domingo, 29 de abril de 2007

madeira de lei

Boj é buxo, uma árvore européia aparentada ao pau-brasil. Começei a ler este estranho livro por conta de um comentário de Don Paco Batallán sobre os galegos Camilo José Cela e Ramón del Valle-Inclán serem únicos grandes escritores espanhóis dignos de lembrança após Cervantes. Conceito radical e absoluto como ele mesmo. Grande sujeito. Isto ficou imerso no mar de minhas lembranças daquele almoço monumental em Cantoblanco com Paco e Manolo. Paco e eu escolhemos "Migas" (de primeiro, como se diz por lá) e ele ficou a explicar-me a origem deste prato extremeño e daí passou a falar o oeste da Espanha e sobre a Galícia. "Felipe II deveria ter feito de Lisboa sua capital e assim todos falariam espanhol lá também, talvez até no Brasil, mas ele tinha um problema com o mar, o pobre!". Grande Paco. De volta, passei na CESMA noutro dia e vi este livro exposto no mostrador. A capa é horrível, ao menos para o meu gosto e isto foi mas o que me chamou a atenção. Quando vi que o livro era do Cela resolvi comprar e logo começei a ler (as associações são sempre livres afinal de contas). É mesmo um livro estranho. Lembra um tanto o Grande Sertão: Veredas do Rosa pois há um narrador (o própria Cela ficamos sabendo) que conta de um só fôlego causos e mais causos do mar da Galícia. O ouvinte vez por outra faz um comentário, uma pergunta, mas nada que impeça o narrador de continuar sua longa arenga. Os temas da histórias são variados, mas relacionados a Finis Terrae, o ponto final do mundo na visão romana, ou seja, a forma como os romanos chamavam o extremo ocidental da península ibérica. Crenças populares, mitos, históricas de paixões e lutas, descrições da rica e variada história da região, lendas, frases feitas, lembranças do próprio Cela, puras invenções. Elas são unidas, de capa a capa, pela descrição de centenas de naufrágios que ocorreram nas proximidades do recortado mar galego. O mar ali é sempre encarpelado, rústico, cobrindo levemente baixios cheios de rochas prontas a ceifar um navio incauto. A recorrente compilação dos naufrágios quantifica os mortos, desaparecidos, sobreviventes de cada navio, cada um com uma bandeira diferente. No início os nomes dos navios e suas curtas mas fatais histórias incomodam um tanto, mas aos poucos entamos no ritmo, como quando estranhamos o balanço de um barco quando ele se põe ao mar. Cela inclui uma série de maneirismos e frases típicas da Galícia, sua mitologia particular. Há histórias deliciosas, como a do sujeito que ficou caolho após ter se comportado mal durante uma missa, ou a descrição das bençãos de Santa Casilda, a escolha curiosa que um grupo de marinheiros fez quando tentam salvar cabras e putas de um naufrágio. Na introdução do livro é dito que a versão original do livro (um dos últimos que escreveu) foi traduzida para o castelhano com um apêndice de 70 páginas explicando os termos galegos, mas que para nós brasileiros isto não se fazia necessário, tamanha a similaridade entre as duas línguas. Bom, não estou tão convencido assim, um dia vou procurar o livro espanhol para comparar. Belo livro mas preciso voltar ao quarteto do Durrell de uma vez e terminá-lo. Vamos a ver...
"Madeira de lei", Camilo José Cela, tradução de Mário Pontes, editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2001) ISBN: 85-286-0818-2

sábado, 28 de abril de 2007

jogo rápido


Resolvi comprar este livro pois desde que começei o Quarteto de Alexandria estas duas palavras têm se apresentado em outros livros. Quarteto é mais um de Manuel Vázquez Montalbán que leio, mas não é da série com as aventuras do detetive e gastrônomo "Pep Carval.lo". Esta é uma novela curta onde um pequeno grupo tem sua vida afetada por um assassinato que lembra o suicídio de Ofélia no Hamlet: "Ali onde achareis um salgueiro crescendo à beira deste arroio, repetindo nas ondas cristalinas a imagem de suas pálidas folhas...". A apresentação crime, os desdobramentos e o desfecho rápido se sucedem em curtos quatro capítulos. Saber quem é o assassino não é um problema. Logo após a apresentação dos personagens já temos nosso candidato natural e o livro não nos tira o prazer de acertarmos a adivinhação. Apesar de curta esta novela é rica em descrições de comportamentos e aspectos da vida cotidiana das pessoas. O inevitável humor negro que preenche o livro de capa a capa é uma maravilha de se ler. Sentimos falta de Charo, de Biscuter e suas receitas mirabolantes, de Fuster, de Bromuro, do próprio Pepe, mas neste livro não há tempo para tramas paralelas. Se eu me estender mais acabo tirando boa parte das surpresas do livro (sim claro, há surpresas mesmo em livrinhos curtos como este). Além disto eu já estou quase a terminar um outro livro e vou escrever aí em cima algo sobre ele. Finito: Quarteto é um belo livro para se iniciar no estilo vibrante, de primeiríssima linha, deste finado catalão.
"Quarteto", Manuel Vázquez Montalbán, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, editora Objetiva, 1a. edição (2006) ISBN: 85-7302-701-0

