quinta-feira, 28 de maio de 2009

o gol iluminado

No Rio Grande do Sul futebol é levado a sério, você não pode simplesmente ter um time e eventualmente torcer por ele, você deve manifestar seu encantamento sempre que possível e preferencialmente em voz alta. Metade dos viventes destes pagos são gremistas, metade colorados. Os dois times estão entre os mais vitoriosos e são respeitados Brasil afora. Neste ano o Internacional comemora seu centenário, pois foi fundado no dia 04 de abril de 1909. Festas mil pintaram de vermelho as cidades do Rio Grande do Sul e aqui em Santa Maria não foi diferente. Um grupo de colorados cá da cidade lançou um livro de crônicas futebolísticas neste dia de centenário. Não estive lá, santista que sou, mas soube que foi um dia especial. O Athos foi o grande capitão desta empreitada. Lembro-me bem dele perguntar-me mais de um ano atrás se fulano ou beltrano que moram no meu prédio eram colorados, pois gostaria de convidá-los para um "projeto", como ele gosta de dizer. De fato Athos descobriu esta veia de empreendedor literário, um motivador/quase editor de projetos e os livros tem saído cada vez mais bem acabados, mais bonitos e com o conteúdo mais bem trabalhado também. Ele convidou seis colorados da gema, de diferentes gerações e profissões. Cada um contribuiu com oito ou dez crônicas sempre focadas no futebol e nas passagens míticas nas quais se envolveu o Internacional nestes cem anos. Cada um deles (Athos, Zanatta, Zé Mauro, Maiquel, Tex, Pedro, Tânia) tem um estilo pessoal e uma forma específica de se expressar, mas encontramos em todos a paixão, o encantamento, o prazer de torcer, típicos de quem leva mesmo o futebol a sério. São histórias boas de se ler, embora eu perca um ou outro detalhe besta. A capa é do Elias Monteiro, muito boa por sinal. O título do livro, "O gol iluminado", é homenagem a um certo gol que eu mesmo nunca vi, o gol da vitória contra o Cruzeiro na decisão do campeonato brasileiro de 1975, feito por um outro Elias, o Figueroa. Antes que um gremista me aborreça prometo que vou ler algo sobre o grêmio e resenhar aqui (não é bom se envolver em brigas com estes irredutíveis gauleses, digo, gaúchos, seja de que time for). Bom divertimento. [início 04/04/2009 - fim 05/05/2009]
"O gol iluminado", Athos Ronaldo Miralha da Cunha, Humberto Gabbi Zanatta, José Mauro Batista, Maiquel Rosauro, Odemir Tex Junior, Pedro Brum Santos, Tânia Lopes, editora Manuzio (1a. edição) 2009, brochura 14x21, 144 págs. ISBN: 978-85-7782-061-0

quarta-feira, 27 de maio de 2009

cotidiano crônico

Diomar Konrad é um jornalista que eu gosto de ler. Ele costuma dizer que gosta de provocar, de incomodar, de tirar os amigos e inimigos do sério. E ele também gosta de não ser levado muito a sério. Nas suas crônicas a ironia é mais que uma figura de linguagem ou retórica, mas sim a própria razão de ser do texto. Mas Diomar não é escravo de um estilo só. Ele sabe ser convincente e bom de se ler mesmo nos textos menos irônicos (o que talvez seja um bom exemplo de excelência invulgar). Atualmente ele escreve crônicas para um jornal da cidade. São crônicas curtas, ocupam um terço de uma página tamanho tablóide, e que precisam ser mesmo concisas, mas boas o suficiente para já ganhar a atenção do leitor no primeiro parágrafo. Neste "Cotidiano crônico" ele selecionou pouco menos de quarenta delas produzidas nos últimos seis, sete anos. Algumas sobrevivem melhor no formato livro do que outras, que perdem um tanto do frescor que tinham quando as encontramos no jornal pela primeira vez. O livro se defende sozinho, garante boa diversão e bom material para reflexão. Gosto particularmente das crônicas onde ele mostra as contradições e as bizarrices no amor e no sexo, bem como naquelas onde ele faz resenhas críticas dos maus hábitos e auto-enganos das pessoas. O livro é uma produção quase artesanal dele mesmo, por conta disto o resultado é um tanto irregular. Talvez o livro faça por merecer o olhar e o acolhimento de um editor generoso. É dura esta vida de cronista! Parabéns Diomar, mas não vou deixar de registrar aqui que eu mesmo prefiro algo mais forte, algo como um bom e definitivo sarcasmo (pois o atual quadro político, social e econômico do Brasil é para mim medíocre demais, vulgar demais, estúpido demais, para que apenas a ironia nos conforte). [início 02/05/2009 - fim 05/05/2009]
"Cotidiano crônico", Diomar Konrad, editora Manuzio (1a. edição) 2009, brochura 14,5x21, 120 págs. sem ISBN

