quarta-feira, 21 de março de 2012

lección pasada de moda

Os quarentas e nove textos deste "Lección pasada de moda" são ouro puro, muito bons mesmo. O mais antigo é de 1987 e os mais recentes de 2011. O leitor pode encontrá-los dispersos por dez volumes de artigos de Marías, como por exemplo  Mano de sombra, Harán de mí un criminal ou Ni se les ocurra disparar, mas reunidos aqui eles ganham maior potência e funcionam como um quase-ensaio de filologia (um sujeito fica até envergonhado de escrever qualquer coisa logo após terminar o livro, tamanha a vertigem). Nestes textos Marías fala sobre o uso (sobretudo o mal uso) da língua espanhola. Filósofo de formação, professor e tradutor experimentado, escritor muito inventivo e premiado, além de membro da Real Academia (de la Lengua) Española,  Javier Marías é um sujeito que sabe argumentar e convencer. Suas preocupações são pertinentes e vastas. A forma como o livro foi organizado ajuda o leitor a entender seus pontos de vista. Há textos onde ele enfatiza aspectos relacionados à escrita, onde ele fala dos erros de gramática que encontra nos jornais espanhóis; há aqueles relacionados à fala (principalmente sobre o quão mal seus conterrâneos falam no dia-a-dia, em contraste com o uso mais objetivo e claro, segundo ele, dos mexicanos e latino-americanos em geral); noutros Marías se escandaliza com os erros absurdos de tradução, seja técnica ou literária, que já parecem incorporados à lingua, por conta de reiterado mal uso por jornalistas ou escritores menores; os textos onde ele fala de tolas tentativas de impor, através de legislação específica, algum controle sobre o uso do espanhol são especialmente bons; naqueles onde ele denuncia a vulgarização, a perda de sentido e clareza de sua língua, Marías é brutalmente irônico, não demonstrando medo ao desnudar todas as imbecilidades que lê e ouve. Seu principal argumento é que uma sociedade que perde a capacidade de reconhecer as sutilezas da língua que utiliza é incapaz, no fundo, de pensar de forma independente, de associar e distinguir idéias, tornando-se massa de manobra dos manipuladores sociais de nosso tempo (sobretudo ditadores, fascistas, xenófobos, religiosos, políticos, poderosos de plantão). Para ele o uso correto da linguagem revela muito sobre as pessoas e é uma ferramenta útil para detetar farsantes. O que mais me impressiona nestes artigos (que reli na verdade, pois já havia encontrado cada um deles nos outros livros) é o quanto os problemas detetados por Marías podem ser observados também aqui no Brasil, com o português. Não é tão difícil encontrar hoje em dia quem defenda, como ferramenta de inclusão social, "formas alternativas de grafia e fala do português" (como se fosse possível orgulhar-se de ser idiota ou analfabeto). Qualquer leitor interessado na lingua espanhola, em tradução, ou em fenômenos linguísticos associados à cultura tem muito a aproveitar neste livro. Grande Javier Marías! Para aqueles que não tem a chance de conseguir este volume com facilidade vale a pena visitar, ao menos semanalmente, o http://javiermariasblog.wordpress.com/. [início 10/03/2012 - fim 19/03/2012]
"Lección pasada de moda - Letras de lengua", Javier Marías, Selección de textos de Alexis Grohmann, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Circulo de Lectores), 1a. edição (2012), capa-dura 13x21 cm, 189 págs. ISBN: 978-84-8109-964-5

