"A prisioneira" é o quinto volume do
ciclo "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. Foi publicado postumamente, em 1923 (assim como os dois volumes restantes: A fugitiva e O tempo redescoberto). " A prisioneira" é quase um tratado de psicologia humana. Proust contrasta o relacionamento de um casal com a vida em sociedade, demonstrando como as relações mundanas que estabelecemos em nosso grupo social são tão enganadoras como aquelas que experimentamos na intimidade. Ele fala da impossibilidade de compreender verdadeiramente qualquer indivíduo, por mais próximo que esteja de nós. O que é narrado segue imediatamente os sucessos de Sodoma e Gomorra. O livro é dividido em três seções. A primeira e a última falam da vida do narrador com Albertine, a segunda do rompimento entre os Verdurin e o barão de Charlus. Factualmente, o que é narrado se passa em poucos dias, mas a magia de Proust alcança apresentar ao leitor coisas do passado remoto do livro - dos outros volumes do ciclo: No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes - e já antecipar seu desfecho (que é o da concepção de escrever o livro que o leitor está a ler). O narrador passa a viver com Albertine, alternando jogos sexuais e compras, com absoluto controle sobre ela. Além da governanta da família, Françoise, e a mãe, que é comunicada por cartas do que se passa, ninguém de seu círculo de amizades sabe desta vida em comum. A contradição fundamental do narrador é identificar no sofrimento e no ciúme a força motriz de seu amor por Albertine. Sem sofrimento não há amor, apenas tédio e aborrecimentos. Ele sabe que a solidão teria sido melhor e mais produtiva, mas entre a solidão e a dor do ciúme ele escolhe esta última. A convivência com Albertine reaviva sua curiosidade sobre o passado sexual dela. Ele mortifica-se por não saber exatamente como ela se relacionava com mulheres e tenta impedir que Albertine possa sair de casa e encontrar-se com elas. Se mesmo pontuada pelo ciúme e pelo sofrimento havia alguma felicidade no relacionamento deles, essa felicidade não poderia durar muito. O narrador decidi ir a uma recepção oferecida pelos Verdurin e organizada pelo barão de Charlus, que convida seu pares, aristocratas sobretudo, para conhecer um salão burguês típico. Enfeitiçado por sua paixão pelo violinista Morel, Charlus não percebe que seu comportamento exaspera a verdadeira anfitriã, a Sra. Verdurin. Ela força Morel a romper seu relacionamento com Charlus. O narrador, que esperava uma das conhecidas respostas furiosas do barão (principalmente por sua covardia em não alertá-lo de sua iminente queda, interessado que estava apenas em saber se Albertine tiverá ou não um relacionamento amoroso com a atriz Léa) assiste constrangido sua humilhação. A cena final desta seção, em que a rainha de Nápoles acolhe o barão, poupando-o dos crescentes achincalhes, é soberba. Ao voltar para casa o narrador confronta Albertine por conta de seus ciúmes, mas ela, sem saber exatamente o que ele descobrira sobre sua vida pregressa, acaba se traindo, detalhando vários deslizes amorosos dos quais o narrador sequer desconfiava. O narrador decide romper definitivamente com ela, entretanto, viciado pelo hábito e pelo binômio sofrimento/ciúme seu coração faz com que eles se reconciliem. Nas cinquenta ou sessenta páginas finais deste volume Proust fala da
melancolia que acompanha a memória de alguém que sabe já ter perdido um
grande amor, mesmo que compartilhe ainda algo dele. São passagens terríveis e memoráveis. Mas a realidade é a mais hábil das inimigas, apenas dois dias depois da última reconciliação, como ao acordar de um sonho ruim, o narrador é avisado da fuga repentina de Albertine. Não me lembro exatamente do que senti quando li esse volume pela primeira vez, há trinta anos. Certamente eu era jovem demais para entender todas as ilações e sentimentos cruzados que Proust oferece e não tinha experimentado na vida quase nada daquilo que ele descreve. Talvez agora eu seja cínico demais, amargurado demais, para me identificar com as intermitências do narrador, mas ainda assim me surpreendo e me identifico com as várias facetas de sofrimento que transbordam do livro. Essa reedição não tem a infinidade de erros tipográficos do volume anterior, mas ainda assim encontrei cinco ou seis notas de rodapé mal numeradas. A numeração do resumo desta vez está correta. O prefácio assinado por Guilherme Ignácio da Silva e o posfácio de Olgária Féres Matos são muito bons. Agora me resta reler os dois últimos volumes. A fugitiva é dos livros mais tristes que já li, mas no O tempo redescoberto encontramos algum conforto. Logo veremos como esse velho e cansado Guina reagirá ao reencontrá-los. [início 19/12/2011 - fim 15/01/2012]
"Em busca do tempo perdido: A prisioneira (vol.5)", Marcel Proust,
tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar, São Paulo: editora Globo, 13a.
edição, revista (2011), brochura 16x23 cm, 524 págs. ISBN:
978-85-250-4229-3 [edição original: La Prisonnière (éditions Gallimard), 1925]
3 comentários:
Não resisto a escrever: como sempre, uma primorosa e deliciosa resenha. Como é quase impossível dizer que já li todos os post, aventuro-me no arquivo do blog a cada dia. Mas, não pude ler sobre O Cemitério de Praga, devido à informação dos spoilers, pois estou na metade do volume. Mas uma coisa apreendi por alto dessa resenha, e que se identifica com você: você escreve a lê com o mesmo prazer supremo que Eco brinca com seus textos.
Um forte abraço.
Bastante ensinamento num lugar só. Esse Proust é.
É verdade Andressa: Bastante ensinamento em um lugar só! Abraços para ti.
E você don Charlles, me diga depois o que achastes do Cemitério de Praga. Grande abraço.
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