quinta-feira, 21 de maio de 2009

menina que brincava

Como havia gostado muito do primeiro volume da trilogia Millennium de Stieg Larsson, não esperei muito para comprar e ler este segundo volume assim que ele foi publicado. Todavia este "A menina que brincava com fogo" não me agradou da mesma forma. Se no primeiro volume a falta de ambiguidade ajudava um tanto a entender os papéis representativos da complexa sociedade sueca, neste segundo o jogo do bem contra o mal é esquemático e repetitivo demais. O primeiro capítulo é apenas um prólogo dispensável, sem conexão algum com a história principal, um tanto ao estilo dos filmes de espionagem, onde algo com muita movimentação e violência antecede a entrada dos créditos iniciais. Há também longos capítulos que servem apenas para prolongar um clímax que nunca chega e retardar o fato do leitor já estar certo de saber que a mocinha vai se safar, que a verdade virá a tona, que os maus e perversos serão desmascarados. Os personagens principais, a jovem hacker e o astuto jornalista, continuam os mesmos que deixamos ao terminar o volume anterior, apesar de terem se envolvido emocionalmente e se separado abruptamente. As coincidências e acasos abundam pelo livro, sem eles nenhuma ação poderia se desenvolver adequadamente. Um novo personagem, misterioso e com ligações políticas no alto escalão do governo, domina o livro todo, até aparecer como um demônio encarnado nos capítulos finais. Não há remissão para o sujeito. Muito do passado da jovem heroína do livro é agora explicado e justificado, mas ela não ganha muito em profundidade psicológica, como se esperaria de um personagem forte. O final da história acontece rápido demais, como se o autor estivesse cansado dos tantos desvios que fez para chegar aquele ponto. Há coisas que são irritantes: acreditar que uma mocinha possa se livrar de dois fortes motociclistas suecos, uns marginais que são típicos vikings modernos, apenas usando o fator surpresa, é mesmo inverossímel demais. Há uns erros de tradução meio bobos acho eu. A menina vai comprar bebidas em um "monopólio dos espirituosos", que eu acho ser uma tradução ruim para um trivial "loja de bebidas" e várias vezes a heroína faz menção a uma "bomba de gás lacrimogênio" que possui, mas eu acredito que se trata de um simples e funcional "spray de pimenta". Como eu não sei sueco (e a tradução foi feita a partir de uma versão francesa) jamais saberei se estou certo. Paciência. Vamos a ver como Stieg Larsson termina a trilogia. Se o mundo inventado por ele for mesmo esquemático como eu imagino devemos no terceiro volume ser apresentados a história pregressa do herói jornalista e seus sucessos. Veremos. [início 19/04/2009 - fim 04/05/2009]
"A menina que brincava com fogo - Millennium 2", Stieg Larsson, tradução de Dorothée de Bruchard, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2009, brochura 16x23, 607 págs. ISBN: 978-85-359-1422-1

