Foi o Daniel Dago, tradutor que segue os rastros de tudo que sai por aí sobre literatura holandesa, quem me alertou sobre este livro e a presença de Cees Nooteboom numa feira do livro colombiana, a FilBo. São 32 textos, crônicas de viagem compiladas dentre as centenas que Nooteboom produziu desde o final dos anos 1950 até hoje. Em 1957 Nooteboom, um jovem apaixonado, aceita o desafio do pai de sua amada e embarca em um navio, de sua Holanda fundamental rumo a Guiana Holandesa (hoje Suriname). Ele não era exatamente um neófito do vaguear pelo mundo, já havia feito algumas viagens pela Europa, desde a vizinha Alemanha até sua sempre especial Espanha. O livro reúne alguns dos registros que ele fez desde aquela viagem inaugural. Como ele disse em uma recente entrevista: "Los viajes deben tener un fin, un objetivo, pero no siempre el mismo
objetivo. En mi caso en ocasiones son políticos, literarios, pero otras
veces son viajes por el paisaje, por el arte, pero sobre todo de la
aventura. Sin ella, no vale salir de casa". Sim, o que o leitor encontra nas crônicas é o relato das aventuras de um sujeito que observa, ouve, saboreia e sente o que está a seu redor. Se é o caso de confundir-se com centenas de mulheres bolivianas que carregam cimento para sair ilegalmente da Argentina ele não hesita e desaparece no meio delas (ele logo voltará, disfarçado novamente); se é o caso de testar a paciência de um delegado aduaneiro francês até conseguir autorização para atravessar o rio Maroni e ficar um único dia na Guiana Francesa ele o faz, mas depois deverá regatear com um velho barqueiro a viagem de volta; se ele precisa apelar para o jeitinho brasileiro para conseguir fazer fotografias num cemitério no Brasil, brota rápido de dentro dele um malandro holandês, carioca da gema. Os textos estão organizados em blocos: há quatro sobre as seis semanas que ficou nas Guianas e em Trinidad, escritos naquela viagem inaugural, de 1957 (além de um texto curto, de 1987, onde ele contrasta os trinta anos de diferença entre as duas visitas, mas não sabemos se ele conquistou a amada afinal de contas); há sete sobre sua primeira visita ao Brasil, de uma viagem de duas semanas, em 1967 - só o parágrafo onde ele descreve um Fla-Flu no Maracanã já vale o livro; dezesseis sobre o México, produzidos em 1988, nos quais ele fala mais da capital e de sua história, e em 2007, através dos quais ele descreve o interior do país; dois curtos, um sobre a Costa Rica, de 1986, e outro sobre a Colômbia, de 2014; dois longos, um sobre a Bolívia (produzidos em várias viagens, entre 1968 e 1971) e outro sobre uma viagem que passa pelo Uruguai, Argentina e Chile, escrito em partes, entre 2005 e 2009. Neste ele fala muito das grandes navegações e dos navegadores portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses que passaram por aqueles perigosos canais e caminhos do mar). Cada crônica teve uma vocação diferente (exemplificando o que ele escreveu e transcrevi acima). Há textos mais engajados politicamente, nos quais ele fala da presença de Che Guevara na Bolívia, da ditadura militar no Brasil e da corrupção entranhada no sistema político mexicano; mas na maioria ele faz uma sociologia calma, ausculta o pulso da gente que encontra, experimenta pratos típicos, fala de poesia, música e tradições. Ele não é um mero compilador de fatos e causos curiosos, mas alguém que reflete, com método e disciplina, com uma erudição disfarçada, de quem conhece bem os temas sobre os quais fala e justifica bem as associações que reportam a filosofia e a arte, a religião e a história. Ele sabe perguntar e sabe perguntar-se, não aceita as explicações mais óbvias sem duvidar, partilha com o leitor seu ceticismo com uma versão dos fatos ou a alegria da descoberta de uma informação. Suas receitas são simples: o viajante deve mover-se num passo lento e tropical, deixar que a atmosfera do lugar se filtre lentamente naquilo que escreve; saber que aquele que se move, o faz em um mundo em constante movimento, mutável; aceitar que um número maior de experiências envelhece mais rapidamente a alma - eu diria, endurece mais rapidamente a alma; guardar tempo para sempre visitar mercados e cemitérios, os lugares gêmeos, da vida e da morte, quando quiser conhecer mesmo uma cidade; perceber que apesar de maior dificuldade, manusear blocos de anotação e canetas é mais eficiente que tirar fotografias (ele diz isso pois sempre viaja com sua mulher, a fotógrafa Simone Sassen). O livro tem intercalados aos textos oito poemas curtos (que estão incluídos na antologia "Luz por todas as partes", que já registrei aqui). Um leitor curioso vai encontrar algo da verve dele nesta entrevista publicada na revista El Colombiano. Vale a pena Grande sujeito. Nooteboom é sim um dos grandes escritores de nosso tempo.
[início: 01/06/2016 - fim: 05/06/2016]
"El azar y el destino: Viajes por Latinoamérica", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal (prosa) e Fernando García de la Banda (poemas), Madrid: Ediciones Siruela (colección El Ojo del Tiempo, #91), 1a. edição (2016), brochura 15x23 cm., 253 págs., ISBN: 978-84-16638-94-9 [edição original: Continent in beweging (Antwerpen/Netherlands: De Bezige Bij) 2013]
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