sábado, 27 de fevereiro de 2010

os passos perdidos

Embalado pela leitura do bom "o reino deste mundo" embarquei nos caminhos de "Os passos perdidos". Publicado em 1953, Alejo Carpentier escreveu-o logo depois de "o reino deste mundo" e manteve no texto o mesmo ambiente de sonho e vertigem. Nos dois livros ficamos arrebatados pela força das imagens e do quão há de inexorável nos caminhos desta vida. Um sujeito é convidado para viajar até o interior da floresta amazônica e recolher exemplares dos instrumentos musicais utilizados pelos índios. Ele, aproveitando o impasse de sua vida amorosa, dividida entre sua mulher (uma cantora lírica de sucesso) e sua amante, resolve aceitar o convite (levando consigo sua amante, num rompante de decisão amorosa). A expedição é uma empreitada difícil, cheia de surpresas. Logo no início o sujeito se vê no meio de uma típica revolução latino-americana, onde os militares e os políticos trocam de lado com a celeridade dos tontos. Passam uns dias presos em um hotel antes de poder seguir viagem. Ao longo da expedição outros aventureiros se incorporam ao grupo, entre eles um garimpeiro grego, que padece da febre do ouro e diamantes; um frei que catequiza torpemente os nativos; uma moça que pretende encontrar seu pai que sabe-se perto da morte. Primeiro de avião, depois de ônibus, enfim a cavalo, a pé e de barco a jornada do sujeito ganha ares homéricos, como se a floresta fosse o mar Mediterrêneo e ele um Odisseu crioulo. Visita diversas cidades, povoamentos. Conhece figuras bizarras. A jornada serve também como processo de auto-conhecimento do sujeito, que passa a questionar seu papel no mundo e suas relações. Ele acaba se apaixonando pela moça que pretendia encontrar seu pai moribundo (a passagem do enterro do pai morto é teatral e realmente poderosa, como se fosse um réquiem de um papa ou de um imperador no meio da floresta). Encontra os tais instrumentos musicais primitivos que deveria levar à civilização, mas resolve ficar na aldeia indígina que os garimpeiros, o padre e os demais aventureiros estão a transformar em uma utopia tropical, um arremedo de cidade moderna. A moça e ele conhecem o amor e o ciúme, o sexo e o medo. Ele começa a escrever uma peça sinfônica utilizando como cenário o que vê e sente da floresta. O livro segue a sua inevitável volta à civilização (mesmo a contragosto ele é resgatado da selva por seus empregadores e por influência da mulher, como se fosse um grande herói perdido na floresta). Sua reinserção na cidade é penosa. Enfrenta ao mesmo tempo sua mulher (que quer ganhar dividindos com a história) e a primeira amante (que ele havia abandonado ainda no meio da viagem e também quer um naco da fama do sujeito). É um livro curioso e metafórico (tudo nele pode nos levar a tentar interpretar o que vemos da america latina de hoje, principalmente da Venezuela - retratada no livro e tão mal governada pelo histriônico pateta que tornou-se o ditador de plantão local). Carpentier usa uma linguagem bastante envolvente e rebuscada, barroca até, mas o livro deixa-se ler com vagar e paciência. Assim como "o reino deste mundo" este é um livro onde aprendemos como a música tem um papel importante na vida dos homens. É mesmo um livro "musical", vou escrever assim, onde parecemos ouvir passagens musicais a cada trecho, conforme o livro evolue. Lembro-me de ter lido muitos anos atrás um texto de Guilhermo Cabrera Infante onde ele desdenhava do esforço de Carpentier por ser agraciado pelo Nobel de literatura, e de como isto amargurava o sujeito no final da vida. Preciso reler Cabrera Infante para checar esta informação. [início 02/02/2010 - fim 12/02/2010]
"Os passos perdidos", Alejo Carpentier, tradução de Marcelo Tápia, editora Martins Fontes, 1a. edição (2009), brochura 13,5x20,5 cm, 300 págs. ISBN: 978-85-99102-72-5