segunda-feira, 18 de maio de 2009

a frase do doutor

"A frase do doutor Raimundo" é um livro curioso, pois nos contos todos os quatro autores contribuem com uma pequena parte. O livro é curto, pouco menos de cem páginas. Cada um dos autores começa e termina ao menos dois contos (o número de combinações possíveis é vinte e quatro, mas eles se contentaram em produzir dez). Um destes contos coletivos, "Relíquias de um tempo remoto", ganhou o primeiro lugar de um concurso literário em Bento Gonçalves no ano passado. Talvez motivados pela boa recepção eles decidiram produzir outros e encontraram o porto seguro de um editor, que os acolheu e publicou. O livro ficou bonito (apesar do Athos não ter gostado da capa). Alguns dos contos envolvem soluções algo fantásticas, passagens oníricas, narrativas mágicas, mas há também vários onde o pano de fundo é a crua política brasileira dos anos da ditadura militar. Em outros encontramos o amor e o sexo envolvendo as pessoas, sem medo e sem temor. As coisas da vida no Rio Grande do Sul, notadamente a geografia e a história de Santa Maria, estão sempre presentes. Algumas vezes as histórias caminham de um autor a outro sem que todas as possibilidades apresentadas se encaixem à perfeição, nem da melhor forma (a meu juízo) mas em vários dos contos observa-se um equilíbrio e ritmo bastante razoáveis, como se um único autor os tivesse produzido. Trata-se de um bom livro onde se aprende e se delicia um tanto da voz narrativa de cada um deles, indivíduos senhores do ofício solitário da escrita, mas também amigos que se divertem juntos com um brinquedo novo. [início 30/04/2009 - fim 03/05/2009]
"A frase do doutor Raimundo", Antônio Cândido de Azambuja Ribeiro, Athos Ronaldo Miralha da Cunha, Orlando Fonseca, Tânia Lopes, editora Movimento (1a. edição) 2009, brochura 14x21, 80 págs. ISBN: 978-85-7195-138-9

sábado, 9 de maio de 2009

leite derramado

"Leite derramado" é um livro de Chico Buarque que se lê sem esforço algum em um final de tarde calmo. É um livro feito para ser fácil de ler, que não exige mesmo nada do leitor (claro, exige que o sujeito seja alfabetizado e opere razoavelmente com o português, mas isto quase qualquer um faz). É um livro bem escrito, com sujeitos, verbos e predicados no lugar, miríades de adjetivos esparramados pelo texto, colorindo-o, que usa muitas palavras quase em desuso, garimpadas por Chico Buarque no Houaiss, no Aurélio ou no Aulete, repleto de metáforas ao gosto do leitor grato às idéias prontas. Mas a idéia básica do livro não é original: um sujeito entrevado em uma cama de hospital, que ora delira, ora pensa, ora relembra cousas de sua história e da história de sua família. Quem já não leu um livro com este mote? A estrutura narrativa não é linear, mas há uma generosa simetria no livro. O sujeito/narrador/velhinho no hospital fala de sucessos que vão de seu tetravô até seu suposto tetraneto. Sua história serve como metáfora para a história triste do Brasil, desde sempre assombrado por auto-enganos, decadência atávica, senso de realidade defeituoso, infestado por corruptos e apedeutas. O fato da história não ser contada seguindo uma ordem temporal facilita a vida mesmo do mais dispersivo e desleixado dos leitores. Mas, como seria de se esperar, nem de longe Chico Buarque consegue resumir 600 anos de história de Portugal e do Brasil em menos de 200 páginas. O fato do narrador moribundo ser um exemplo caricato de uma elite decadente apenas ecoa a cantilena esquerdista de sempre, que prefere transferir as mazelas brasileiras à história ao invés de identificá-la nos muitos arautos do atraso que estão bem vivos na sociedade hoje em dia. Quem se dignar a ler ao menos um jornal por semana os identifica rapidamente, mas esta é outra história. O artifício de usar um nome e suas variações para indicar a maior parte dos personagens facilita as coisas, pois o que é afirmado de um poderia ser cair na cota de outros, o que inferimos de um trecho pode ser adjudicado à outro (e você já deve ter lido livros onde isto acontece.) Os fatos históricos distribuídos no texto apenas servem para ajudar o leitor a situar-se rapidamente, não há juízo de valor ou tentativa de compreensão do significado das passagens. Na orelha do livro uma apresentação de Leyla Perone-Moisés argumenta favoravelmente ao livro lembrando exatamente sua brevidade e concisão, como se escrever algo com mais complexidade e estofo fosse mesmo um demérito. Certamente este livro ganhará prêmios e será muito citado, mas nem de longe é um livro que eu ache valer o esforço e o tempo necessários a leitura, apesar de serem ambos mínimos. Vou voltar logo ao Javier Marías e sua prosa poderosa. Much more suitable!, como diria Lord Marchmain. [início 25/04/2009 - fim 28/04/2009]
"Leite derramado", Chico Buarque, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2009, brochura 15,5x22,5, 112 págs. ISBN: 978-85-359-1411-5

