sábado, 30 de agosto de 2014

cuando fui mortal (over again)

Na primeira semana de todos os semestres letivos da ufesm (como sói dizer don Ronái Rocha) há uma perda generalizada de força vital na universidade: a maioria das turmas ainda não está completamente formada; os ajustes de matrículas nunca terminam; os sistemas de comunicação e telefonia colapsam; o ruído resultante das vozes que se encontram é infernal; os trotes reiteram a inutilidade da incerta educação prévia do corpo social que passa a frequentar a instituição (mas onde rapidamente encontram seus precursores abúlicos). É uma semana inútil. Simples assim. Como lenitivo aproveitei para ler um bocado e encontrei nos guardados esse "Cuando fui mortal", de Javier Marías. Foi um dos primeiros livros que li dele. Cada um dos contos é uma pequena jóia, o tempo com ele um verdadeiro descanso na loucura. Já escrevi aqui o impacto da primeira leitura desses contos, em janeiro de 2008. São doze histórias originalmente publicadas em jornais ou revistas, entre 1991 e 1995. As narrativas sempre envolvem o desdobramento de uma situação concreta que não é igualmente interpretada pelo narrador e pelos protagonistas das histórias. "Cuando fui mortal" e "No más amores", as duas histórias de fantasmas do conjunto, são boas; a mais longa das histórias, "Sangre de lanza" continua minha favorita; "Menos escrúpulos", "En el viaje de novios", "Domingo de carne" e "Prismáticos rotos" igualmente incríveis, pela linguagem, invenção e concisão. Nenhum dos demais: "El médico nocturno", "La herencia italiana", "Figuras inacabadas", "Todo mal vuelve" e "En el tiempo indeciso" é irrelevante, dispensável ou tolo. Você acaba de ler um dos contos e não se incomodaria de voltar a relê-lo, tamanho o impacto. Bueno, se um sujeito ainda precisar de incentivo para começar a ler Javier Marías reafirmo: os contos de "Cuando fui mortal" irão arrebatá-lo.
[início: 11/08/2014 - fim: 16/08/2014]
"Cuando fui mortal", Javier Marias, editorial Debolsillo (Contemporánea) Randon House Mondadori, 1a. edição (2007) brochura 13x19 cm, 168 pág., ISBN: 978-987-566-257-5 [edição original: Cuando fui mortal (Madrid: Punto de lectura) 1996]

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

a lição do mestre

Paul Overt, um jovem e ambicioso escritor, participa de uma festa numa casa de campo nos arredores de Londres promovida por Henry St. George, um romancista já consagrado. O jovem escritor admira seu colega mais velho, embora saiba que a qualidade de seus últimos livros seja ruim. Durante a festa Paul conversa com várias pessoas, como a mulher do escritor mais velho e um militar amigo do casal. Ele observa que Henry passa todo o tempo livre em animadas conversas e caminhadas com uma garota. Durante o jantar ele descobre que essa garota é Marion, filha do militar com quem conversou mais cedo. Ela confessa ser uma entusiasta de seus livros e ele, feliz com esse interesse, imagina uma oportunidade de flertar com ela. À noite, quando Paul já imaginava sair da festa sem ter a chance de conversar com seu anfitrião, ele é surpreendido com o convite de Henry para uma conversa reservada em sua biblioteca. Como acontece usualmente nos livros de Henry James é a partir do que se discute numa longa conversa entre dois protagonistas que a narrativa se desenvolve, sobretudo psicologicamente (e não me cabe mais detalhar qual é a tal "lição do mestre", sob pena de estragar a diversão de um eventual leitor destas linhas). Apesar de Paul não ser tão ingênuo como Marcel, o narrador de "Em busca do tempo perdido" de Proust, o conflito criada por Henry James lembra o primeiro encontro entre o Barão de Charlus e Marcel (falo da assimetria entre as experiências mundanas de ambos e da dificuldade de Marcel entender o caráter de Charlus). "A lição do mestre" exemplifica também (ainda que com sinais um tanto trocados) a "Angústia da influência", conceito tão caro a Harold Bloom em sua análise das relações entre os efebos e seus precursores. Bela história. Assim como "A briga dos dois Ivans", que já resenhei aqui, esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing). 
[início: 19/08/2014 - fim: 22/08/2014]
"A lição do mestre", Henry James, tradução de Paulo Henriques Britto, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 119 págs., ISBN: 978-85-61578-34-3 [edição original: The Lesson of the Master (London: Universal Review / S. Sonnenschein & co.) 1888]

