"Leite derramado" é um livro de Chico Buarque que se lê sem esforço algum em um final de tarde calmo. É um livro feito para ser fácil de ler, que não exige mesmo nada do leitor (claro, exige que o sujeito seja alfabetizado e opere razoavelmente com o português, mas isto quase qualquer um faz). É um livro bem escrito, com sujeitos, verbos e predicados no lugar, miríades de adjetivos esparramados pelo texto, colorindo-o, que usa muitas palavras quase em desuso, garimpadas por Chico Buarque no Houaiss, no Aurélio ou no Aulete, repleto de metáforas ao gosto do leitor grato às idéias prontas. Mas a idéia básica do livro não é original: um sujeito entrevado em uma cama de hospital, que ora delira, ora pensa, ora relembra cousas de sua história e da história de sua família. Quem já não leu um livro com este mote? A estrutura narrativa não é linear, mas há uma generosa simetria no livro. O sujeito/narrador/velhinho no hospital fala de sucessos que vão de seu tetravô até seu suposto tetraneto. Sua história serve como metáfora para a história triste do Brasil, desde sempre assombrado por auto-enganos, decadência atávica, senso de realidade defeituoso, infestado por corruptos e apedeutas. O fato da história não ser contada seguindo uma ordem temporal facilita a vida mesmo do mais dispersivo e desleixado dos leitores. Mas, como seria de se esperar, nem de longe Chico Buarque consegue resumir 600 anos de história de Portugal e do Brasil em menos de 200 páginas. O fato do narrador moribundo ser um exemplo caricato de uma elite decadente apenas ecoa a cantilena esquerdista de sempre, que prefere transferir as mazelas brasileiras à história ao invés de identificá-la nos muitos arautos do atraso que estão bem vivos na sociedade hoje em dia. Quem se dignar a ler ao menos um jornal por semana os identifica rapidamente, mas esta é outra história. O artifício de usar um nome e suas variações para indicar a maior parte dos personagens facilita as coisas, pois o que é afirmado de um poderia ser cair na cota de outros, o que inferimos de um trecho pode ser adjudicado à outro (e você já deve ter lido livros onde isto acontece.) Os fatos históricos distribuídos no texto apenas servem para ajudar o leitor a situar-se rapidamente, não há juízo de valor ou tentativa de compreensão do significado das passagens. Na orelha do livro uma apresentação de Leyla Perone-Moisés argumenta favoravelmente ao livro lembrando exatamente sua brevidade e concisão, como se escrever algo com mais complexidade e estofo fosse mesmo um demérito. Certamente este livro ganhará prêmios e será muito citado, mas nem de longe é um livro que eu ache valer o esforço e o tempo necessários a leitura, apesar de serem ambos mínimos. Vou voltar logo ao Javier Marías e sua prosa poderosa. Much more suitable!, como diria Lord Marchmain. [início 25/04/2009 - fim 28/04/2009]
"Leite derramado", Chico Buarque, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2009, brochura 15,5x22,5, 112 págs. ISBN: 978-85-359-1411-5
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