sexta-feira, 8 de maio de 2009

mañana en la batalla

Segundo o próprio Javier Marías as boas críticas e o estrondoso sucesso comercial de "Corazón tan blanco" o fez imediatamente envolver-se em um novo projeto literário. Ele não queria ficar conhecido como o autor do livro tal e que sua obra ficasse eclipsada por uma recepeção tão boa de um único livro. O resultado desta decisão é um livro ainda melhor, que li como o autor deseja, ato contínuo à leitura do anterior. "Mañana en la batalla piensa en mí" tem um início cativante. Na estival Madrid dos anos 1990 um sujeito se vê na casa de uma mulher que ele conhece pouco, apenas o suficiente para se fazer seduzir. O marido desta mulher está viajando, na Inglaterra, e o filho pequeno deles é colocado para dormir. Após o jantar e o vinho e quando já estão nas preliminares do sexo eis que a mulher tem um mal súbito e morre. O sujeito não sabe bem o que fazer, sabe vagamente o nome do marido da mulher e tampouco sabe onde ele está hospedado em Londres. Acaba descobrindo estas duas informações, mas não consegue prontamente transmitir para o marido a importante informação que tem, nem tampouco consegue ligar para a polícia. Sai furtivamente do apartamento. A partir daí Javier Marías apresenta como um sujeito fica obcecado em saber o "final da história", ou seja, como todos os demais com quem a mulher se relacionava receberam a notícia de sua morte e de como reagiram a ela. Ele vive de escrever textos para terceiros. É uma espécie de "ghost writer" para políticos iletrados, dramaturgos preguiçosos, ensaístas sem imaginação. Consegue se aproximar profissionalmente do pai da mulher morta, ao preparar um discurso para uma ocasião importante no parlamento europeu. A partir dele acaba se envolvendo com a irmã da morta. De fato ele flerta com ela antes dela lembrar-se dele. Afinal ambos relembram ter se cruzado quando ele saía do apartamento naquela madrugada em que a mulher morreu. Através dela acaba contando sua história para o viúvo, o sujeito que havia viajado à Londres naquela noite. Os grandes temas de Marías estão todos neste livro: a preocupação com os usos da língua (para esclarecer e para ocultar); os desvios por temas que parecem triviais, congelando a trama; as citações de filmes americanos, mas sempre de filmes obscuros e não comerciais; a presença seminal de Shakespeare permeando o texto; a questão da traição e da lealdade (a si mesmo e aos outros). O que impressiona no texto de Marías é sua capacidade de antecipar possibilidades e nos surpreender sempre. Se a história que o narrador conta já é impactante, a história do marido da morta é ainda mais surreal (mas ainda assim verossímil). Na verdade é o marido que quer se purgar contando a sua história, mais de saber como afinal o sujeito se envolveu com sua mulher e como a viu morrer. Uma citação ao início da peça Henry V de Shakespeare parece ser o ponto de onde todo o romance surge. Trata-se daquela terrível passagem em que o Henry V ignora seu antigo companheiro de badernas Falstaff (na época em que era somente o príncipe Hal) dizendo: "I know thee not, old man. Fall to thy prayers. How ill white hairs become a fool and jester!" Agora é oficial. Vou ler todos os Javier Marías que encontrar. Este sujeito sabe como ninguém contar uma boa história. [início 13/04/2009 - fim 27/04/2009]
"Mañana en la batalla piensa en mí", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 368 págs. ISBN: 978-987-566-255-1