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

finn's hotel

Esse pequeno livro tem tem uma história muito controversa. Danis Rose, um reconhecido especialista na obra de James Joyce localizou no início dos anos 1990 manuscritos de um conjunto de episódios que ele entendeu como substancialmente diferentes dos manuscritos daquilo que viria a se tornar o último romance de Joyce: "Finnegans Wake". Seria assim um livro independente e até então inédito de Joyce, pois para ele os 10 episódios que ele reuniu em "Finn's Hotel" estão para o "Finnegans Wake" como os contos de "Dublinenses" estão para o "Ulysses". Os episódios teriam sido escritos em 1923, bem antes dos manuscritos iniciais daquilo que viria a se tornar o "Finnegans Wake". A maioria dos demais especialistas em Joyce nunca concordou com ele. O projeto original de Rose era publicar "Finn's Hotel" ainda em 1992, mas a reação da crítica assustou os detentores dos direitos autorais de Joyce e o projeto foi abandonado. Em 2011, quando a obra de Joyce caiu em domínio público, o projeto foi retomado. "Finn's Hotel" foi publicado pela Ithys Press em 2013 e ganhou a fama de ser "o livro perdido de James Joyce". Controvérsias a parte o livro existe e está aí, para o deleite dos leitores. Essa edição brasileira incluí uma apresentação curta de Danis Rose, um longo e fundamental texto crítico de Seamus Deane e uma seminal nota de tradução assinada pelo industrioso Caetano Galindo, certamente o maior especialista brasileiro na obra de Joyce. A edição inclui também a versão de Galindo do "Giacomo Joyce", poema em prosa de Joyce publicado postumamente, em 1968. Há também um conjunto de ilustrações assinadas pela designer Casey Sorrow. O quê dizer dos dez episódios de "Finn's Hotel"? São fábulas curtas alusivas à história e mitologia irlandesas (Deane as chama de "meditações cômicas"). Os textos são curtos, coisa entre 3 e 13 páginas pequenas, mas a leitura toma tempo e atenção (e vale cada minuto de esforço). Vamos a ver: Em (i) "A tintinjoss de Irlanda" o Bispo Berkeley ensina são Patrício como preparar uma sopa/salada com as ervas da Irlanda; em (ii) "Bondade com peixinhos" são Kevin nasce e é iniciado na fé cristã, usa uma bacia como pia batismal e se masturba; em (iii) "Uma história de um tonel" são Kevin cria sua igreja em um tonel (ilha às avessas) e toma banhos de assento como ritos de iniciação; em (iv) "Seus encantos dela" conta-se a história da mulher do diabo, de sua juventude a maturidade, de seus atributos e de como ela aprende a rezar um pai-nosso; em (v) "O grande beijo" acompanhamos Tristão e Isolda consumar sua paixão com sexo enquanto o velho rei cornudo Mark ouve cisnes cantarem sua desgraça; em (vi) "Bordões da memória" quatro ondas/mulheres reclamam dos invasores da irlanda e falam do cansaço nos casamentos; em (vii) "Firmamente ao estrelato" são descritos os problemas conjugais de Tristão e Isolda, as ofensas e reclamações cruzadas entre eles; em (viii) "A casa dos cem cascos" Roderick O'connor, o último rei da Irlanda toma um porre de whiskey e cerveja preta; em (ix) "Homem comum enfim" conta-se a origem de HCE, o homem comum que vive na Irlanda, suas falhas e fraquezas; em (x) "Eis que te carto" a mulher de HCE, Anna Livia Plurabelle Earwicker, escreve ao rei dando conta do amor por seu marido, sua confiança nas qualidades dele (que está sendo caluniado por um sujeito chamado McGrath). Mais que um mimo para joyceanos "Finn's Hotel" é um bom caminho para qualquer neófito da obra de James Joyce conhecer a linguagem infernal que ele utilizará no "Finnegans Wake". Em tempo: um leitor curioso sobre a precedência ou não do Finn's Hotel em relação ao Finnegans Wake pode consultar com proveito um recente estudo de estilo publicado na revista eletrônica "Genetic Joyce Studies", por John Sullivan. Em tempo 2: Em algum momento o Galindo irá publicar sua versão do "Finnegans Wake". Aí a festa dos joyceanos estará sim completa. Vamos a ver.
[início: 16/06/2014 - fim: 21/08/2014]
"Finn's Hotel", James Joyce, tradução de Caetano Galindo, São Paulo: editora Schwarcz (selo Companhia das Letras), 1a. edição (2014), brochura 12x18 cm., 153 págs., ISBN: 978-85-359-2455-8 [edição original: Finn's Hotel (Dublin/Irlanda: Ithys Press) 2013]

