domingo, 28 de novembro de 2010

romances de cordel

Nesta bonita edição da José Olympio estão reunidos quatro poemas de cordel de Ferreira Gullar. São poemas antigos, do inìcio dos anos 1960, feitos para contribuir para a luta polìtica (talvez naquela época um sujeito podia acreditar menos anacronicamente que a esperança é irmã do desejo). São poemas engajados, que têm mais valor para a historiografia do que para a literatura ( digo isto como um sujeito que mal e porcamente consome poesias). Paciência. Um dos poemas fala da vida dura no campo; outro das desgraças da vida em uma favela; o terceiro conta um causo engraçado, um desafio de cordel entre um brasileiro ladino e o tio sam; o último conta um tanto sobre Gregório Bezerra, à época preso pela ditadura militar. Os poemas não têm o frescor das coisas genuinamente populares, naïves, mas são honestos no seu propósito e forma. O livro inclui ilustrações muito boas de Ciro Fernandes, um dos decanos da gravura brasileira. A sintonia entre poeta e gravador é perfeita. O livro é gostoso de ler e de se folhear, excelente para os dias vagabundos destas férias que se avizinham. [início 13/11/2010 - fim 19/11/2010]
"Romances de cordel (1964-1967)", Ferreira Gullar, ilustrações de Ciro Fernandes, editora José Olympio, 1a. edição (2009), brochura 20x20 cm, 95 págs. ISBN: 978-85-03-01019-1

sábado, 27 de novembro de 2010

puro enquanto

Em "Puro enquanto" encontramos duas séries de textos. Dois terços dele são dedicados a compilação de toda obra inédita em livro de Sérgio Luís Fischer, professor de literatura que atuava em Porto Alegre e que morreu recentemente. Há um romance policial praticamente pronto, "Elementar, meu caro Bogart!", que não faria feio em nenhuma biblioteca de novelas negras - como dizem deste gênero os espanhóis; outras quatro narrativas curtas tem a ossatura e o clima de romances policiais, mas ainda no estágio de idéias impressas, que mereceriam algum estofo. São cinco textos muito bons, que percorrem vários dos estilos/tipos de romances policiais. Há sempre algo de cinematográfico nas histórias, os elementos visuais são realmente fortes. Outra coisa que me chamou a atenção é que nestes textos ele não dá nome próprio aos personagens. O efeito nas narrativas se faz sentir, pois o leitor se comporta como um ajudante de detetive que não conhece muito do que investiga. Curioso. Além destas narrativas encontramos crônicas (recompiladas de um blog mantido por Fischer tempos atrás, onde ele mistura sarcasmo e erudição); poemas e sonetos (aparentemente Fischer era um estilista nesta forma, mas eu sou o menor dos anões quando leio poesia, sem norte, sem paciência, fazer o quê?); artigos (um sobre a teoria dos romances policiais, o sujeito gostava e conhecia mesmo este assunto). Como tudo que é recolhido por terceiros de uma gaveta de guardados não se pode dizer que os textos possam se defender sozinhos. Há poemas e sonetos por exemplo que são muito bons, mas há coisas menos fortes, que talvez ele mesmo não gostasse de ver impressas. Mas quando se quer homenagear um sujeito a melhor coisa é oferecer algo dele mesmo, sem intermediários, sem tradução. Enfim, a obra reunida de Sérgio Fischer está agora aí ao dispor dos leitores. O livro inclui também uma terça parte formada por testemunhos e memórias sobre ele, de parentes e amigos. São mais de sessenta depoimentos. Eles formam uma espécie de "Festschrift" - aqueles livros comemorativos que os alemães costumam preparar quando um acadêmico importante se aposenta, reunindo textos de seus ex-alunos e colegas. Apesar de entender a motivação e o desejo real de homenagear um sujeito que deixou memória marcante em seu círculo de relações afetivas e profissionais, acho esta parte do livro maçante e repetitiva. Todavia ela cumpre uma função no luto de cada um, e disto não se pode desdenhar. [início 19/11/2010 - fim 23/11/2010]
"Sérgio Fischer: Puro enquanto - obra reunida", Sérgio Luís Fischer, Luís Augusto Fischer (org,) editora LP&M, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 295 págs. ISBN: 978-85-254-2026-8