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

mientras ellas duermen

Em "Mientras ellas duermen" estão reunidos 14 contos de Javier Marías. Só conhecia três deles (Lo que dijo el mayordomo, Gualta e Una noche de amor), que havia lido em uma edição pequena anos atrás, quando ainda tateava entender este soberbo escritor. Os contos aqui reunidos são realmente muito bons. Na maioria há um clima de mistério, uma toada sobre situações onde não exatamente temos certeza do que é fato e do que é imaginação no discurso do narrador. Os fantasmas, tema caro a Marías, os reais e inclusive aqueles fantasmas entranhados que todos inventamos para tolerar melhor a vida, aparecem nos contos bem mais que um par de vezes. Gostei muito de um conto onde é descrita uma carga de cavalaria durante uma batalha dos tempos de Napoleão. Lembra um tanto um livro do Pérez-Reverte que li recentemente (La sombra del águila). Não porque seja um plágio ou coisa que o valha, mas pelo tratamento bem distinto que os dois autores (que afinal são grandes amigos, além de colegas da Real Academia Espanhola) dão a uma idéia de base comum. O que é tragicômico e coletivo em Pérez-Reverte é dramático e personalíssimo em Marías. Incrível como Marías sustenta o desfecho de situações tensas e invariavelmente surpreende o leitor. Mesmo no texto juvenil incluído nesta coletânia, escrito em um distante 1968 acompanhamos o texto curiosos por tentar emular o final que o autor escolheu. O texto que dá nome ao livro é realmente muito bom. Ficamos a pensar se é mesmo possível uma conversa naquele tom, sobre os temas abordados na trama. É algo impressionante de se ler. Já "Portento, maldicíon" é o mais misterioso dos contos, o mais enigmático e surreal. Penso que talvez o narrador seja o cantor de ópera que aparece em dois romances de Marías ("El siglo" e "El hombre sentimental"), León, ou ainda o tio deste personagem, o velho juiz Casaldáliga. O conto "Una noche de amor" é para ser lido mesmo repetidas vezes com prazer. Ainda tenho muito a aprender com este curioso madrileño (e talvez a felicidade seja saber que tenho ainda um estoque de seus livros por ler - são poucos, mas o suficiente para mitigar meu vício de philobiblon contumaz. [início 31/01/2010 - fim 08/02/2010]
"Mientras ellas duermen", Javier Marías, editora Alfaguara, 2a. edição (2000), brochura 13x21,5 cm, 244 págs. ISBN: 978-84-204-4167-8

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

o reino deste mundo

"O reino deste mundo" conta alegoricamente uma história terrível. Alejo Carpentier publicou este livro originalmente em 1949 e nele é descrito um tanto sobre o Haiti dos anos de sua revolução de independência, algo entre o final do século XVIII e começo do século XIX. Há um personagem que percorre as histórias do livro, da juventude à velhice, sempre padecendo das desventuras pelos quais passou o povo haitiano. O Haiti foi o primeiro país do mundo a abolir a escravidão, mas sofreu boicotes e retaliações comerciais durante décadas que o levaram a um grau de pobreza difícil de ser entendido, mesmo para quem conhece o padrão de pobreza e miséria intelecutal brasileiros. Bueno. O livro inclui uma introdução onde o próprio Carpentier apresenta seu projeto do "real maravilhoso", que conhecemos pela denominação mais comum de "realismo fantástico". Logo depois Carpentier inclui uma epígrafe de Lope de Vega. Neste ponto um sujeito já deve se considerar avisado, o que se lerá é mesmo violento. O livro é dividido em quatro seções. Na primeira rapaz escravo, Ti Noel, conhece um outro escravo chamado Mackandal que perde um braço, aprende tudo que pode sobre magia e ervas com os velhos escravos africanos, foge e organiza uma rebelião, envenando poços, animais, os senhores brancos. Com o tempo a rebelião é sufocada e Mackandal morto. Na segunda seção Ti Noel já tem muitos filhos. Uma nova rebelião acontece, organizada por um jamaicano chamado Boukman. Parte da população branca que sobrevive (entre eles o dono de Ti Noel) emigra para Cuba. A repressão à rebelião é violenta e o lider morto. O que hoje se conhece como vodou, a religião (um sincretismo na verdade) praticada por parte dos haitianos se fortalece. Nesta parte Carpentier descreve como a religião católica e os ritos pagãos se fundem e se comunham. É bem interessante. Na terceira seção do livro Ti Noel já tem um novo dono que o liberta, ainda na ilha de Cuba. Ele emigra de volta ao Haiti. O país é governado pelos negros que oprimem os negros de forma ainda mais brutal e irresponsável. O "rei" do país resolve construir uma fortaleza enorme usando a força dos escravos. Ele empareda um bispo católico nela, tem um colapso nervoso e é deposto. Na última seção do livro, pequena, como uma coda musical, os fatos da vida haitiana atingem seu aspecto mais surreal. A viúva e os filhos do "rei" deposto são exilados na Itália (com o beneplácito dos antigos dominadores franceses - que cobrarão dos novos governantes uma indenização impagável). Ti Noel volta as ruínas de sua primeira senzala e vê como aos poucos a região vai sendo visitada e dominada por mulatos, os novos senhores do país, ainda mais rapaces e violentos que suas encarnações anteriores. Ti Noel, velho e alquebrado, memória viva das desgraças de seu povo, desaparece em um lugar chamado Bois Caïman, lugar onde se realizavam as cerimônias vodou de enfrentamento ao domínio francês. Quando leio os comentários bizarros de lula e seus petistas amestrados, de um ministro da defesa que mais comporta como um napoleão de hospício e dos néscios jornalistas que tentam explicar o recente terremoto que aconteceu no Haiti percebo que a história do Brasil, se não é tão trágica como a do Haiti, gerou à semelhança deste uma elite governante patética e imoral, que nada mais faz do que tanger sem fim uma população de ágrafos imbecis. [início 28/01/2010 - fim 01/02/2010]
"O reino deste mundo", Alejo Carpentier, tradução de Marcelo Tápia, editora Martins Fontes, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 132 págs. ISBN: 978-85-61635-24-4