quinta-feira, 7 de maio de 2009

a cidade das palavras

Este "A cidade das palavras" foi mais uma sugestão de minha amiga Eliane, precisa e instigante como sempre. Trata-se de um livro que é resultado de uma série de conferências preparadas no Canadá (país de adoção do argentino Alberto Manguel), chamadas "Massey Lectures". Neste ciclo de palestras Manguel discute o atávico hábito humano de ler, ouvir e contar histórias (para ele estas habilidades humanas são por definição a razão de sermos de fato humanos). É um livro quase técnico, mas que pode ser apreciado apenas como aulas de um erudito professor. Talvez elas percam um tanto do frescor e da força ao sairem do auditório cheio, pleno do calor e da participação do público. Não sei. Mas o texto dá muita informação específica e na verdade é tão vasto em seu propósito e abrangência, que não sei se de fato ele não vale mais como um manual de usos da inteligência e/ou curiosidade de cada leitor. Afinal podemos seguir a partir dos muitos pontos onde ele para nas reflexões. Os temas são generalistas demais, apesar de instigantes, afinal como falar do desenvolvimento da linguagem no homem sem ser superficial, apenas apontando os caminhos? O ciclo de palestras poderia ser resumido assim: Cassandra, Gilgamesh, Babel, Quixote, Hal, ou seja, ele parte dos mitos e histórias dos gregos, escava um tanto mais fundo ao descrever dois mitos sobre o dilúvio e avança o tempo para os grandes marcos do Don Quixote e da ficção científica da segunda metade do século passado. Um bom livro, sim, mas devemos partir dele e avançar se quisermos alcançar um novo patamar de sabedoria. [início 14/04/2009 - fim 17/04/2009]
"A cidade das palavras", Alberto Manguel, tradução de Samuel Titan Jr., editora Companhia das Letras (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 150 págs., ISBN: 978-85-359-1297-5

quarta-feira, 6 de maio de 2009

aforismos sem juízo

Neste pequeno livro Daniel Piza apresenta cerca de 400 aforismos criados por ele nos vinte e tantos anos com que trabalha com a palavra e com o escrever. Deixei o livro ao lado da cama e durante um tempo fui lendo aleatoriamente um punhado deles. Alguns são interessantes, mas cada um de nós tem o seu estoque de aforismos, de frases feitas, de ditos, de frases de expressão, que usa e que gosta de usar, reiteradamente. Talvez o certo mesmo seria cada um de nós escrever um livro como este do Piza, pois teríamos algo mais concreto que um cartão de visitas para utilizarmos quando temos de nos apresentar aos outros. Ele dividiu os aforismos em quatro grandes grupos: existência e moral, dinheiro e poder, amor e sexo, cultura e saber. Embaralhados eles poderiam se acomodar em outras classificações sem problemas. Muitos são realmente bons, mas cito aqui alguns deles que anotei especialmente: "uma pessoa que nunca perde o humor é uma pessoa que não o tem", "não existe plástica para a burrice", "um homem inteligente sem amigos inteligentes é menos inteligente", "a esperança é a única que morre", "não há crítica mais destrutiva que a posteridade", "se você pode viver bem sem amar, está pronto para amar". Se não têm o calibre de um Mencken, Karl Kraus ou Millôr Fernandes, tem o frescor de um trabalho honesto. Vale a leitura. [início 02/04/2009 - fim 16/04/2009]
"Aforismos sem juízo", Daniel Piza, editora Beltrand Brasil (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 112 págs. ISBN: 978-85-286-1354-4