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

a memória vegetal

Em "A memória vegetal" estão reunidos dezenove artigos, prefácios de livros, palestras e comunicações acadêmicas de Umberto Eco. São textos escritos entre 1988 e 2005, que tratam genericamente da bibliofilia, ou seja, do colecionismo, do amor ao livro enquanto objeto, enquanto coisa que se tem. Umberto Eco não fala de livros comuns, mas dos livros raros, dos incunábulos, dos livros da época de Gutenberg. Apesar de ler um ou outro dos artigos com curiosidade, a maioria deles é muito técnico. Na verdade, quase a totalidade dos artigos é monótona e irrelevante (porque um sujeito comum, não envolvido no elitista mercado dos colecionadores de livros raros, se interessaria na simples listagem dos livros do século XVIII que discutem se Shakespeare era Shakespeare ou se era Francis Bacon?, ou se interessaria na listagem de livros apresentados em um leilão que se realizou em 1997?). Claro, você sempre aprende algo em qualquer livro, mas por este eu me senti enganado, como se estivesse lendo não exatamente aquilo que esperava ler. Interessante mesmo só o artigo que dá nome ao livro (escrito em 1991, duas décadas atrás, na época das cavernas da cultura digital)., e um outro, onde Eco discute as diferenças entre bibliófilos, bibliômanos, biblioclastas, onde o leitor também encontrará alguma reflexão consistente sobre o mundo dos livros. Os demais são mesmo papel e tinta jogados fora, um desperdício, um caça-níqueis para trouxas compulsivos como eu. Arre! [início 13/11/2010 - fim 16/11/2010]
"A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofiilia", Umberto Eco, tradução de Joana Angélica d´Avila, editora Record, 1a. edição (2010), brochura 13,5x21 cm, 271 págs. ISBN: 978-85-01-08332-6

domingo, 21 de novembro de 2010

a louca de maigret

Atrapado em um aeroporto no interior das minas dos matos gerais fiquei verdadeiramente chateado quando percebi que terminaria ainda ali, longe de casa, o último dos livros que havia incluído na bagagem. O divertido "París no se acaba nunca" se acabava, era tempo de encontrar algo novo para ler, e rápido. Na conexão em São Paulo consegui uns poucos minutos livres e eis que um Simenon, justo este "A louca de Maigret", coube a mim. Quando foi que o li pela última vez? Há uns vinte anos provavelmente. Minha veia de leitor de romances policiais secou por anos. Foi o Manolo Montalbán quem me resgatou para este gênero, e isto muito recentemente. O quê dizer dos livros de Simenon? São bons romances, sem descrições supérfluas, repletos de diálogos que conduzem freneticamente qualquer história. Mas a maquinaria das histórias de detetive está tão entranhada na prosa de Simenon que a irrelevância da leitura fica quase explícita. Ele conduz o leitor por um labirinto de possibilidades de investigação e até permite que este possa aventar uma ou outra delas como a solução do crime em questão, mas seu detetive é demasiado hábil, demasiado implacável. Em "A louca de Maigret" o detetive coloca seu engenho na investigação do assassinato de uma velhinha que ele poderia ter salvo, caso levasse seus temores mais a sério. Por se sentir algo responsável ele dedica seu tempo livre em acossar os suspeitos mais à mão, parentes dela e agregados, praticamente deixando-os se enredar por si próprios, em uma transferência clássica de culpa (investigadores, assim como os médicos, devem aprender cedo a não se envolverem emocionalmente com nada). Se falta materialidade ao crime, se é praticamente impossível imputar a responsabilidade a quem induziu de fato o assassinato, Maigret o deixa com sua culpa privada, que provavelmente o assombrará por anos. É um livro fácil de ler (antes do avião aterrisar eu já o havia terminado), já cumpriu sua missão. Preciso voltar a algo com mais estofo para me divertir de verdade. [início - fim 13/11/2010]
"A louca de Maigret", Georges Simenon, tradução de Paulo Neves, editora L&PM Pocket (v. 792), 1a. edição (2009), brochura 10,5x18 cm, 158 págs. ISBN: 978-85-254-1906-4