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

aquella mitad de mi tiempo

Em "Aquela mitad de mi tiempo" encontramos oitenta e dois artigos e ensaios de Javier Marías, publicados originalmente em jornais e revistas espanhóis ao longo de um pouco mais que vinte anos (o mais antigo é de 1987 e o mais recente é de 2008). Um quarto destes artigos eu já havia lido em outras compilações dele (pasiones pasadas, vida del fantasma), mas a releitura das crônicas de Marías (que tem as ressonâncias de ensaios algo filosóficos admiravelmente bem escritos) nunca é aborrecida. Sempre aprendemos algo novo ao acompanharmos seu raciocínio. Os textos desta compilação em particular são bastante pessoais, falam de temas que gravitam a vida pessoal de Marías de uma forma que está longe de ser piegas. Há muito sobre a morte (da mãe, do pai, de ex-professores, de amigos, de colegas). Neles lembro o fatalismo de Flaubert ("meu coração está se transformando em uma necrópole"). Mas há também textos onde encontramos uma reiterada louvação aos livros, ao poder que os livros tem de educar e transformar as pessoas. Enfim, há muito sobre o que refletir lendo a prosa sofisticada de Javier Marías. As abordagens em geral começam de forma ligeira, descrevendo algo sobre sua família, seus amigos, seu cotidiano, alguma tradição particular de um lugar, mas evoluem logo para reflexões de caráter universal, realmente atemporais. Incluídos como apêndices, os dois textos finais são os mais poderosos da compilação: um é uma espécie de diário literário, escrito durante uma temporada de trabalho de divulgação de seus livros e recebimento de prêmios (publicado originalmente em uma revista suiça); o outro é uma longa entrevista feita para a revista francesa The Paris Review. Ambos são longos o suficiente para que Javier Marías detalhe melhor seu comprometimento com a produção literária, com seus anseios de criador, com suas preocupações sociais e políticas. A edição é muito bem cuidada, dividindo os textos em sessões temáticas que permitem ao leitor escolher ora temas mais áridos ora cousas mais ligeiras. Lembro-me de ter encontrado este livro em uma bonita livraria das terras altas de Navarra (na bela cidade de Pamplona, quando visitava Cristina Polo). Que lugar maravilhoso. Leio os textos e lembro das largas e limpas avenidas da cidade, de seus parques extensos e lindíssimos, da paisagem carregada de signos e história, que leva o visitante a pensar um tanto sobre si e os outros. Ao mirar atrás (como faz Marías nestes textos) nos conhecemos mesmo um tanto melhor. [início 08/01/2010 - fim 28/01/2010]
"Aquella mitad de mi tiempo: al mirar atrás", Javier Marías, editora Circulo de Lectores (Galaxia Gutenberg), 1a. edição (1999), capa-dura 13x21 cm, 408 págs. ISBN: 978-84-8109-725-2