més una vegada


Descobri o Montalbán há pouco, mas já sou um entusiasta de seu estilo rápido e irônico. Ao ler "A Rosa de Alexandria" não tinha idéia de quão prolífico ele foi, nem como era tão respeitado no mundo da língua castelhana. "O homem da minha vida" é mais um livro da série Carvalho, seu alter ego, um detetive particular que tem uma cultura vastíssima e um sarcasmo natural igualmente imenso. Gosto destes livros pelas breves descrições de lugares e paisagens catalãs, que quero guardar melhor na memória. Há citações de restaurantes e as inevitáveis receitas da "vieja catalunya" que eu gostaria de já ter conhecido antes, pois teria tido a chance de visitá-los. Quem sabe em um outro dia. Neste volume, um dos últimos da série, publicado três anos antes da morte do autor, Pepe Carvalho está as voltas com um assassinato bizarro, promovido por uma seita religiosa aparentemente, e as injunções políticas disto em uma Catalunha às vésperas de eleições municipais. Os temas que estão na pauta da política espanhola atualmente: os novos estatutos de autodeterminação das comunicadades, o uso língua catalã como instrumento de identificação daquela região, a disputa pelos direitos e deveres de cada região. Todos eles estão antecipados no livro mas talvez estes temas sempre estivessem por lá e seja eu o desinformado. A análise econômica e política dos problemas é bastante original e leva o leitor a pensar no papel do homem comum, do indivíduo, neste início de século tão conturbado. Além desta crime para resolver o personagem principal tem de ajustar algumas pendências afetivas, o reencontro com duas antigas namoradas e seu estranhamento no retorno a Barcelona após uma temporada longa em Buenos Aires. Não fosse Manuel Vázquez Montalbán um catalão de quatro costados dificilmente ficaria sem críticas pelo seu franco deboche de temas muito caros aos catalães: a língua, o turismo, a história e as tradições. Em algum momento ele define ácido: "Bonita, mas sem alma", mas talvez fosse porque o narrador estava cansado demais e desesperado demais para avaliar com isenção. Noutra ele escreve: "Na época dos Jogos Olímpicos contruiram aqui um imenso teatro e agora nem sempre encontram espetáculos para ele". Igualmente cruel e ambíguo. Recomendo sem reservas. É um livro que se lê descansado, muito gostoso mesmo. Vou continuar garimpando mais coisas deste sujeito.
"O Homem da Minha Vida", Manuel Vázquez Montalbán, tradução de Rosa Freire d'Aguiar, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2003) ISBN: 85-359-0421-2