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

parís no se acaba nunca

"París no se acaba nunca" é um bom romance, mas não é fácil classificá-lo. O quê Enrique Vila-Matas nos apresenta mesmo? Uma divertida memória de seus anos em Paris, dos tempos em que escrevia sua primeira novela (na verdade segunda, la asesina ilustrada, mas esta é outra história); um ensaio descompromissado sobre o ofìcio de escrever, dos procedimentos técnicos da construção de um romance; um inventivo texto de ficção, onde acompanhamos as obsessões de um sujeito algo arrivista, dono de uma poderosa capacidade de imaginação? Talvez um tanto de cada uma destas coisas. Publicado originalmente em 2003 o livro descreve a París de meados dos anos 1970. Vila-Matas abusa de sua memória literária, recheando o livro com citações, causos, encontros com intelectuais e escritores, reflexões sobre literatura e arte. O livro é escrito como se fosse uma comunicação oral para uma conferência. É também uma homenagem e/ou paródia de Hemingway e seu livro póstumo "Paris é uma festa", publicado exatamente na época em que Vila-Matas vivia em Paris e tentava escrever seu livro. É um livro pequeno, que se deixa ler com prazer, dividido em curtos capítulos (são mais de 100), que podem ser lidos independentemente mas são conectados por uma grande idéia. Vila-Matas fala muito sobre literatura e estruturas narrativas, mas também sobre o mundo do cinema, da política, das teorias sobre a ironia e a mentira, do amor e amizade, da solidão, do auto-exílio. Para um sujeito que gosta de frases como eu o livro é que é uma festa. Sempre me surpreendo com a comunicação entre os livros: três semanas atrás achei por acaso "la asesina ilustrada", uma semana depois outro acaso e resolvo começar este "parís no se acaba nunca", que descreve exatamente a gênese do primeiro. Pura magia. Cousas dos livros. [início 09/11/2010 - fim 13/11/2010]
"París no se acaba nunca", Enrique Vila-Matas, editorial Anagrama (compactos), 3a. edição (2009), brochura 13,5x19,5 cm, 233 págs. ISBN: 978-84-339-7267-5

domingo, 7 de novembro de 2010

nuestra pandilla

Dei sorte ao encontrar este livrinho perdido em um balaio da feira do livro de Porto Alegre. Cousa boa. "Nuestra pandilla" (ou "Our Gang" no original) é uma deliciosa sátira política publicada por Philip Roth em 1971. Na verdade ao menos a versão inicial dos seis capítulos deste pequeno livro foram publicados antes disto como artigos da New York Review of Books. O livro descreve sucessos delirantes, discursos tortos, entrevistas patéticas e conversas abúlicas de um amalucado presidente americano chamado Trick E. Dixon, óbvia caricatura de Richard Nixon. É hilariante, do começo ao fim. Mesmo quem pouco sabe do processo de impeachment pelo qual passou Nixon no meio de seu segundo mandato presidencial consegue acompanhar este livro sem maiores problemas. O incrível deste livro é saber que ele foi publicado antes do segundo mandato de Nixon, ou seja, antes do caso Watergate, antes do impeachment, antes que a maioria dos americanos entendessem o quão criminoso e estúpido era Nixon. Os bons romancistas sabem ser antenas da raça, como dizia Ezra Pound de alguns bons poetas. Philip Roth nos apresenta um Dixon sem escrúpulos, disposto a qualquer mentira, qualquer trapaça para continuar no poder. Não há método em sua loucura. Não há limites para sua desinteligência. O logro, a manipulação, a lógica difusa e obtusa do sujeito está a serviço de todo e qualquer mal. Seu discurso defendendo o voto dos fetos, seu comunicado à nação defendendo a invasão da Dinamarca por conta da pujante (e ultrajante) industria pornográfica instalada naquele país, sua reunião de gabinete nos porões da Casa Branca, são algumas das passagens divertidíssimas que encontramos no livro. Mas diferentemente do mundo real (onde Nixon foi reeleito com estrondosa maioria) no livro Dixon é assassinado e já no inferno candidata-se a suceder o próprio demônio. Ele não é eficiente o bastante para continuar neste posto, afirma Dixon em seu discurso infernal. Qualquer sujeito que não tenha sido lobotomizado e tenha alguma honestidade intelectual terá muitos motivos para se divertir com este livro, mesmo sabendo o quão revelador ele é do estado das cousas deste néscio Brasil de nossos dias. Grande Philip Roth. [início 02/11/2010 - fim 07/11/2010]
"Nuestra pandilla", Philip Roth, tradução de Ramón Buenaventura, editora Debolsillo, (Contemporánea) 1a. edição (2010), brochura 13x19 cm, 176 págs. ISBN: 978-987-566-578-1