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

marilyn e jfk

Em "Marilyn e JFK" acompanhamos a história de duas pessoas que no fundo foram bastante tristes: John Fitzgerald Kennedy, trigésimo-quinto presidente americano, assassinado em 1963, que tornou-se um ícone da política e da cultura do século XX e Marilyn Monroe, atriz americana, que igualmente tornou-se um ícone da cultura pop ainda em vida e plenamente imediatamente após sua morte, em 1962. Apesar de gostar muito de cinema americano (sobretudo as cousas do Woody Allen e do Clint Eastwood) e de música americana (sobretudo jazz e rhythm and blues), quase tudo o que aprendi de fato sobre a cultura americana veio dos livros (lendo sujeitos como William Faulkner, Gore Vidal, Philip Roth, John dos Passos, Dorothy Parker, Saul Bellow - canadense, confesso - Isaac Singer e Edmund Wilson) e veio de jornais (principalmente da leitura sistemática dos artigos do Paulo Francis e do Ivan Lessa). Depois aprendi um bocado com dois físicos: o Frank Missell, meu orientador, um americano que radicou-se no Brasil há muito tempo e o Adalberto Fazzio, um brasileiro que conviveu muito com americanos. É difícil sintetizar o que entendemos de um povo inteiro, se é que isto é realmente possível. São tantas as nuances, os contextos, ou a forma como evoluem as informações e os fatos. Ao visitar o Frank recentemente ele emprestou-me com entusiasmo este livro sobre Marilyn Monroe e John Kennedy. O formato lembra um tanto o Plutarco no seu "Vidas paralelas". Toma-se dois sujeitos e conta-se suas histórias comparando-as nas afinidades e nos desacertos. O livro é muito bem escrito, em linguagem direta, ágil, rapidamente demonstrando o que é factual e o que é especulação pessoal do autor. Através de Gore Vidal eu já tinha aprendido que o Kennedy mítico vendido nas barraquinhas de massificação cultural era mesmo uma farsa, mas François Forestier dá a ele tons ainda mais sombrios. Kennedy parece um Fausto moderno, um sujeito que vende sua alma por uma coisa imaterial, sem ter muita consciência de seus atos, de seus movimentos, de seus desejos. Marilyn por seu turno transparece ao final do texto de Forestier ainda mais patética e boçal do que eu lembrava. Ela se comporta como uma versão feminina do mesmo Fausto da lenda alemã, mas sem saber exatamente com quem e porque afinal está negociando sua alma. Permanentemente alterada pelo álcool e as drogas flana sem rumo o tempo todo. Bueno. O livro começa com um prelúdio, onde se descreve o assassinato de Kennedy em Dallas. Depois, após alguns capítulos onde se alternam as histórias de ascenção de Marilyn e Kennedy, seguimos capítulos vertiginosos onde as duas histórias se entrelaçam. Os dois pareciam mesmo apostar uma corrida contra a morte, ela mais melodramática, trágica, ele mais olímpico, hiperativo. O livro inclui um censo das pessoas que gravitaram em torno dos dois (e que na prática apagavam continuamente seus rastros de trapalhadas infinitas). São relatos breves onde se descreve as circunstâncias da morte de cada um destes coadjuvantes. É interessante. A lista de referências bibliográficas é enorme. São 126 referências para um livro de 214 páginas, um excesso, apesar de poder facilitar a vida de um leitor curioso. [início 20/01/2009 - fim 22/01/2010]
"Marilyn e JFK", François Forestier, tradução de Jorge Bastos, editora Objetiva, 1a. edição (2009), brochura 16x23 cm, 214 págs. ISBN: 978-85-7302-937-6