terça-feira, 26 de agosto de 2014

f

"F" é um romance que se deixa ler sem muitas surpresas. Logo no inicio do texto o leitor fica sabendo que a narradora da historia é uma garota bastante experimentada em atos violentos, que tem histórias mal resolvidas com seu pai (já morto) e sua família, que está um bocado confusa e que foi contratada para matar o cineasta Orson Welles. A prosa correta de Antônio Xerxenesky alcança manter o leitor curioso com o destino da garota, Ana, oferecendo ao leitor informações factuais e invenções plausíveis sobre a vida e a obra de Welles. Não é pouco, mas isso não é suficiente para o leitor se empolgar especialmente. As três partes do livro alternam experiências da garota ainda adolescente, em 1975, no Rio de Janeiro, quando o pai morre e 1985, em Paris e Los Angeles, quando ela se envolve no projeto para matar Orson Welles. Há alguma digressão sobre o impacto da ditadura militar brasileira na geração da protagonista da história (que era jovem demais para se envolver de fato na luta armada ou na resistência ao regime ditatorial) e sobre os desdobramentos e referências, sobretudo culturais, do niilismo inerente desta mesma geração (uma característica não particularmente brasileira de qualquer forma). Uma versão abreviada deste romance seguramente se encaixaria melhor no livro anterior dele, o bom conjunto de contos "A página assombrada por fantasmas". Mas os autores são senhores de suas criações e talvez Xerxenesky tenha preferido exercitar seu estilo numa narrativa longa para descobrir o efeito final que produziria, sabe-se lá, como num aprendizado. O Orson Welles de Xerxenesky em "F" lembra o John Gawsworth de Javier Marías (no "All souls" e no "Negra espalda del tiempo"), um instrumento de aperfeiçoamento do ofício da escrita. Se for mesmo isso vamos a ver o que ele nos oferecerá no futuro.
[início: 31/07/2014 - fim: 01/08/2014]
"F", Antônio Xerxenesky, Rio de Janeiro: editora Rocco, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-325-2919-0