sábado, 6 de novembro de 2010

la asesina ilustrada

Pois achei este livro no primeiro dia desta última feira do livro de Porto Alegre. Como me pareceu divertido "Dublinesca", achei que um pouco da ironia e erudição de Vila-Matas vinha a calhar com meu humor daqueles dias. Foram mesmo bons dias de leitura. O livro foi publicado originalmente em 1977. Segundo o próprio Vila-Matas afirma em um prefácio "La asesina ilustrada" foi seu segundo livro. Para ele o primeiro, "Mujer en el espejo contemplando el paisaje", é obtuso e irrelevante demais para que mereça ser lembrado (os velhos autores sempre lamentam as tolices de suas jovens encarnações). A edição é muito bem cuidada, com ilustrações de um sujeito chamado Óscar Astromujoff e um curto epílogo de um crítico chamado Jordi Llovet, que descreve uma reflexão pública sobre o livro feita por ele mesmo a uma indignada audiência barcelonesa, trinta anos atrás. O enredo é circular. Acompanhamos como um texto, a curta novela "la asesina ilustrada", passa por várias mãos e sempre alcança o mesmo efeito: provocar a morte do leitor. Vila-Matas adverte no prefácio que o leitor que tem o livro em mãos não corre mesmo este risco. Só um tolo e jovem escritor poderia ter uma idéia deste tipo (nem tão original assim, lembra ele mesmo, já que até Agatha Christie já tinha usado este artifício antes), pois com isto não teria leitores, apenas uma pequena coleção de ex-leitores mortos. Em torno da história assassina (vamos chamar assim) ele inclui relatos de uma jovem escritora, contratada para escrever o prólogo da biografia de uns dos leitores anteriores do texto (e consequentemente, já falecido), além de cartas da autora da historia a outros personagens. É mesmo uma história curta, um curto romance de trama intrincada, mas que se permite deslindar sem grandes esforços. Bueno, acho que vou começar a garimpar mais livros deste curioso e sarcástico catalão. [início 28/10/2010 - fim 03/11/2010]
"La asesina ilustrada", Enrique Vila-Matas, ilustrações de Óscar Astromujoff, ediciones Lumen, 1a. edição (2005), capa-dura 14x21 cm, 137 págs. ISBN: 978-84-264-1517-2

