quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

aulas de marie curie

Muito do que passa por educação é apenas pedagogia. Sempre digo isto quando alguém tenta me fazer acreditar que o importante em uma relação de aprendizagem é só a forma de ensinar algo em contraposição e detrimento do conhecimento em si, do saber em si. Sempre acrescento que a educação é um ensaio destrutivo, pois o "corpo de prova" da experiência educacional é um ser humano que não pode voltar no tempo se a tal experiência for mal sucedida (como costuma acontecer). No caso do Brasil, onde gerações de crianças são educadas para continuarem analfabetas e manipuláveis pelos governistas de plantão, o quadro é ainda mais terrível e desanimador (basta ver os resultados de testes simples como o PISA ou o ENEM). Pois uma experiência educacional na área de ciências realmente inovadora e responsável foi aplicada por Marie Curie e alguns colegas seus no início do século passado. Marie Curie foi uma pessoa especial. Ganhou dois prêmios Nobel, um de Física, em 1903, e outro de Química, em 1911. Ganhou-os em áreas normalmente fechadas a participação de mulheres, já que mesmo hoje conta-se nos dedos o número de mulheres que alcançam o mesmo destaque científico. Pois ela e este grupo de colegas (nada ordinários cabe dizer: os físicos Jean Perrin e Paul Langevin, o escultor Jean Magrou, o naturalista Henri Mouton) criaram uma espécie de cooperativa de ensino a seus filhos (no que seria equivalente aos anos intermediários do ensino fundamental de nossos dias, para crianças de dez, onze anos.) As aulas eram dadas nos laboratórios ou nos estúdios de trabalho de cada um. Além de conhecimento estas aulas transmitiam amor pela ciência e prazer pelo trabalho em equipe, respeito aos métodos de pesquisa e o uso de linguagem adequada à ciência. A experiência dura só dois anos, mas foi perene a marca deixada nas crianças que a experimentaram. Os colegas, sobrecarregados de trabalho resolveram após dois anos que suas crianças deveriam voltar aos programas oficiais de ensino e fazerem os exames adequados para seguirem suas carreiras. Isabelle Chavannes foi uma destas alunas de Curie e tomou notas detalhadas de dez aulas de física entre janeiro e novembro de 1907. As notas incluem ilustrações e comentários ligeiros sobre o humor da professora (que costumava terminar as aulas com uma distribuição de quitutes). As aulas envolvem problemas que ficam progressivamente mais difíceis e elaborados. São problemas de hidrostática, equivalentes a aquilo que estudamos em física dois de um curso básico de física. O fato das anotações terem sobrevivido a virada do século e terem sido recuperados por total acaso uns dez anos atrás dá uma idéia do quanto são tênues as marcas que deixamos ao longo de nossa vida. Qualquer pessoa interessada no ensino de ciências e mesmo em história da ciência vai gostar muito de folhear este livro e acompanhar as aulas de Curie. A tradução foi feita por Waldyr Muniz Oliva, que faz uma boa apresentação do livro (Oliva é engenheiro e foi Reitor da Universidade de São Paulo). A educação só existe quando forma e conteúdo estão equilibrados. Quando um sujeito só se interessa pela forma, mata o conteúdo, torna o aluno um inbecil sem a ossatura do conhecimento. Assim, como na área que eu conheço muito bem, se um sujeito não sabe nada de ciências, principalmente da ciência do século XXI, jamais vai saber ensinar nada que importe em ciências. E é esta a tragédia do ensino de ciências neste país. Enfim, impressionante este livro. Que bom seria se um aluno dos nível médio de nossas escolas tivessem aulas assim hoje em dia. Cabe dizer ao fim que só tomei conhecimento deste livro devido ao zêlo de don Renato Cohen. Grato meu velho. [início 23/12/2009 - fim 04/01/2010]
"Aulas de Marie Curie: Anotadas por Isabelle Chavannes em 1907", Isabelle Chavannes, tradução de Waldyr Muniz Oliva, editora da USP, 1a. edição (2007), brochura 16x23 cm, 136 págs. ISBN: 978-85-314-1003-1

Um comentário:

Márcio Grings disse...

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