segunda-feira, 5 de novembro de 2018

a culinária caipira da paulistânia

Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia e um dos maiores especialistas sobre a história rica e variada da culinária brasileira. Dele já li o pequeno porém poderoso Formação da culinária brasileira, livro que me foi sugerido pela Heloísa, amiga querida, já há tantos anos. Nesse volume, "A culinária caipira da Paulistânia",  recém publicado, ao leitor são oferecidas duas formas de familiarizar neste vasto assunto: o caminho da análise acadêmica e o caminho das receitas e produtos desta culinária. Na primeira abordagem Dória parte de sua tese central, que é a definição do que pode ser entendido como culinária caipira, para apresentar um panorâmico registro de sua história, evolução e os atributos quase míticos que hoje possui. Trata-se de uma espécie de arqueologia, a procura de registros de algo que em grande parte se perdeu, metamorfoseou-se, talvez seja melhor dizer. A Paulistânia é um enorme território, que abrange hoje a totalidade dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e partes dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O elemento central e inicial desta culinária é o uso do milho e suas farinhas, em contraposição às farinhas de mandioca, que reinavam nas demais regiões do país. A maior facilidade de processamento das farinhas de milho possibilitou que indígenas autóctones da Paulistânia (sobretudo guaranis), depois os mamelucos, e ainda depois que os ditos bandeirantes, promovessem a lenta e grande expansão das fronteiras do Brasil, ainda na primeira fase colonial, definindo esta região como um território gastronômico. Dória fala da dieta indígena, cartografa a geografia desta culinária, fala de história e sociologia, define o sítio (que é algo diferente de uma fazenda), a casa e a comida que ali se produzia, fala dos produtos que eram utilizados e sua evolução. Apesar de ser um trabalho apresentado com todo um rigor acadêmico trata-se de um livro fácil de ler, é muito bem escrito e inventivo. O livro inclui extensas notas, vários mapas, uma robusta bibliografia e um fundamental índice, que ajuda o leitor a percorrer o livro em busca de conceitos e definições. A segunda parte do livro, a segunda abordagem que é oferecida ao leitor, é também assinada por Marcelo Corrêa Bastos, chef e proprietário de restaurantes em São Paulo. Carlos Dória apresenta um vasto conjunto de produtos e técnicas culinárias que são episodicamente comentadas por Marcelo Bastos em curtos parágrafos. Não se tratam propriamente de receitas, antes sim de registros sobre como se preparavam o desjejum, os cozidos e as caças; o milho, o arroz e o feijão; as conservas, os refogados e os mexidos; as farofas, as frituras e os empadões, biscoitos e pães. Além desses produtos os autores descrevem algo das tecnologias afeitas à culinária: a evolução dos fogões, as técnicas de refrigeração, as máquinas de processamento e moagem, a seleção de sementes, a logística, o sistema de vendas e distribuição de produtos. Na conclusão Dória produz uma coda amarga ao livro, aquela que identifica a cozinha realmente caipira como uma ilusão, uma miragem somente acessível por meio da arqueologia de algo que já se perdeu, que é conhecido e praticado por poucos. A explicação para este distanciamento é complexa, associada ao falso refinamento decorrente da rápida industrialização de São Paulo e a chegada de imigrantes europeus na segunda metade do século XIX, a pasteurização do gosto, a necessidade que qualquer povo tem de reinventar seu passado, idealizando-o. Bueno. Aprende-se um bocado neste livro. Um leitor curioso pode experimentar a prosa de Dória em seu blog (e-Boca livre). Vale! 
Registro #1342 (gastronomia #34) 
[início: 22/10/2018 - fim: 26/10/2018]
"A culinária caipira da Paulistânica", Carlos Alberto Dória, Marcelo Corrêa Bastos, São Paulo: Editora Três Estrelas (Grupo Folha), 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-68493-53-3