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

o medo de montalbano

Nestas férias curtas calhou-me ler livros algo ligeiros (vamos dizer assim). Livros de memórias, guias de viagem, cartuns ou coletâneas de contos são para se desfrutar sem pressa e rigor, podemos esquecê-los em uma mesinha e logo retomá-los, sem muita perda do enredo ou do sentido. Num final de semana destes fui visitar os Missell (Frank e Val, Isabella, Thomas e Daniel, que beleza de passeio) e levei para ler na viagem um livro mais sério (umas crônicas do Javier Marías) e um de contos policiais (do Andrea Camilleri). Claro que só li o de contos, pois contos policiais são o exemplo acabado deste tipo de literatura ligeira. Bueno. No ano passado descobri Camilleri e seu curioso personagem Montalbano, o comissário observador, incorruptível e eficientíssimo. Neste "O medo de Montalbano" somos apresentados a três contos bem curtos e três histórias mais longas. De fato Montalbano é um bom personagem, tem sua profundidade psicológica, suas fraquezas, seus rompantes (em algum lugar Manolo Vazquez está feliz com isto). Os personagens secundários também têm suas idiossincrasias, seu estofo. Camilleri explora o uso corrente de vários dialetos usados na Itália. Um dos personagens é uma pessoa bastante simples, tosca, que fala de um jeito que gera muita confusão em seu local de trabalho. Eu sabia que existiam dialetos na Itália, mas curioso sobre o assunto estudei um tanto e descobri que eles são mais de trinta (a maioria incompreensíveis entre si), e que atualmente 50% da população italiana alterna entre o italiano formal (de origem toscana, intermediário entre os dialetos do sul e do norte ) e algum dialeto. O livro explora bem isto, usando nas tramas vária vezes as dificuldades de comunicação entre as pessoas. Em alguns destes contos Montalbano é ajudado por seus próprios sonhos, noutros é seu puro instinto que elucida a trama. O papel destas componentes inexplicáveis nas investigações incomoda Montalbano, pois em geral ele usa somente sua razão para antecipar os crimes. Enfim, "O medo de Montalbano" é o livro certo para se desfrutar sem medo nos dias em que calmamente nos refrescamos "by this sun", sob este sol de verão. [início 05/01/2010 - fim 18/01/2010]
"O medo de Montalbano", Andrea Camilleri, tradução de Joana Angélica d´Avilla Melo, editora Record, 1a. edição (2009), brochura 13,5x21 cm, 300 págs. ISBN: 978-85- 01-08400-2

domingo, 7 de fevereiro de 2010

meu último suspiro

Reler livros que nos foram caros um vez sempre é uma ocupação maravilhosa. É como um tempo redescoberto, que nos fala de um outro leitor, de um outro eu que nem sempre reconhecemos. Em meados dos anos 1980 eu costumava ir a ciclos de cinema com freqüência e os filmes de Buñel eram sempre aguardados com ansiedade. Naquela época li sua autobiografia e aprendi um bocado sobre a história da Espanha, sobre as relações humanas e sobre cinema. Quando vi esta nova edição não pude deixar de me interessar. A edição é excelente. Muitas reproduções de fotografias estão incluídas, assim como uma filmografia completa e um índice remissivo. Escrita em parceria com Jean-Claude Carriére (na verdade produto de longas entrevistas feitas por Carriére) neste livro encontramos reflexões de um homem que experimentou a vida plenamente, que valorizou a liberdade (dos indivíduos e dos povos), privou do companheirismo de sujeitos incríveis e louvou a verdade acima de tudo. Em alguns trechos ele escancara o que pode ser considerado seus defeitos, como apenas senhores de oitenta e tantos anos podem fazer sem soar piegas. Suas reflexões sobre psicologia (que na verdade abominava) e arte são complexas e inventivas (cabe dizer que ele teve uma educação formal muito boa e foi filho de uma família relativamente próspera). A forma lúcida como ele fala da beleza, da esperança, da luta por valores humanistas é mesmo tocante. Ele tem uma veia cômica muito boa e fala de suas obsessões (com hipnotismo, com armas de fogo, com sonhos premonitórios) de forma muito divertida. Como Buñel é sobretudo um antifascista este é o tipo de leitura adequada para estes tempos bicudos onde tropas de choque, picaretas e canalhas de plantão saqueiam o espaço público brasileiro. Não apenas os interessados em cinema devem se envolver na mágica deste livro e conhecer um tanto das memórias de Buñel. [início 01/01/2010 - fim 08/01/2010]
"Meu último suspiro", Luis Buñel, tradução de André Telles, editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), capa dura 16x22,5 cm, 376 págs. ISBN: 978-85-7503-845-1