terça-feira, 5 de maio de 2009

seu rosto amanhã 2: dança e sonho

"Calar é a grande aspiração que ninguém realiza". Assim começa "Dança e sonho". Parece ser este o registro importante desta segunda parte do romance "Seu rosto amanhã" de Javier Marías. Publicada originalmente em 2004 a tradução para o português foi feita há pouco mais de seis meses, no final de 2008. Nos dois grandes capítulos desta segunda parte somos apresentados aos detalhes daquilo que ficou subentendido no volume anterior: como o narrador, Deza, tornou-se uma espécie de consultor de um grupo ligado ao serviço secreto inglês. Ele tem a notável habilidade de produzir rapidamente avaliações precisas de caráter. Mesmo sem ser informado sobre o quê se procura descobrir de uma determinada pessoa ele sabe observá-la atentamente e produzir um relatório que possa indicar do quê a pessoa é ou não capaz. Não sei se este tipo de habilidade é inata ou pode ser construída ou aprimorada. Esta parte do romance também se concentra em poucos cenários, mas são tantas as histórias paralelas, que servem por vezes apenas para esclarecer um pouco trivial da trama, que facilmente podemos perder-se nelas. Há longos trechos sobre a rapidez da memória (a memória involuntária do Proust, claro); sobre os azares das mortes nas guerras, sobre o uso do botox (que eu achei um porre de chato, fazer o quê) e sobre a menstruação. Há boas e delicadas descrições por todo o livro, mas na parte central do volume há trivialidades demais, como se ele quisesse deliberadamente esticar a história. A quarta parte é uma espécie de acerto de contas com a hipocrisia espanhola em relação à sua guerra civil (uma cousa ainda não resolvida completamente na sociedade espanhola), descrevendo cruamente as loucuras de uma guerra e os massacres terríveis promovidos por Franco. Neste volume conhecemos melhor o personagem Beltran Tupra e sem medo de errar o coloco em meu panteão particular. Trata-se de um mefistófoles moderno, pleno de energia e poder, e tem algo que lembra o Barão de Charlus, mas sem sua histeria, apenas com sua capacidade de ser sedutor e cruel simultaneamente. O tema da traição preenche todos os espaços do romance. "Don´t linger or delay" diz Tupra em um determinado momento da história e o leitor fica tão atemorizado quanto o narrador. O discurso de Tupra traduzido por Deza é o terror encarnado, um brado pleno de poder que congela o sujeito. O volume termina quando Tupra decide mostrar algo no seu impenetrável apartamento (mas o quê há lá só saberemos no último volume do romance). Que bela história. [início 07/04/2009 - fim 14/04/2009]
"Seu rosto amanhã: dança e sonho", Javier Marías, tradução de Eduardo Brandão, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2008, brochura 14x21, 359 págs. ISBN: 978-85-359-1316-3