segunda-feira, 19 de março de 2012

a dama do lago

Saudoso de um bom romance policial (desde minha intoxicação no ano passado, já que Simenon em demasia sabe mesmo aborrecer um sujeito) resolvi ler este "A dama do lago", de Raymond Chandler. A motivação que me faltava encontrei na epígrafe do bom "Los zorros vienen de noche", de Cees Nooteboom, que dizia: 'You might have got yourself a story', I said. 'Sure. But up here we're just people.' Acho que Nooteboom queria dizer que nem sempre o material bruto da vida real se transforma em boa ficção, em bons personagens. Li "A dama do lago" nas duas ensolaradas tardes deste último final de semana de verão, mas não consegui encontrar a passagem da epígrafe. Precisei ir ao texto original e voltar ao pequeno volume da LP&M para finalmente localizá-la. Todavia, fiquei sabendo, simultaneamente, que o tradutor inventou de acrescentar umas palavras ao texto, tornando-o direto e claro demais (destruíndo toda eventual ambiguidade possível, como apontada por Nooteboom). Sabe-se lá quantas palavras mais o tradutor acrescentou (ou retirou) para tornar o texto mais legível em português. Há coisas que é melhor um sujeito não ficar sabendo para não se aborrecer de uma vez. Paciência. A história de Chandler é movimentada. Philip Marlowe é contratado para encontrar uma mulher desaparecida. Acaba descobrindo o corpo de uma outra mulher e uma série de coincidências atrelando a história de uma à outra. Há um punhado de bons diálogos neste livro. Philip Marlowe é irônico, valente e meticuloso em suas investigações. Mas como em todo romance noir chega uma hora que um desfecho mirabolante tem de acontecer e os responsáveis por mortes ou roubos justiçados de alguma forma. As sutilezas de Nooteboom têm mais estofo e inspiram o leitor com mais eficiência, mas, inegavelmente, esta pequena história policial até que é bem engenhosa. [início 15/03/2012 - fim 17/03/2012]
"A dama do lago", Raymond Chandler, tradução de William Lagos, Porto Alegre: editora LP&M (coleção Pocket, v.265), 1a. edição (2011), brochura 10,5x18 cm, 272 págs. ISBN: 978-85-254-1177-8 [edição original: The lady in the lake (Alfred A. Knopf) 1943]

quinta-feira, 15 de março de 2012

los zorros vienen de noche

Cees Nooteboom ganhou o prêmio belga Gouden Uil de 2009 por este livro. Trata-se de um pequeno conjunto de contos (que impressionam pelo encantamento que provocam). Como ficar indiferente a boa mistura de histórias interessantes, originais mesmo, com o uso provocativo de metalinguagem (uso que não chega a intoxicar com referências ou digressões demasiado elípticas, mas que atiçam a vaidade intelectual de quem as lê)? Os contos flertam com o sombrio, com a zombeteira presença da morte, com o enganador poder da memória afetiva sobre nossos atos. Há uma presença grega nos contos de "Los zorros vienen de noche" (na medida em que sempre estamos perto do mar e das tormentas; que os narradores sempre são viajantes, algo desterrados, que experimentam ou confrontam hábitos extrangeiros; que a mitologia sempre pode se confundir com a história). O narrador de Nooteboom louva sempre o leitor, este sujeito que para ele (o narrador e talvez o próprio Nooteboom) é o complemento indispensável dos poetas, aquele que experimenta a forma menos óbvia de felicidade (a do anonimato), aquele que nenhum autor consegue surpreender facilmente, pois demasiada literatura os tornou demasiado exigentes. Os contos são bem inventivos: um velho senhor vê uma fotografia e relembra uma antiga paixão; um casal almoça na praia e experimenta a fúria dos elementos; o narrador de uma das histórias conta os sucessos biográficos de um holandês errante, desterrado (na mais longa das histórias e também a melhor delas, a meu juízo); uma velha senhora vive seus dias com alguma lascívia; um sujeito faz o censo de seus dias cúmplices com companheiros de jogatina e vagabundagem; uma moça fala de seu estado pós-morte e ajusta contas com um amante algo tonto (trata-se de uma teoria da morte, Nooteboom tem 78 anos, já deve estar a pensar mais nestas coisas); um narrador diz (com o mesmo esgar que Orlando usa quando fala de Sasha em um livro de Virginia Woolf - ao perceber-se abandonado): "Fui feliz, mas já não há ninguém a quem eu possa contar esta felicidade". Cees Nooteboom é o tipo de escritor que admiro e que sempre leio com prazer, renovado e reiterado prazer, pois ele sempre é original demais para nos aborrecer. Como encontrar mais coisas deste sujeito se o holandês é impenetrável demais para este velho e cansado Guina, que mal domina o português? Paciência. [início 09/03/2012 - fim 13/03/2012]
"Los zorros vienen de noche", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal, ediciones Siruela (Nuevos Tiempos), 1a. edição (2011), brochura 14x21,5 cm, 138 págs. ISBN: 978-84-9841-530-8 [edição original: 's Nachts komen de vossen (Amsterdam: De Bezige Bij) 2009]