sábado, 6 de fevereiro de 2010

no mundo dos livros

José Mindlin é um sujeito especial. Jovem ainda se envolveu no mundo da leitura e dos livros. Estudou advocacia mas foi como empresário que se destacou. Nas horas vagas do trabalho manteve sua cota de leituras e ficou também conhecido e respeitado como um dos maiores colecionadores de livros do Brasil. Sua biblioteca particular tornou-se local de peregrinação de amantes dos livros (e sempre foi consultada amigavelmente por pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento). Parte desta sua biblioteca particular foi doada recentemente para a Universidade de São Paulo. Assim sendo, Mindlin é um legítimo herdeiro de Ricardo de Bury, o maior dos "philobiblon" (amigo dos livros) que eu conheço. Neste pequeno livro ele faz de forma didática um passeio pelos livros que mais o influenciaram. Como se estivesse em uma biblioteca conversando com um grupo de alunos ou jovens aprendizes ele incentiva o leitor a seguir seus passos e desenvolver alguma paixão pelos livros, sempre fiéis, sempre companheiros inseparáveis. Ele não dá receitas ou listas de leitura, mas antes pergunta ao leitor se tal argumento não é razoável, se tal comentário não poderia também tornar-se um valor para todos os demais. O Brasil é um país de grandes e numerosos analfabetos (e muitos tem orgulho nada discreto disto, cada vez mais me convenço disto), e só a educação massiva (não a distribuição de diplomas e títulos que observa-se atualmente) poderá de fato tornar este país algo a ser levado a sério. "No mundo dos livros" é o tipo de livro que todo philobiblon deveria ler ainda jovem e descompromissado. Sorte dos brasileiros um sujeito como Mindlin ter a paciência e a generosidade que tem. [início 14/11/2009 - fim 06/01/2010]
"No mundo dos livros", José Mindlin, editora Agir, 1a. edição (2009), brochura 13,5x21 cm, 120 págs. ISBN: 978-85-220-0785-1

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

mitologia grega

De tempos em tempos volto aos gregos, pois sempre é bom reavivar a memória dos mitos e das intrincadas genealogias. Claro, nada supera a leitura das fontes primárias, o contato com os originais de Homero, Ovídio e Hesíodo por exemplo, mas textos de sistematizadores também tem seu valor. Meu favorito é o Robert Graves, mas li com prazer este livro de Pierre Grimal. É um livro pequeno, cento e poucas páginas, mas ele faz um bom recorrido pelos ciclos de mitos mais fundamentais. Eu diria que este livro não serve muito para um não-iniciado, ou seja, para um sujeito que não esteja já familiarizado com as histórias. Gostei da estrutura do livro, pois Grimal descreve em linhas gerais como os mitos principais se transformam após 300, 600 anos, mantendo uma estrutura, mas se adaptando a realidade de cada época e a necessidade dos seres humanos de alguma organização mental. Achei interessante um capítulo onde ele descreve a constância do padrão mitológico em várias culturas e sua descrição das várias escolas de interpretação (sociológicas, antropológicas, históricas, psicológicas). Senti falta de alguma menção as idéias de Robert Graves (acho que a escola de interpretação dele seria poética, mas não sou exatamente um especialista para afirmar isto). Divertido afinal de contas. [início 24/10/2009 - fim 05/01/2010]
"Mitologia grega", Pierre Grimal, tradução de Rejane Janowitzer, editora LP&M (pocket encyclopedia), 1a. edição (2009), brochura 10,5x18 cm, 118 págs. ISBN: 978-85-254-1898-2