segunda-feira, 4 de maio de 2009

corazón tan blanco

Um bom livro convida outro. Assim que terminei o "Febre e lança" resolvi voltar a velha estante dos espanhóis que trouxe na última viagem e resgatar os vários Javier Marías que estavam lá esperando dias melhores. Este "Corazón tan blanco" é um livro muito bom. A primeira frase é poderosa: descreve como uma moça sai da mesa do jantar, vai ao lavabo e dá um tiro no coração, surpreendendo convidados, pais, irmã e marido. A história parte daí para discutir como cada um de nós reage a segredos, a confidências, a informações-chave sobre uma pessoa. No livro anterior de Javier Marías que li, uma frase que ele registra e que me interessou é "Ninguém nunca deveria contar nada". Neste, escrito dez anos antes, este tema também é importante. O narrador acabou de casar e saiu para viajar com a mulher. Uma conversa casual com seu pai durante a festa de casamento o deixou intrigado, como se o pai só o fizesse saber naquele momento das muitas transformações pelas quais uma pessoa passa quando se casa ou se envolve fortemente com alguém. Aos poucos ele vai garimpando informações sobre as ex-mulheres de seu pai, três vezes viúvo, mas ainda encantador e até sedutor. O narrador trabalha como tradutor e viaja muito. O tema da tradução como metáfora do entendimento dos outros, dos homens, da vida, me parece ser caro à beça para Javier Marías. O narrador conta sinuosamente várias histórias que ajudam o leitor a entender o conflito dele em atentar às que realmente importam: a dele com sua mulher e a de seu pai com suas ex-mulheres. De fato o pai somente conta para a nora detalhes de sua vida (as mesmas histórias que furtou seu filho de saber). São tantas as histórias paralelas e tantos os bons personagens que aparecem que o livro serve mesmo como um mosaico da espécie humana. É um livro muito bom, com descrições belíssimas de situações e reações humanas aos fatos mais simples da vida. Bom escritor. Haverá mais Marías por aqui. [início 01/04/2009 - fim 07/04/2009]
"Corazón tan blanco", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 320 págs. ISBN: 978-987-566-253-7

domingo, 3 de maio de 2009

seu rosto amanhã 1: febre e lança

Comprei este "Seu rosto amanhã (vol.1. - Febre e lança)" em 2007, em um sebo do bairro do Flamengo, quando estava flanando pelo Rio após um congresso de magnetismo dos bons. Já conhecia Javier Marías (alguns eu já resenhei aqui), mas fiquei surpreso ao comprar um romance dele tão barato, ainda por cima em um sebo tão modesto, de um balaio onde havia de tudo um pouco. Quando voltei deixei o livro perdido entre os demais e ele teve de mostrar suas garras para que eu o resgatasse e começasse a lê-lo. Meu dia de aniversário estava chegando e eu sempre gosto de voltar as cousas de Espanha nesta época. "Seu rosto amanhã" é um grande romance, que Marías publicou originalmente em três partes nos anos 2002, 2004 e 2007. Segundo ele não se trata de uma trilogia, mas sim um grande romance, um sinuoso romance, sinuoso como um rio, que um dia poderá ser publicado em um único volume. É um livro onde há poucos cenários, mas onde a ação se desenvolve em miríades de detalhes, reviravoltas, desvios, reflexões. Estes cenários são três: uma festa organizada por um velho professor de um dos "colleges" da Oxford milenar, sempre cara à Marías; uma reunião em um discreto "bureau" de um serviço secreto de informações inglês; e uma conversa a beira do rio Isis, entre o velho professor e o narrador da história, conversa que acontece na manhã seguinte ao jantar descrito na primeira parte, e que antecipa o que acompanhamos na parte central da história. Trata-se de uma história complexa, "pós onze de setembro de 2001" se podemos definir assim uma história, e que, provavelmente, somente vamos entender ao finalizar o terceiro volume (diferentemente do que li em algumas críticas deste romance, não se trata de volumes que possam ser lidos de forma independente, mas esta é outra história). O tema central me parece até aqui ser o da impossibilidade de conhecermos realmente alguém, pois um rosto, uma personalidade, uma vida enfim, pode ser apenas superficialmente conhecida. A traição, a desconfiança, os segredos surperpostos, as surpresas, abundam no livro. O romance está recheado de enigmas, mas ler um romance é um tanto como ler uma pessoa, descobrir o que ela é e o que ela quer que entendamos o que ela seja. Há personagens muito curiosos neste livro: Tupra, que aparentemente testa e contrata o narrador para um tipo de atividade relacionada a espionagem; Wheeler, o velho professor, com título de nobreza e um passado vinculado às grandes guerras do século passado; e claro, Deza, o narrador, um espanhol que vive de traduções e cujo nome é grafado de várias formas. Vou tentar ler de pronto os demais volumes (a tradução do segundo saiu no ano passado no Brasil, mas o terceiro volume está prometido apenas para o ano que vem). Há muito que lembra Proust e também Lawrence Durrell no texto de Javier Marías. Excelente romance. [início 03/03/2009 - fim 01/04/2009]
"Seu rosto amanhã: febre e lança", Javier Marías, tradução de Eduardo Brandão, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2003, brochura 14x21, 406 págs. ISBN: 978-85-359-0423-9

