro conto Carvalho resolve o caso de um sindicalista que aparentemente se suicidou. O sujeito estava envolvido com os problemas advindos da retração econômica espanhola pós olimpíadas de Barcelona de 1992. Seu desaparecimento é conveniente para tanta gente que até a realidade do suicídio poderia ser considerada. Em um outro conto o mais interessante são os desvios da narrativa, onde Pepe rememora seu passado e ilustra um tanto seus dias na CIA e de como, nas suas próprias palavras: "yo maté a Marylin (Monroe)". Aqueles curiosos sobre seus anos de aprendizado no mundo da espionagem vão encontrar algum material (ainda que nebuloso) neste livro. Aparentemente há um "doppelgänger" dele preso em Zaragoza até hoje. Sujeito difícil de classificar este Carvalho. Os demais contos são como exercícios de um escritor hábil. Em dois deles ele emula Agatha Christie (e são a ela dedicados), noutro Dickens, noutro Raymond Chandler. Sempre são histórias que se resolvem sem que Carvalho tenha mesmo que participar, trabalhar muito. Ele é mais um observador discreto e sutil de fatos relacionados ao mundo dos seres que atraem problemas e se envolvem em situações embaraçosas ou mesmo perigosas. Ora estes personagens deixam que ele intervenha, noutras o proibem. Charo e Biscuter aparecem de longe, a primeira já está exilada e manteúda em Andorra, o último se preparando para o tal curso de sopas e caldos na "Le Cordon Blue" francesa. Lê-se o livro com prazer. Este é décimo-sétimo livro da série que consegui encontrar e ler. Agora só mesmo uma sorte livreira para conseguir os seis outros volumes que me faltam. Paciência então. [início 20/12/2008 - fim 21/01/2009]
"El hermano pequeño", Manuel Vázquez Montalbán, editora Planeta (1a. edição) 2003, brochura 15x23, 221 págs. ISBN 978-84-08-05956-1