segunda-feira, 12 de março de 2012

não depois do que aconteceu

Encontrei este livro em um dos balaios da última Feira do livro de Porto Alegre. O preço que paguei foi uma indecência. Seguro que os autores devem ser poupados do constrangimento de ver seus livros em dias de saldo. A edição é do Instituto Estadual do Livro (do Rio Grande do Sul), de quinze anos atrás. Li os contos com muito interesse e prazer. São histórias curtas, duas, três ou quatro páginas, boa parte delas. Laub tem uma imaginação poderosa e saber adequar a linguagem do que narra à atmosfera criada em cada um dos contos. Os temas são cotidianos, nada é fantástico, exótico ou surrealista. São histórias banais, corriqueiras: Uma fisioterapeuta não sabe dizer se o que pratica é vocação ou expiação de uma culpa; um advogado relata as felicidades mirradas de sua vida; um sujeito em Londres cataloga os hábitos de um casal de amigos; uma mulher entediada flerta com o suicídio; um rapaz conta seu tempo e procura um emprego; um "shaper" sonha com uma vida de surfista profissional; num bairro amalucado um sujeito se imagina dono de uma árvore; um rapaz estuda com estoicismo e sonha melhorar de vida; na rotina besta de uma base militar um sujeito delata seus colegas; mochileiros na Grécia são arrebatados (mas também entediados) pela beleza do lugar; um sujeito comete um crime e se percebe impune, elabora estratégias de auto-indulgência. O conjunto não chega a formar um mosaico compacto, auto-referente, mas demonstra que Laub sabe produzir bons contos. Minha cota anual de literatura brasileira sempre é modesta, mas desta vez pretendo me aventurar mais. Vamos a ver o que se passa. [início 07/03/2012 - fim 08/03/2012]
"Não depois do que aconteceu", Michel Laub, Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1a. edição (1998), brochura 14x21 cm, 95 págs. ISBN: 85-7063-223-1

sábado, 10 de março de 2012

cães negros

Nos livros de Ian McEwan algo de violento sempre é implícito, subliminar ao que é narrado. Em "Cães negros" McEwan apresenta uma história que o leitor pode aceitar como relato de um casamento que fracassa (por incompatibilidade de um casal com a evolução da política de seu tempo ou o entendimento distinto da viabilidade do modelo comunista na economia européia do século XX), mas o que realmente importa no livro é a discussão sobre como situações extremas afetam indivíduos e a coletividade. O livro é pequeno, compacto, McEwan muito inventivo na sua construção, nada linear e previsível. A introdução é realmente muito boa. O narrador de McEwan tem uma empatia muito especial com sua sogra e acredita que a história de vida dela pode tornar-se material bruto para um bom romance. Esta mulher, muito ativa e inteligente, concomitantemente ao casamento e a educação dos filhos, viveu longos períodos de sua vida adulta em uma zona rural da França. Após muitos anos de isolamento e meditação ela sofre um colapso e é internada em um asilo na Inglaterra, onde passa a relatar fragmentariamente suas memórias para o genro. As personagens de McEwan descrevem o impacto da queda do muro de Berlim, falam de suas experiências sexuais nos anos 1960, visitam um campo de concentração na Polônia, fazem longas caminhadas pelo campo, relembram os anos duros, de privações materiais e espirituais, do pós-guerra na Europa. Mas quem domina o romance são os "câes negros" do título, metafóricos do mal absoluto e da depressão, do mal estar geral da civilização. McEwan retarda habilmente o momento em que explica sua metáfora. Ficamos enredados em sua poderosa narrativa ainda por muitas páginas antes de perceber que viver é uma espécie de confronto permanente com nossos "cães negros" pessoais. Grande livro. [início 05/03/2012 - fim 07/03/2012]
"Cães Negros", Ian McEwan, tradução de Aulyde Soares Rodrigues, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (1993), brochura 14x21 cm, 151 págs. ISBN: 85-325-0417-5 [edição original: Black Dogs (Londres: Jonathan Cape) 1992]