sexta-feira, 20 de abril de 2007

mountolive

Eu já avisei antes, mas é bom repetir novamente: não leia esta resenha se você ainda não leu Justine e Balthazar , ou melhor, faça o que lhe aprouver, mas cuidado. Terminei ontem Mountolive, o terceiro volume da tetralogia "O Quarteto de Alexandria". Mais uma camada do pergaminho foi desvelada e sabemos um tanto mais sobre alguns aspectos obscuros nos outros dois volumes. Ficamos sabendo finalmente o nome do narrador dos dois primeiros e nos conformamos afinal com o fato dele ser bem menos senhor do suas vontades do que parecia no primeiro volume. O formato mudou um tanto neste volume. Um personagem menor dos anteriores é agora o protagonista e aquele quem experimenta a maior parte dos fatos descritos. Os capítulos são como anteriormente bem variados. Há cartas, memórias, simples descrições. Já previnido pela transição abrupta de Balthazar em relação a Justine fiquei esperando reviravoltas em Mountolive, mas confesso que há algo que me deixou menos entusiasmado neste volume. As surpresas são muitas (por isto mesmo ainda vale a lembrança de que o risco da leitura desta resenha é todo teu), mas é como se o tom delas revelassem ser mesmo uma construção humana o livro e por isto mesmo vemos a maquinaria da construção de um romance, de uma ficção e não o retrato de um aspecto do mundo real. É difícil não lembrar do "Em busca do tempo perdido" ao terminarmos este volume. Como nesta seqüência de livros do Durrell, Proust também apronta uma série de metamorfoses em seus personagens e vai nos surpreendendo sutilmente ao revelá-las. Acho que a maquinaria literária do Proust mais verossímel e adequada, mas ainda não enfrentei o último volume do Durrell para ser assim tão duro com ele. O velho Proust povoa minha memória com camadas e camadas de aspectos da psique humana e eu não me canso de tentar entender as nuances das escolhas morais de seus personagens. Um tanto menos cromático Durrell nos apresenta Mountolive quase como uma história de detetives e de intrigas diplomáticas. Ficamos sabendo como funcionava um tanto a burocracia no oriente médio no período entre grandes guerras. Assim como Mountolive terminamos o livro cansados daquele exotismo mediterrâneo e oriental. As muitas vozes do livro competem entre si e agora percebemos que há infinitos muitos possíveis e o autor, por força da sua arte, pode construir o que bem lhe aprouver. Cada um de nós, por mania, cupidez, moralismo ou despreendimento escreveria um desenlaçe distinto. Antes de passar a Clea vou ficar um tempo pensando em como eu terminaria este livro, em como eu resolveria as questões que se apresentaram até aqui. Será que minha versão imaginada encontrará semelhanças com a versão real? Veremos.
"Mountolive - O Quarteto de Alexandria", Lawrence Durrell, tradução de Daniel Pellizzari, editora Ediouro, 1a. edição (2006) ISBN: 85-00-01758-0

segunda-feira, 16 de abril de 2007

costas extrañas

Os livros que li do Coetzee em 2004 foram meus favoritos. Logo após dele ter ganho o prêmio Nobel de 2003 resolvi experimentar "Disgrace" e logo falei para meus amigos do quanto estava gostando. Passei à todos os outros em português e logo virei um entusiasta. Fui a sebos procurar antigas traduções de seus livros mais antigos e ainda não reeditados pela Companhia das Letras, sua atual editora no Brasil. Dentro outros li também as traduções de "The Master of Petersburg", de "Boyhood" e de "Youth" (meus favoritos, confesso) e de "Elisabeth Costello". Tentei até emular seu estilo seco e objetivo, mas não sou um escritor e sim um leitor contumaz. Logo desisti e fiquei apenas na tentativa. Semana passada, andando por Madrid, encontrei um livro de ensaios dele: Costas Extrañas. Resolvi experimentar e pronto, a velha mágica dele tinha uma vez mais funcionado comigo. São 26 ensaios escritos entre 1986 e 1999, alguns sobre já clássicos óbvios: Borges, Kafka, Rilke e Turgueniev e outros de autores talvez um tanto menos conhecidos, mas representantes fortes da literatura rica e multifacetada de sua África natal: Mahfuz, Breytenbach, Nadine Gordimer e Daphne Rooke. A maioria deles foi inicialmente produzida para publicação no The New York Review of Books. Estamos falando então de um livro sobre muitos outros livros. Em geral ele coteja uma tradução recente à época, com sua própria leitura no original feitas anos antes. Noutras vezes ele faz um balanço da produção total de um sujeito. Sua prosa nestes ensaios é tão convincente e agradável quanto a que experimentei nos livros de ficção. Gostaria de assistir uma das aula de crítica da literatura que ele dá na Austrália e na Cidade do Cabo alternadamente. Vez ou outra há uma sutil ironia dirigida ao autor ou aos tradutores dos livros, mas sempre é algo que ajuda o leitor a formar opinião e decidir-se por aventurar-se ou não naquela leitura. A abrangência dos interesses é enorme, mas mesmo quando se trata de alguém sobre quem nunca ouvi falar minha atenção nunca é desviada. Como diz a contracapa do livro "... existem livros que remetem a outros livros, a outros autores e histórias e que nos convidam a continuar reflexões pessoais de mestres da literatura e da crítica". Costas Extrañas é mesmo uma festa para a inteligência e também uma pequena mostra da força deste excelente escritor.
Costas Extrañas. Ensayos, 1986-1999, J.M. Coetzee, traducción de Pedro Tena, editora Debate, 2a. edición (2005), ISBN: 84-8306-593-2