sábado, 2 de maio de 2009

otra vuelta de tuerca

Ainda em dezembro comprei este livro e a idéia era dar de presente para alguém, mas acabei ficando com ele. De lá para cá li trechos aqui e acolá, um tanto descompromissadamente, mas tomei gosto enfim e quando me dei conta percebi que deveria terminar de lê-lo de uma vez. É uma novela curta, uma novela fantástica, no sentido de sermos apresentados a fantasmas e ao sobrenatural. Um casal de crianças é deixado aos cuidados de uma jovem governanta nos Estados Unidos do início do século passado. O ambiente opressor da grande residência onde eles três e mais uns poucos criados passam um outono/inverno brumoso leva a governanta a acreditar que as crianças estão sendo ameaçadas por dois fantasmas (de antigos serviçais que haviam morrido pouco tempo atrás). Na verdade pode-se ler a história e só acreditar que a jovem governanta é apenas uma histérica patologicamente clássica, que transforma sua instabilidade emocional em visões fantasmagóricas. Mas o comportamento das crianças (orfãs e praticamente abandonadas por um rico tio distante, terreno propício para leituras psicanalíticas sempre caras à Henry James) também não é isento de complexidade. Confesso que perdi um tanto das sutilezas do texto com meu castelhano apenas passável. Houve uma época que li vários Henry James de uma vez e posso recomendá-los sem medo. Fazia tempo qeu não lia algo dele e gostei. Diversão garantida. [início 20/01/2009 - fim 24/03/2009]
"Otra vuelta de tuerca", Henry James, tradução de Héctor Daniel Stilman, editora Longseller (1a. edição) 2005, brochura 11x18, 304 págs. ISBN: 978-987-550-543-9

sexta-feira, 1 de maio de 2009

metafísica dos tubos

Ulalá! Amélie Nothomb e seus livrinhos feitos de nitroglicerina pura, sempre surpeendentes. Assim é o caso deste "A metafísica dos tubos". É uma história de cento e tantas páginas, muito pessoal, direta e objetiva, mas que te força a ficar com ela em mãos até o final. Ela emula o ato de pensar de um recém nascido, que aliás é ela mesma, e que aos poucos vai descobrindo o mundo à sua volta, interagindo com ele, mesclando-se e adaptando-se a ele. No início o ser humano nada mais é que um anfioxo, aquele remoto ancestral de todos os vertebrados, que apenas ingere, digere e expele (e sobrevive, claro). Pois bem, um bebê nada mais é que um tubo por onde flui algum alimento. Mas as metáforas de Nothomb nunca são simples. Uma criança é também um pequeno deus (não um deus onipotente, ainda bem) que tudo quer e tudo alcança; um deus que se articula aos poucos; que rapidamente sabe que o prazer é sua própria identidade, sua razão de ser. Se no livro autobiográfico anterior que li dela (medo e submissão) ela vergasta o Japão, aqui ela o redime. Aprendemos mais um tanto sobre o sistema social japonês, sobre o teatro Nô (com o qual seu pai cônsul se envolveu de forma absoluta), sobre o envolvimento daquele povo com o mar, com a culinária e com a natureza. É um livro que fala do aprendizado de cada um de nós, aprendizado de regras, de línguas, de sintaxes, mas que também flerta com a morte, presente do início ao fim. No final ela conversa com o leitor, em mais um de seus jogos metalinguísticos bem construídos. Trata-se mesmo de uma poderosa escritora. [início - fim 20/03/2009]
"A metafísica dos tubos", Amélie Nothomb, tradução de Clóvis marques, editora Record (1a. edição) 2003, brochura 14x21, 144 págs. ISBN: 978-85-01-06339-8