domingo, 4 de março de 2012

recuerdos de una mujer de la generación del 98

Ganhei este livro de Cristina Polo. Ela o trouxe das terras altas de Pamplona, das prateleiras da librería "El parnasillo", que visitamos com Helga e Natália anos atrás. A memória inteligente pouco ajuda um sujeito nestas coisas, mas desde que comecei  a folhear o livro, antes mesmo de lê-lo, senti vividamente cousas daqueles dias adoráveis em Navarra. Carmen Baroja y Nessi foi irmã do respeitado escritor espanhol Pío Baroja, nasceu em Navarra, em 1883 e morreu em Madrid, em 1950. Foi uma mulher muito dinâmica e industriosa, mas nem a qualidade de seus livros sobre antropologia, nem sua habilidade como artista plástica (gravadora), nem sua capacidade gerencial, demonstradas tanto na organização de um clube de leitura feminino, muito atuante nos anos que antecederam a guerra civil espanhola, quanto na administração dos negócios de sua família, durante um longo período de tempo, trouxeram-lhe reconhecimento em vida (se o preconceito sexista e ideológico ainda são moeda corrente nos dias de hoje, pode-se imaginar como eram as coisas há setenta ou oitenta anos, principalmente na machista Espanha). As memórias de Carmen Baroja foram escritas provavelmente no início dos anos 1940, mas percorrem os aspectos mais fundamentais de sua vida, desde os anos de conforto material e intelectual, na Madrid do início do século XX até os anos terríveis da guerra civil (que ela passou sozinha, com os filhos, em Vera de Bidasoa, uma pequena cidade dos Pireneus espanhóis, que fica a pouco mais de um quilômetro da fronteira com a França). Aliás há uma passagem neste livro de memórias onde Carmen conta sua versão de como seu irmão famoso, Pío Baroja, cruzou a fronteira com a França para fugir dos falangistas de Franco (e eventualmente da morte, claro). É uma versão diferente daquela mais divertida e espirituosa que li recentemente em um livro de Enrique Vila-Matas ("El viajero más lento"). Bem que a Cristina havia me dito que eu me surpreenderia com a ironia e a coragem desta mulher. O livro inclui muitas fotografias. A compilação destas memórias e sua publicação foi feita pela filóloga e tradutora Amparo Hurtado, que assina um prólogo biográfico muito completo e um detalhado índice onomástico, que formam um panorama vívido da política e da literatura da Espanha na primeira metade do século XX. Aprendi um bocado com este livro e fiquei feliz em conhecer algo desta poderosa mulher (apesar da quase invisíbilidade que experimentou em seu tempo). [início 06/01/2012 - fim 03/03/2012]
"Recuerdos de una mujer de la generación del 98: memórias", Carmen Baroja y Nessi, prólogo, edición y notas de Amparo Hurtado, Barcelona: Tusquets editores (colección andanzas), 1a. edição (1998), brochura 14x21 cm, 181 págs. ISBN: 84-8310-076-2

sábado, 3 de março de 2012

amsterdam

Após uma enfermidade muito debilitante uma mulher morre. Logo após seu funeral a vida de seu marido (George) e três de seus antigos amantes (Clive, Vernon, Julian) parece seguir dominada e enredada por ela. Há um jogo muito interessante neste curto romance de Ian McEwan. Ele alterna (mais do que opor ele contrasta) digressões sobre música clássica e jornalismo político, pragmatismo e arte, amizade e inveja, individualismo e altruísmo. Claro, apesar de algum humor contido, os temas abordados no livro são todos sombrios, o leitor percebe logo que não se trata de um livro para distração leve dos aborrecimentos do dia a dia. Sem ser maçante McEwan descreve algo do processo de construção de uma peça musical sofisticada (Clive é um compositor respeitado, comissionado pelo governo britânico para compor uma sinfonia). Para os melômanos este é mesmo um livro inspirador. Ao mesmo tempo McEwan dá uma idéia de como funciona a redação de um jornal sensacionalista. Cada personagem só se preocupa mesmo com seus problemas e agenda, eventuais pensamentos sobre os outros ocorrem apenas quando estes outros são necessários para seus objetivos imediatos. A frieza e as estratégias mentais que os indivíduos utilizam se justificam pelo hábito apenas. McEwan sabe desnudar a hipocrisia como poucos. O pacto de morte que parece unir todos (especialmente Clive e Vernon) apenas ilustra mais enfaticamente o enorme egoísmo deles. Bom livro. Ainda tenho um ou dois McEwan para ler. Cousa boa saber disto. [início 17/02/2012 - fim 02/03/2012]
"Amsterdam", Ian McEwan, tradução de Paulo Reis, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (1999), brochura 14x21 cm, 181 págs. ISBN: 85-325-1049-3 [edição original: Amsterdam (Londres: Jonathan Cape) 1998]