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

aulas de marie curie

Muito do que passa por educação é apenas pedagogia. Sempre digo isto quando alguém tenta me fazer acreditar que o importante em uma relação de aprendizagem é só a forma de ensinar algo em contraposição e detrimento do conhecimento em si, do saber em si. Sempre acrescento que a educação é um ensaio destrutivo, pois o "corpo de prova" da experiência educacional é um ser humano que não pode voltar no tempo se a tal experiência for mal sucedida (como costuma acontecer). No caso do Brasil, onde gerações de crianças são educadas para continuarem analfabetas e manipuláveis pelos governistas de plantão, o quadro é ainda mais terrível e desanimador (basta ver os resultados de testes simples como o PISA ou o ENEM). Pois uma experiência educacional na área de ciências realmente inovadora e responsável foi aplicada por Marie Curie e alguns colegas seus no início do século passado. Marie Curie foi uma pessoa especial. Ganhou dois prêmios Nobel, um de Física, em 1903, e outro de Química, em 1911. Ganhou-os em áreas normalmente fechadas a participação de mulheres, já que mesmo hoje conta-se nos dedos o número de mulheres que alcançam o mesmo destaque científico. Pois ela e este grupo de colegas (nada ordinários cabe dizer: os físicos Jean Perrin e Paul Langevin, o escultor Jean Magrou, o naturalista Henri Mouton) criaram uma espécie de cooperativa de ensino a seus filhos (no que seria equivalente aos anos intermediários do ensino fundamental de nossos dias, para crianças de dez, onze anos.) As aulas eram dadas nos laboratórios ou nos estúdios de trabalho de cada um. Além de conhecimento estas aulas transmitiam amor pela ciência e prazer pelo trabalho em equipe, respeito aos métodos de pesquisa e o uso de linguagem adequada à ciência. A experiência dura só dois anos, mas foi perene a marca deixada nas crianças que a experimentaram. Os colegas, sobrecarregados de trabalho resolveram após dois anos que suas crianças deveriam voltar aos programas oficiais de ensino e fazerem os exames adequados para seguirem suas carreiras. Isabelle Chavannes foi uma destas alunas de Curie e tomou notas detalhadas de dez aulas de física entre janeiro e novembro de 1907. As notas incluem ilustrações e comentários ligeiros sobre o humor da professora (que costumava terminar as aulas com uma distribuição de quitutes). As aulas envolvem problemas que ficam progressivamente mais difíceis e elaborados. São problemas de hidrostática, equivalentes a aquilo que estudamos em física dois de um curso básico de física. O fato das anotações terem sobrevivido a virada do século e terem sido recuperados por total acaso uns dez anos atrás dá uma idéia do quanto são tênues as marcas que deixamos ao longo de nossa vida. Qualquer pessoa interessada no ensino de ciências e mesmo em história da ciência vai gostar muito de folhear este livro e acompanhar as aulas de Curie. A tradução foi feita por Waldyr Muniz Oliva, que faz uma boa apresentação do livro (Oliva é engenheiro e foi Reitor da Universidade de São Paulo). A educação só existe quando forma e conteúdo estão equilibrados. Quando um sujeito só se interessa pela forma, mata o conteúdo, torna o aluno um inbecil sem a ossatura do conhecimento. Assim, como na área que eu conheço muito bem, se um sujeito não sabe nada de ciências, principalmente da ciência do século XXI, jamais vai saber ensinar nada que importe em ciências. E é esta a tragédia do ensino de ciências neste país. Enfim, impressionante este livro. Que bom seria se um aluno dos nível médio de nossas escolas tivessem aulas assim hoje em dia. Cabe dizer ao fim que só tomei conhecimento deste livro devido ao zêlo de don Renato Cohen. Grato meu velho. [início 23/12/2009 - fim 04/01/2010]
"Aulas de Marie Curie: Anotadas por Isabelle Chavannes em 1907", Isabelle Chavannes, tradução de Waldyr Muniz Oliva, editora da USP, 1a. edição (2007), brochura 16x23 cm, 136 págs. ISBN: 978-85-314-1003-1

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

guia de drinques

Comprei este livro para dar de presente de natal para alguém, mas ao lê-lo achei o livro tão besta que decidi ficar com ele e não decepcionar ninguém. A edição é bonita, capa dura, belas ilustrações, mas o texto que acompanha as receitas dos drinques é muito fraquinho. O formato é interessante. A cada dupla de páginas temos seis elementos: uma ilustrações do escritor retratado, uma frase espirituosa atribuída a ele, um texto associando o sujeito a um drinque, uma curta biografia, uma receita de drinque e um trecho de um texto do sujeito onde em geral se menciona o consumo de bebidas. Da maioria dos drinques eu nunca ouvi falar (não é fácil ser original quarenta e três vezes), mas alguns são aqueles claramente clássicos: margarita, dry martinis daiquiri, cuba libre, gimlet, mojito, manhattan, bloody mary. São quarenta e três escritores e escritoras, todos americanos. Da grande maioria eu sabia previamente serem mesmo afeitos ao consumo de bebidas em escala industrial. Com alguns me surpreendi, mas as informações parecem ser mais lendárias que factuais. Não que biografias de Hemingway, Kerouac, Dortohy Parker, Dashiell Hammett, Faulkner, Edmund Wilson e Charles Bukowski não sejam repletas de passagens indicando alguma ligação marcante com bebidas. O livro inclui ilustrações indicando os tipos mais clássicos de copos e utensílios úteis aos "bartenders" profissionais. Além disto encontramos um bom glossário e uma bibliografia bastante extensa. Talvez eu tenha resolvido ficar com o livro mais por vontade de tê-lo que por conta de sua irrelevância. Serve como um livro para ser degustado nas férias, de frente para o mar, sem temores ou preocupações. [início 26/12/2009 - fim 02/01/2010]
"Guia de drinques dos grandes escritores americanos", Edward Hemingway e Mark Bailey, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges editora Zahar (1a. edição) 2010, brochura 13x18 cm, 111 págs., ISBN: 978-85-378-0174-1