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

entreolhares

"Entreolhares" é um livro de reproduções fotográficas produzido para comemorar os 90 anos da Eny Calçados, uma tradicional loja de Santa Maria. As fotos fazem parte do acervo pessoal de Guido Cechella Isaia, um senhor apaixonado por arte e fotografia, que reuniu fotografias da cidade desde o início dos anos 1920 até meados dos anos 1970 (a maioria das fotos são assinadas pelo próprio Isaia mas há também fotos feitos por Bortolo Achutti, Luiz Gonzaga Schleiniger Jr. e João Souza). Cada uma das fotos antigas é contrastada com uma foto mais recente (que são assinadas por Laura Fabricio e Fabiano Dellmeyer). Não são apenas fotografias da paisagem, monumentos ou das edificações da cidade, mas também de grupos de pessoas, festividades públicas e privadas, da UFSM e de uma cidade vizinha, Itaara. O efeito obtido é muito bom. Simultaneamente acessamos algo do passado da cidade e o contrastamos com a configuração contemporânea. É um livro modesto, com apenas 52 fotografias no total, mas de valor inestimável. Digo isso pois lembro do impactante "Do céu de Santa Maria", o belo livro produzido anos atrás nas comemorações dos 150 anos da cidade, que parece ser o irmão mais velho e o inspirador de "Entreolhares". Parabéns a Fundação Eny por nos proporcionar (gratuitamente cabe dizer) algo assim.Vale.
[início: 17/08/2014 - fim: 23/08/2014]
"Entreolhares: reflexões fotográficas inéditas", Fabrise Müller (projeto), Luiza Haesbaert (organização), Santa Maria / RS: Fundação Eny, 1a. edição (2014), brochura 25x22 cm., 64 págs., ISBN: 978-85-65072-01-4

domingo, 24 de agosto de 2014

a máquina do mundo repensada

Nos últimos 16 e 17 de agosto foi realizada na Casa das Rosas, em São Paulo, a décima primeira edição do Hora H, evento em homenagem à obra e à memória de Haroldo de Campos. Claro, cada minuto ali foi mágico e inspirador. O tema das festividades deste ano foram as relações da obra de Haroldo com Arte e Ciência. Uma das atividades do evento foi "(Meta)Física em 'A máquina do mundo repensada' ", mesa de debates coordenada pelo poeta Nelson Ascher e com a participação dos físicos Roland de Campos e Renato Ghiotto, além de Diana Junkes, uma economista que tornou-se doutora em estudos literários (e que publicou recentemente um livro sobre a obra de Haroldo de Campos: "As razões da máquina antropofágica"). Foi um debate fértil, que contou com boas contribuições de fora da mesa, de Augusto de Campos, de Ivan de Campos e de vários outros participantes. Fiquei intrigado com o fato de ninguém ter mencionado a frutífera amizade entre Haroldo e o físico Mário Schenberg, que eu achava estar visível no poema (comentei isso com o povo da mesa, mas isso foi bem no final dos debates e o assunto não prosperou). De volta às alegrias de minha biblioteca peguei meu exemplar de "A máquina do mundo repensada" e o reli nessa semana. Cousa boa. Trata-se de um poema longo escrito em tercinas decassilábicas, confessadamente inspiradas pelo estilo de Dante Alighieri na "La divina commedia" (séc. XIV). São 457 versos, divididos em três partes. Haroldo dialoga com três textos: além do Dante já citado, também com "Os lusíadas", de Camões (séc. XVI) e com "A  máquina do mundo", poema de Carlos Drummond de Andrade incluído no livro "Claro enigma" (1951). O tema principal do poema é a cosmogonia que se torna cosmologia (a imaginação que ganha o status de ciência). Na primeira parte, primeiro como alegoria, utilizando o sistema das esferas de Ptolomeu, como descrito por Dante e evocado por Camões, depois se apropriando da desconfiança mineira de Drummond em relação a revelação da máquina do mundo, Haroldo canta apenas o mundo das idéias possíveis, das visões de mundo construídas sem base empírica. Na segunda parte ele explora o mundo das ciências, descreve alegoricamente os avanços da física, do big-bang à física moderna (ou seja, a física como estabelecida na primeira metade do século XX, da mecânica relativística e da quãntica). Na terceira parte (que é a mais longa, quase com tantos versos como a soma das duas primeiras) Haroldo retoma o que foi discutido nas duas primeiras, mas agora não é mais o poeta erudito falando, mas sim um poeta se imagina num telescópio, nas alturas, encantado com as coisas do cosmos, que rememora suas incursões e discussões sobre o tema cosmológico, que reflete sobre a vida que passa, que olha longe, para a cabala hebraica e caos primordial. Boa leitura, claro. E claro, minha memória não falhou (xô Alzheimer, xô!). Mário Schenberg aparece glorioso num longo excurso pelas estrofes 128 a 141, como eu havia pensado quando falei durante a palestra. Ulalá. No ano que vem tem mais Hora H. Vamos a ver se consigo terminar aquele volume (Haroldo de Campos - Transcriação) em que Marcelo Tápia e Telma Médici Nóbrega resgataram todos os textos do Haroldo publicados em jornais. Há tempo de sobra e vontade também para esses prazeres. Evoé Haroldo, evoé! Evoé Schenberg, evoé!
[início: 18/08/2014 - fim: 20/08/2014]
"A máquina do mundo repensada", Haroldo de Campos, Cotia/São Paulo: Ateliê editorial, 1a. edição (2000), capa-dura 18x27 cm., 104 págs., ISBN: 85-7480-016-3