quinta-feira, 1 de março de 2012

o tempo redescoberto

Ler Proust não representa a felicidade, mas não ler Proust é insuportável. Bem disse isso uma vez don Renato Cohen, que partilhou comigo sua leitura dos volumes do ciclo "Em busca do tempo perdido". Nestas últimas semanas reli "O tempo redescoberto", vinte e cinco anos após a primeira vez, como vi anotado no surrado volume que retirei de meus guardados. Reli imerso em sensações boas, desfrutando cada parágrafo, refletindo sobre as idéias, lendo passagens em voz alta para doña Helga, retardando a inevitável chegada a página final, como quem lamenta antecipadamente a perda de um grande bem, de uma jóia rara.  Os aborrecimentos da vida pareceram mais toleráveis, tolos, desprezíveis. Cronologicamente este deve ter sido o primeiro dos livros imaginado por Proust, já que dá conta da gênese dos romances do ciclo. Tão devastadora é a passagem do tempo sobre as personagens e sobre os valores mundanos da sociedade descrita por ele que pouco resta ao leitor, a não ser refletir sobre suas próprias histórias, seus amores, seu comportamento, suas vitórias e derrotas, suas mazelas e diatribes cotidianas. Proust divide este livro em três capítulos, mas os dois primeiros são bem curtos, formam peças que complementam, retrospectivamente, os sucessos daquilo que lemos nos dois volumes anteriores, "A prisioneira" e "A fugitiva" (e também algo dos demais: Sodoma e Gomorra, No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes). O narrador descreve inicialmente como ficou impossibilitado de frequentar as recepções e festas durante um longo período de tempo, por conta de problemas de saúde. No primeiro capítulo ele fala de seus dias em Tansonville, nos anos que antecedem a primeira grande guerra, sendo recebido por Gilberte, com quem relembra os anos de infância e primeira juventude. A metamorfose pela qual passa Saint-Loup é algo inesperado (lembro-me que Paulo Francis defendia ser injustificado), mas se encaixa bem no projeto global do ciclo. O narrador reconhece finalmente sua incapacidade de conceber um projeto literário, como almejava desde muito jovem. No segundo capítulo, já nos anos finais da grande guerra, ele descreve um encontro com o Sr. de Charlus, metamorfeado por sua vez em uma espécie de rei Lear, um homem cujo corpo decrépito encerra uma mente ainda ágil e inteligente, que quase inspira compaixão do leitor. Mas é no terceiro capítulo, onde o narrador descreve sua ida a uma grande recepção na casa dos príncipes de Guermantes, após sua segunda longa internação em um sanatório, que domina o volume. Este capítulo é ao mesmo tempo uma síntese do projeto literário que o narrador programa empreender e um desfecho de todas as histórias mundanas que foram desenvolvidas nos volumes anteriores. Ao se deslocar para a festa o narrador experimenta uma série de epifanias (há um pequeno ensaio de Samuel Beckett onde ele fala do acumulo de sensações que estas epifanias provocam no leitor). Estimulado por estas sensações, que o fazem entender as diferenças entre o valor da memória voluntária, inteligente e o da memória involuntária, ele, ao ser finalmente admitido ao salão principal da recepção, já tem a concepção completa de seu longo romance, que enfeixará miríades de histórias, como nos contos árabes das mil e uma noites. As camadas de entendimento possível sobre cada personagem, sobre o papel de cada personagem no mosaico social a que pertence, sobre a forma como cada indivíduo é lembrado pelas gerações que advêm sucessivamente exemplificam para o leitor o efeito da passagem do tempo. A idéia da morte assusta o narrador, pois ele imagina que talvez não tenha tempo de colocar no papel tudo o que já idealizou, mas a idéia da morte não é um obstáculo, mas sim justamente o contrário, um catalisador do processo criativo. Livros como este emparedam de alguma forma o coração de um sujeito, aprendemos que não há nas relações sociais valores intrínsicos e/ou imutáveis, que a vida é mesmo um sopro, que a energia que depreendemos para manter uma posição social, um papel na sociedade, não vale muita coisa. Um leitor preguiçoso talvez pudesse apenas ler este capítulo. Claro, ele perderia infinitas maravilhas, inúmeros prazeres, incontáveis momentos de alegria, mas poderia dizer que entende qual é o projeto do livro, do que é mesmo que se trata na obra de Proust. Talvez eu tenha a sorte de viver uns outros vinte e cinco anos e tenha a sorte de reler os volumes deste ciclo. Gostaria de saber como será a encarnação do velho e cansado Guina aos setenta e cinco anos (um senil consumido pelo Alzheimer, incapaz de compreender as sutilezas das histórias ou um senhor de longas cãs e bonachão, já menos amargo, que desfruta novamente o jardim de delícias criado por Proust). Logo veremos. [início 17/02/2012 - fim 29/02/2012]
"Em busca do tempo perdido: O tempo redescoberto (vol.7)", Marcel Proust, tradução de Lúcia Miguel Pereira, Porto Alegre: editora Globo, 7a. edição (1983), brochura 14x21 cm, 252 págs. sem ISBN [edição original: Le Temps retrouvé (éditions Gallimard), 1927]