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

alto & bom som

"Alto & bom som" é o livro de estréia de Eduardo Macedo, um empresário que tem uma vasta cultura musical e conhece sobretudo a história dos Beatles. Estimulado por amigos que conhecem bem esta sua veia de roqueiro ele resolveu reunir vários textos que já havia publicado em jornais e fanzines nos últimos anos. À estes acrescentou material novo, produzido especialmente para a publicação na forma de livro. O livro foi editado pela jovem editora santa-mariense "Barco a vapor", cujos timoneiros (Carolina Carvalho, Márcio Grings e Paulo Chagas) sabem caprichar no produto que oferecem ao público. Paulo Chagas é o ilustrador do livro, produzindo desenhos que fazem boa companhia aos textos de Edu Macedo. Os textos começam na cena rock and roll, com pinceladas sobre Robert Johnson, Duane Allman, Eric Clapton, Rolling Stones e Jim Morrison. Terminado este aperitivo Macedo entra no assunto em que é realmente especialista: a vida e a obra musical dos Beatles! Nestes textos Macedo trai um tanto sua preferência: é mesmo fã de carteirinha de Paul McCartney. Em metade das crônicas Paul McCartney toma o centro do palco (em oito sessões); três são dedicadas a John Lennon, cinco a George Harrison e só uma a Ringo Star. Dois textos são escritos em parceria com outro beatlemaníaco amigo, Rogério Koff, que também assina uma boa introdução. Gostei do livro. Como não sou um especialista em Beatles aprendi muito com a leitura. Pena que Eduardo Macedo termina afirmando que provavelmente este será seu último livro. Agora só seus amigos terão a chance de partilhar sua vasta cultura musical e seu refinado gosto estético (além do fluido e atento texto). [início 30/12/2009 - fim 02/01/2010]
"Alto & Bom som: ruídos, chiados e pinceladas musicais", Eduardo Lenz de Macedo, editora Barco a Vapor (1a. edição) 2009, brochura 19x19 cm, 168 págs., ISBN: 978-85-7782-116-7

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

alice no país das maravilhas

Quem não sabe uma história ou outra dos livros de Alice, mesmo sem nunca ter aberto qualquer um deles? Os personagens e o enredo fazem parte de um imaginário coletivo. Afinal não é verdade que muitos falam da guerra entre troianos e gregos, de complexos como o de Édipo, repetem frases de Shakespeare ou emulam dúvidas sobre Capitu, sem nunca terem enfrentado a Ilíada, Freud ou Sófocles, Hamlet ou Machado de Assis. Lembro-me de ter ganho quando pequeno, em uma espécie de quermesse na escola, de um exemplar do "Alice no país das maravilhas" que tinha belas ilustrações coloridas coladas ao livro. Elas estavam quase todas soltas e eu arriscava minhas versões rabiscadas nos espaçõs vazios (depois eu as colei todas de volta). Naquela época eu já havia lido a versão do Monteiro Lobato, mas aquelas gravuras coloridas mudaram meu encantamento com a história. Recentemente a Cosac Naify lançou uma nova edição deste Alice, com tradução de Nicolau Sevcenko e com ilustrações belíssimas de Luiz Zerbini. Ele utilizou vários tipos de baralhos, recortando-os e montando-0s em dioramas que acompanham as histórias. É mesmo um prazer voltar às histórias de Alice, não importa a idade do sujeito e o humor do momento. Aos poucos somos levados ao mundo mágico de Lewis Carroll, que mais que responder, faz perguntas instigantes ao leitor, tornando a experiência com o livro uma espécie de visita a um parque de diversões. Não sei avaliar se esta tradução é mais criativa ou equilibrada, como diz Ana Maria Machado na apresentação do livro, mas diverti-me muito nos dias vagabundos de final de ano, acompanhando Alice para o fundo da terra e além. O livro conta com uma bibliografia bastante completa e uma lista de todos os grandes ilustradores do livro. Que tempo divertido. Que leitura deslumbrante. [início 28/12/2009 - fim 31/12/2009]
"Alice no país das maravilhas", Lewis Carroll, tradução de Nicolau Sevcenko, editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), brochura 17x23 cm, 168 págs. ISBN: 978-85-7503-849-9