quinta-feira, 16 de junho de 2016

os mortos (bilíngue)

Essa é uma edição muito especial de "Os mortos", conto de James Joyce que encerra a coletânea "Dublinenses", publicada originalmente em 1914 (muito embora esse conto tenha sido finalizado um bom tempo antes, quando Joyce vivia em Trieste, em 1907). Trata-se de uma edição bilíngue e a tradução é assinada por Tomaz Tadeu. Nela o leitor tem direito a um conjunto robusto de notas, que explicam as passagens mais enigmáticas do livro, uma breve introdução e um link de acesso a um mapa onde os locais mencionados no conto estão assinalados (esse mapa pode ser acessado aqui). O tradutor alerta na introdução que foi obrigado a fazer ligeiras adaptações devido a uma restrição editorial, que foi a necessidade de deixar os parágrafos traduzidos com o mesmo número de linhas dos respectivos parágrafos originais, de forma a permitir a leitura em paralelo dos dois. Não me pareceu nada que prejudique essencialmente o texto. Como sabe qualquer sujeito que tenha lido "Dublinenses", trata-se de uma das histórias mais poderosas e bem escritas de Joyce. O leitor acompanha uma festa de epifania, um jantar de gala, com direito a música e bebidas, que acontece num dia 06 de janeiro, provavelmente o de 1904. Quem dá a festa são as irmãs Morkan, Kate e Júlia, duas senhoras idosas. Joyce utilizou duas tias avós maternas suas na concepção destas personagens. O local da festa é o número 15 de um dos "Quays" da margem direita do rio Liffey, aquele conhecido por "Usher's Island". Hoje esse endereço fica exatamente defronte a entrada sul da James Joyce Bridge, uma ponte projetada pelo arquiteto Santiago Calatrava. Nesse endereço ainda existe uma casa que foi propriedade das duas tias avós de Joyce e onde deveria funcionar um museu ou casa de cultura (mas que não está regularmente aberto ao público, infelizmente). Por uma sorte dos diabos, através de um amigo irlandês, o John Murphy, conheci o atual proprietário da casa, um sujeito chamado Brendan Kilty, e a visitei numa noite de inverno em 2015 alternando Irish whiskey e Guinness (mas esta é outra história, que um dia conto com detalhes). Pois no conto de Joyce acompanhamos os frenéticos preparativos para a festa e logo uma elaborada apresentação de todos os personagens que chegam. Gabriel Conroy, sobrinho das anfitriãs, que fará um discurso de encerramento do jantar, é um dos últimos a chegar. Conroy é um sujeito afetado, que imagina serem superiores suas opiniões sobre a complexa relação política e social entre Irlanda e Inglaterra. Mas o que o leitor acompanha na história são as sucessivas mostras de quão errado está Conroy, não apenas sobre a situação de seu país (não exatamente um país, pois a Irlanda ainda estava sob administração inglesa naquela época), mas também sobre a forma como ele se relaciona com os demais e com sua mulher. Após a festa Conroy e a mulher rumam para a O'Connell Street, onde fica o hotel em que ficarão hospedados. Conroy parece animado e ansioso , mas quando confronta a tristeza que nota na mulher ela lhe conta que uma das músicas cantadas na festa a fez lembrar-se de um rapaz por quem foi apaixonada e que morreu numa noite fria como aquela. Conroy percebe de súbito a tolice de sua vaidade, do vazio das palavras que proferiu no discurso e do quão pouco conhece sua mulher e a si mesmo. Sua existência é patética, sabe ele agora. Que história dos diabos. Cabe dizer que registrei aqui recentemente uma outra tradução de "Os mortos", a do industrioso Caetano Galindo. E, por fim, digo que um leitor inspirado pelo livro ganhará muito se ouvir os seis podcasts reunidos no "Joyce's Dublin". Ouro puro e fino. Vale. Leia o Ulysses, leia James Joyce. Sláinte. Happy Bloomsday, to you and all.
[início: 11/05/2016 - fim: 16/06/2016]
"Os mortos", James Joyce, tradução de Tomaz Tadeu, Belo Horizonte: editora Autêntica, 1a. edição (2016), capa-dura 14,5x21,5 cm., 144 págs., ISBN: 978-85-8217-802-7 [edição original: edição original: Dubliners (London: Grant Richards) 1914]