sábado, 23 de agosto de 2014

2,99

De Marcio Renato dos Santos só conhecia seu "Dicionário amoroso de Curitiba", que já resenhei aqui. A protagonista daquele dicionário é sua Curitiba fundamental, entretanto Marcio soube povoá-la com um bocado de personagens interessantes. "2,99", o mais recente livro dele publicado, também trata das coisas urbanas, mas agora sua Curitiba se esconde algo tímida nas histórias e deixa brotar delas uns personagens estranhos, que são como fantasmas que assombram a si mesmos. As histórias são curtas e convincentes. Uma fala da rotina de um alcoólatra que para de beber e encontra o sucesso; noutra um motorista infernal transporta o narrador para um destino incerto; noutra ainda três personagens saem em busca de um enredo: procuram algo na vida dos outros. Os contos não são verborrágicos, nem servem de plataforma para longas teorias sociológicas e/ou psicológicas. Eles apresentam situações corriqueiras (que estão sempre no limite da estranheza ou da loucura, mas nunca se abrigam na irrealidade ou no fantástico. Gostei particularmente de "Guevarinha" (sobre um casal de esquerdistas festivos), "Bia" (sobre uma garota que faz o censo de suas amantes), "Nóia" (sobre uns amigos que veem TV e futebol como uma espécie de meditação) e "Caminho de Santiago" (sobre um sujeito que se sente culpado e vaga pelas escadas de um escritório ou labirinto). Bueno. São 16 contos no total. Dezesseis invenções onde o leitor acompanha sempre um narrador muito curioso do destino das pessoas que encontra ao acaso (e boa parte desta curiosidade o Marcio Renato alcança transferir ao leitor através de sua boa prosa).
[início: 11/08/2014 - fim: 12/08/2014]
"2,99", Marcio Renato dos Santos, Curitiba/Paraná: Tulipas Negras Editora, 1a. edição (2014), brochura 12,5x21 cm., 120 págs., ISBN: 978-85-917171-0-1

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

a briga dos dois ivans

Publicada originalmente há quase 200 anos "A briga dos dois Ivans" é uma história muito divertida (e atual). O narrador de Gógol descreve os desdobramentos de uma discussão besta entre dois grandes amigos e vizinhos. Os dois Ivans da história, Ivánovitch e Nikíforovitch, prósperos nobres russos que vivem em Mírgorod (hoje cidade ucraniana) são apresentados como pessoas corteses e educadas, respeitáveis pais de família que compartilham os mesmos hábitos e prazeres. Sentindo-se insultado com um comentário casual de seu vizinho, um dos Ivans resolve processá-lo em busca de reparação. Como o segundo Ivan também procura na justiça uma reparação similar os dois processos não avançam e uma feroz inimizade ocupa o lugar da antiga amizade entre os dois. Mesmo os esforços dos moradores da cidade em reaproximá-los fracassam. Aos amigos em comum dos dois brigões só resta lamentar o comportamento deles. Gógol usa sua narrativa para ilustrar como operavam a hipocrisia das pessoas, a burocracia do estado, o ridículo das grandes paixões e a inoperância da justiça em sua época. Esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing. Acho que é sim o caso de procurar os demais volumes desta coleção. Vale. 
[início: 13/08/2014 - fim: 14/08/2014]
"A briga dos dois Ivans", Nikolai Gógol, tradução de Graziela Schneider, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-61578-35-0 [edição original: Повесть о том, как поссорился Иван Иванович с Иваном Никифоровичем / Mírgorod / Русская империя (1835)]