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

crônicas da vida boêmia

Me interessei neste livro após encontrar com o Valmor e um grupo de amigos dele na feira do livro de Porto Alegre. Recentemente eles haviam ido a Rivera e se envolveram em uma mirabolante história com "um amigo do Gaspar", que talvez um dia o Valmor conte. Veremos. Acabei comprando o livro e me diverti acompanhando os "causos" lembrados por Luciano Machado. São histórias da fronteira, de uma região que já foi bem mais próspera do que é agora, desgraçadamente pobre como praticamente toda metade sul do estado. As lembranças algo romanceadas de Luciano Machado descrevem personagens fortes, divertidos, por vezes violentos, quase caricaturais. Como toda vida boêmia, em qualquer tempo ou lugar, quando o dinheiro é farto vive-se sem limites, acumulam-se experiências que não podem mesmo durar para para sempre, quando o dinheiro muda de mãos (é rápido) os boêmios desaparecem, quase anônimos, perdem o encanto, como se acordassem todos mal humorados após um sonho ruim. Se a brevidade das histórias dá a elas um bom ritmo, a melancolia acaba por cobrar um quinhão do leitor. Bueno. Indicarei este livro para o Lippold, pois nele há algo de suas histórias boêmias, de suas histórias santa-marienses, contadas no "A culpa é do padre", já resenhado aqui. O mundo é mesmo uma grande vila e seus personagens quase sempre seguem o mesmo roteiro. [início - fim 03/11/2010]
"Crônicas da vida boêmia de Sant´Ana e Rivera", Luciano Machado, edições Renascença, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 93 págs. ISBN: 978-85-87004-88-8

terça-feira, 2 de novembro de 2010

la desaparición del muro

Demorei para conseguir este livro, mas com engenho e alguma arte ele se juntou a meus guardados, vindo de Alicante, vejam só. Bueno. O escritor holandês Cees Nooteboom tinha já seus cinquenta e muitos anos quando ganhou uma bolsa da agência alemã de intercâmbio acadêmico DAAD para passar um ano sabático em Berlin, cidade ainda dividida no final dos anos 1980. Já um escritor respeitado, tanto por sua poesia quanto pelos relatos de viagens e narrativas longas que publicou, ele deveria, em contrapartida à bolsa, fazer uma série de conferências, tanto na Alemanha Ocidental (RFA, a república federal) quanto na Alemanha Oriental (RDA, a república democrática). Quis a fortuna que o início da queda do muro de Berlin acontecesse exatamente no meio de seu período de estadia por lá (foi no 09 de novembro de 1989, não é tanto tempo assim, mas como o mundo parece ter mudado!) Para ele, um viajante por natureza, bom observador da paisagem natural mas também da alma humana, do comportamento humano, esta foi uma experiência importante e seminal. Foi como se a própria Clio, a musa da história, o acompanhasse naqueles meses agitados, convidando-o a desfrutar das transformações radicais pelo qual passaram não apenas o povo das duas alemanhas, mas o de toda a Europa, de todo o mundo. Lembro-me que Katya estava lá e pegou um pedaço do muro. Será que ela ainda o tem? O livro começa com um prólogo, escrito ainda em 1963. Nooteboom tem 30 anos e vai a Berlin Oriental para cobrir como jornalista um congresso dos partidos socialistas do mundo. O controle de entrada e saída é muito restrito, redundante, a atmosfera tensa. Já aquela época ele consegue registrar muito bem as sutilezas do modo de pensar e agir dos delegados. Quem seria o brasileiro que tinha assento lá naqueles dias? Talvez algum dos patetas que atualmente governam o Brasil e que teimam em impingir um stanilismo albanês nesta freguesia. Bueno. "O olho não se engana", nos ensina Nooteboom, há que se respeitar o valor das coisas que vemos e também as que intuímos, não podemos apenas confiar em nossos ouvidos, mais sensíveis as adulações, as chantagens, à corrupção. As crônicas do livro foram reunidas em dois conjuntos e publicadas em revistas no período compreendido entre 18 de março de 1989, quando de sua chegada ao já conturbado país, até 30 de junho de 1990, quando sai da Alemanha e já não acompanha in loco os acontecimentos, as discussões e a futurologia que contaminava a todos. Os dois conjuntos de crônicas são separados por dois intermezzos (ah, como é bom a um escritor também saber um pouco de música, de composição, de regência). Neles ele descreve a região e a história de Munique, cidade emblemática dos sonhos românticos de união alemã (que afinal deu-se muito tardiamente, quase no final do século XIX). Nas crônicas anteriores a queda do muro ele descreve seus limites, a forma como tudo na cidade parece condenado ao imobilismo. Todos espiam todos, delatam todos, a Alemanha Oriental é o paraíso dos stanilistas mais furibundos. As crônicas posteriores a queda descrevem o imobilismo que se torna caos, talvez um caos determinístico (para usar uma metáfora da ciência), onde tudo - valores, privilégios, procedimentos, rotinas, comportamentos, regras, direitos, deveres - se agitam, se transformam rapidamente, mas seus efeitos ainda podem ser interpretados racionalmente. Há coisas curiosas observadas por ele: um dia um sujeito é um líder irresoluto, no dia seguinte já é um cadáver político, condenado pelas circunstâncias; os autóctones perguntam aos extrangeiros a opinião deles como se fossem oráculos, Sibilas, mas Nooteboom sabe-se mais uma Cassandra vulgar. Além de continuar com as palestras e conferências boa parte de seus últimos meses por lá foram utilizados para viagens longas, até os novos limites da nova Alemanha. Nooteboom é um jornalista senhor de seus meios, mas também "el viajero", o sujeito que sabe desfrutar da paisagem, de descobrir coisas novas, irrelevantes que sejam. Nestas viagens verificamos como há valor no conhecimento das línguas, na familiaridade com a história das gentes e dos lugares. Suas reflexões me parecem pertinentes ainda hoje, mais de vinte anos após a queda do muro. A Alemanha tornou-se o país mais rico e influente da Europa (realidade que americanos, russos e os demais europeus sempre anteciparam e temeram). Um leitor curioso, interessado neste tema, certamente muito aprenderá com as palavras e as metáforas (sempre poderosas) de Cees Nooteboom. Encontrarei novamente algo deste grande sujeito, deste grande poeta, deste grande holandês errante? Veremos. [início 31/08/2010 - fim 30/10/2010]
"La desaparición del muro: crónicas alemanas", Cees Nooteboom, tradução de María del Carmen Bartolomé Corrochano e Pieter J. van de Paverd, ediciones Península, 1a. edição (1992), brochura 13,5x19,5 cm, 208 págs. ISBN: 978-84-2973-403-4