segunda-feira, 13 de junho de 2016

a pianista

Nunca havia lido um livro de Elfriede Jelinek, ganhadora do prêmio Nobel de literatura em 2004, todavia já havia visto uma adaptação cinematográfica de seu romance "A pianista", dirigida por Michael Haneke em 2001 (e que ganhou o Grande Prêmio do Juri do festival de Cannes daquele ano). Trata-se de um livro impressionante mesmo. Erika Kohut, 36 anos, uma tirânica professora de piano, um dia imaginou poder tornar-se uma solista de sucesso, mas dá aulas num conservatório vienense. Seu aparente profissionalismo e erudição mascaram uma personalidade fraca, submissa ao despotismo da mãe, viúva; escondem um temperamento cruel, de quem não se envergonha das maldades que cometeu e comete contra colegas e rivais; ocultam seu duplo, uma mulher voyeurista, curiosa de sua sexualidade, que se mutila e frequenta cabines de peep-show. Um de seus alunos, dez anos mais jovem, passa a seduzi-la. Ela responde com tal perversão e desentendimento aos avanços do rapaz que ele acaba tomado de uma ferocidade absurda, incontrolável. O livro é escrito numa prosa direta, de frases curtas, implacáveis. Não há vez para romantismo e hipocrisia na narrativa. Erika funciona como uma metáfora da sociedade austríaca (para não dizer da sociedade contemporânea). Incapazes de entender a si mesmos pouco entendemos daqueles que nos cercam. Jelinek alcança demonstrar o quão devastadores podem ser os efeitos do confronto com a realidade que num determinado momento pode vivenciar todo aquele que, ou por escolha ou por submissão a uma figura de autoridade, experimentou apenas um aspecto da existência, foi incapaz de compreender mais que uma fração de si mesmo, esforçou-se em entender somente parte das complexas relações sociais e afetivas que poderia estabelecer com os demais homo sapiens sapiens, nossos contemporâneos. Viver plenamente não é uma atividade ordinária, corriqueira, pois custa tempo, educação e real investimento psicológico. Podemos viver anos sem fim num limbo moral e afetivo, padecer como escravos mentais por décadas, nos desgraçar em silêncio por tolas causas, sonhos ou distopias. Todavia é possível, senão provável, que em algum momento o mais cruel dos juízes, nós mesmos, finalmente decida-se por nos sentenciar e nos obrigue contemplar o que somos de fato, sem ilusões, sem autoenganos, sem máscaras. Costuma não ser um quadro bonito de se ver. Vida dura. Belo livro. 
"A pianista", Elfriede Jelinek, tradução de Luis S. Krausz, São Paulo: editora Alaúde (selo Tordesilhas / Prêmio Nobel), 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 333 págs., ISBN: 978-85-64406-05-6 [edição original: Die Klavierspielerin (Reimbeck bei Hamburg: Rowohlt) 1983]