terça-feira, 19 de agosto de 2014

luminoso amarillo

De Mempo Giardinelli só havia lido os bons contos reunidos em "La noche del tren y otros cuentos", que registrei aqui tempos atrás. Em minhas últimas férias encontrei duas outras coletâneas de contos dele, mas uma (ai de mim) perdeu-se em meus guardados. Paciência. A que não se perdeu é "Luminoso amarillo y otros cuentos". São 19 contos, 19 histórias curtas, realmente interessantes e muito bem escritas. O sujeito sabe contar suas invenções e sabe criar imagens e metáforas memoráveis. Nas narrativas em primeira pessoa ele emula lembranças da infância e juventude; quando opta por narrativas em terceira pessoa o que aflora são acontecimentos de um adulto já irônico, que compartilha com o leitor sua experiência, mas também provoca-o um tanto. Pelo menos um quarto das histórias se passa durante festas de Natal ou Ano Novo (uma curiosidade besta, reconheço). Na maioria das histórias ou é a tensão sexual ou é a presença inexorável da morte que conduz as aventuras dos personagens de Giardinelli. Os mais surpreendentes são "El paseo de Andrés López", em que seguimos um médico que se envolve com criminosos em Buenos Aires; "Otro conto con mar", no qual acompanhamos um menino que sai de sua cidade para conhecer o mar e "Jeanie Miller", onde encontramos a fúria do xenofobia e do racismo. Cito apenas esses três, mas poderia indicar a leitura de qualquer um dos demais, pois nada dele destoa do conjunto. É certo, preciso sim encontrar o outro livro desse sujeito que perdi em meus guardados.
[início: 12/08/2014 - fim: 13/08/2014]
"Luminoso amarillo y otros cuentos", Mempo Giardinelli, Caracas/Venezuela: Monte Ávila Editores Latinoamericana, 1a. edição (2007), brochura 13x20 cm., 126 págs., ISBN: 978-980-01-1534-3 [edição original: Luminoso amarillo y otros cuentos (Cienfuegos/Cuba: Editorial Sed de Belleza) 2005]

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

pássaros na boca

São 18 contos fantásticos que exploram situações limite, estranhas, amalucadas, de um surrealismo brutal. Samanta Schweblin descreve as dificuldades de seus personagens em suportar relações, viver em sociedade (e suas reações bizarras). Nas alegorias utilizadas por ela tudo é possível: um trem e uma cidade remetem ao mito de Sísifo; um grupo de mulheres abandonadas se comportam como Bacantes; num bar infernal todas as regras são absurdas; um casal tem a vida transformada em função de visões de pitonisas modernas; um sujeito deprimido alcança boa sorte para todos que se aproximam dele; um pai se rende aos caprichos de uma filha ávida por pássaros; os procedimentos de um parto são invertidos até o ponto em que uma mulher consegue regurgitar um óvulo; um fantasma conta a história de seu vilarejo em troca de cervejas. O abandono, loucura, solidão e inaptidão para o convívio social de seus personagens assusta, pois o leitor lembra que algo parecido (ou até pior) é o que experimenta a maioria de nossos semelhantes no mundo real. São contos realmente perturbadores, muito bem escritos, inspiradores, que escondem no pampa gaúcho (nunca nominado) uma forte presença grega. Seguro que valerá a pena procurar mais coisas desta jovem escritora argentina.
[início: 25/07/2014 - fim: 11/08/2014]
"Pássaros na boca", Samanta Schweblin, tradução de Joca Reiners Terron, São Paulo: Editora Saraiva (selo Benvirá), 1a. edição (2012), brochura 14x21 cm., 223 págs., ISBN: 978-85-64-06530-7 [compilados de duas edições originais: El núcleo del disturbio (Buenos Aires: Editorial Planeta-Destino) 2002 e Pájaros en la boca (Cuba: Editorial Casa de las Américas) 2008]