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

um outro pastoreio

"Um outro pastoreio" é uma curiosa graphic novel cujo argumento foi concebido por dois gaúchos: Rodrigo dMart, que assina o roteiro, e Índio San, que produziu as ilustrações, belíssimas. Trata-se do resultado de um projeto ambicioso, que inclui um blog e um site cheio de informações. Os autores tiveram a ajuda e colaboração de muitas pessoas. O livro é bastante bom. A edição caprichada valoriza o texto. O design lembra muito as histórias do Neil Gaiman, mas tem sua marca pessoal. O texto é intrincado mas não hermético a ponto de desistimular o leitor. A enredo nos remete a lenda do "Negrinho do pastoreio", mito popular muito antigo que foi compilado no início do século passado por Simões Lopes Neto em seu "Contos Gauchescos". Os autores revisitam este mito entelaçando-o com mitos do Candomblé, como o de Iansã e Ogum, e também com a caminhada de um velho peregrino, Simão, em busca de sua fé perdida na natureza e nos homens. Por ter o dom de encontrar coisas perdidas o "Negrinho do pastoreio" serve bem como arquétipo destas duas jornadas (a do velho peregrino e a da orixá Iansã) em busca de algo que os complete. Há um bocado de associações religiosas e mitológicas que podem ser feitas a partir da leitura da história. Um leitor não familiarizado com o Candomblé (exatamente o meu caso) não perde muito da trama, pois tudo é bem descrito e apresentado. O livro inclui um bom glossário e o texto integral da história original de Simões Lopes Neto. A capa dura, a boa escolha dos tipos gráficos e o belo acabamento do livro realmente tornam divertidos e prazeirosos os momentos de leitura (poderá um dispositivo digital oferecer algo parecido com isto algum dia? Logo veremos...). [início 04/10/2010 - fim 26/10/2010]
"Um outro pastoreio", Rodrigo dMart, Indio San, editora Manuzio, 1a. edição (2010), capa-dura 15,5x23,5 cm, 208 págs. ISBN: 978-85-910-9520-9