sexta-feira, 10 de junho de 2016

el azar y el destino

Foi o Daniel Dago, tradutor que segue os rastros de tudo que sai por aí sobre literatura holandesa, quem me alertou sobre este livro e a presença de Cees Nooteboom numa feira do livro colombiana, a FilBo. São 32 textos, crônicas de viagem compiladas dentre as centenas que Nooteboom produziu desde o final dos anos 1950 até hoje. Em 1957 Nooteboom, um jovem apaixonado, aceita o desafio do pai de sua amada e embarca em um navio, de sua Holanda fundamental rumo a Guiana Holandesa (hoje Suriname). Ele não era exatamente um neófito do vaguear pelo mundo, já havia feito algumas viagens pela Europa, desde a vizinha Alemanha até sua sempre especial Espanha. O livro reúne alguns dos registros que ele fez desde aquela viagem inaugural. Como ele disse em uma recente entrevista: "Los viajes deben tener un fin, un objetivo, pero no siempre el mismo objetivo. En mi caso en ocasiones son políticos, literarios, pero otras veces son viajes por el paisaje, por el arte, pero sobre todo de la aventura. Sin ella, no vale salir de casa". Sim, o que o leitor encontra nas crônicas é o relato das aventuras de um sujeito que observa, ouve, saboreia e sente o que está a seu redor. Se é o caso de confundir-se com centenas de mulheres bolivianas que carregam cimento para sair ilegalmente da Argentina ele não hesita e desaparece no meio delas (ele logo voltará, disfarçado novamente); se é o caso de testar a paciência de um delegado aduaneiro francês até conseguir autorização para atravessar o rio Maroni e ficar um único dia na Guiana Francesa ele o faz, mas depois deverá regatear com um velho barqueiro a viagem de volta; se ele precisa apelar para o jeitinho brasileiro para conseguir fazer fotografias num cemitério no Brasil, brota rápido de dentro dele um malandro holandês, carioca da gema. Os textos estão organizados em blocos: há quatro sobre as seis semanas que ficou nas Guianas e em Trinidad, escritos naquela viagem inaugural, de 1957 (além de um texto curto, de 1987, onde ele contrasta os trinta anos de diferença entre as duas visitas, mas não sabemos se ele conquistou a amada afinal de contas); há sete sobre sua primeira visita ao Brasil, de uma viagem de duas semanas, em 1967 - só o parágrafo onde ele descreve um Fla-Flu no Maracanã já vale o livro; dezesseis sobre o México, produzidos em 1988, nos quais ele fala mais da capital e de sua história, e em 2007, através dos quais ele descreve o interior do país; dois curtos, um sobre a Costa Rica, de 1986, e outro sobre a Colômbia, de 2014; dois longos, um sobre a Bolívia (produzidos em várias viagens, entre 1968 e 1971) e outro sobre uma viagem que passa pelo Uruguai, Argentina e Chile, escrito em partes, entre 2005 e 2009. Neste ele fala muito das grandes navegações e dos navegadores portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses que passaram por aqueles perigosos canais e caminhos do mar). Cada crônica teve uma vocação diferente (exemplificando o que ele escreveu e transcrevi acima). Há textos mais engajados politicamente, nos quais ele fala da presença de Che Guevara na Bolívia, da ditadura militar no Brasil e da corrupção entranhada no sistema político mexicano; mas na maioria ele faz uma sociologia calma, ausculta o pulso da gente que encontra, experimenta pratos típicos, fala de poesia, música e tradições. Ele não é um mero compilador de fatos e causos curiosos, mas alguém que reflete, com método e disciplina, com uma erudição disfarçada, de quem conhece bem os temas sobre os quais fala e justifica bem as associações que reportam a filosofia e a arte, a religião e a história. Ele sabe perguntar e sabe perguntar-se, não aceita as explicações mais óbvias sem duvidar, partilha com o leitor seu ceticismo com uma versão dos fatos ou a alegria da descoberta de uma informação. Suas receitas são simples: o viajante deve mover-se num passo lento e tropical, deixar que a atmosfera do lugar se filtre lentamente naquilo que escreve; saber que aquele que se move, o faz em um mundo em constante movimento, mutável; aceitar que um número maior de experiências envelhece mais rapidamente a alma - eu diria, endurece mais rapidamente a alma; guardar tempo para sempre visitar mercados e cemitérios, os lugares gêmeos, da vida e da morte, quando quiser conhecer mesmo uma cidade; perceber que apesar de maior dificuldade, manusear blocos de anotação e canetas é mais eficiente que tirar fotografias (ele diz isso pois sempre viaja com sua mulher, a fotógrafa Simone Sassen). O livro tem intercalados aos textos oito poemas curtos (que estão incluídos na antologia "Luz por todas as partes", que já registrei aqui). Um leitor curioso vai encontrar algo da verve dele nesta entrevista publicada na revista El Colombiano. Vale a pena Grande sujeito. Nooteboom é sim um dos grandes escritores de nosso tempo. 
[início: 01/06/2016 - fim: 05/06/2016]
"El azar y el destino: Viajes por Latinoamérica", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal (prosa) e Fernando García de la Banda (poemas), Madrid: Ediciones Siruela (colección El Ojo del Tiempo, #91), 1a. edição (2016), brochura 15x23 cm., 253 págs., ISBN: 978-84-16638-94-9 [edição original: Continent in beweging (Antwerpen/Netherlands: De Bezige Bij) 2013]