terça-feira, 28 de junho de 2011

diários de bicicleta

Apesar do título remeter ao Diários de motocicleta, que é um filme de Walter Salles, baseado em um livro de Ernesto Che Guevara (De moto pela América do Sul), este "Diários de bicicleta", de David Byrne, encontrou inspiração em W.G. Sebald (do Anéis de Saturno) e em Caetano Veloso (do Verdade Tropical). "Diários de bicicleta" é um livro de sociologia descompromissada, de crítica social engajada, de filosofia expressa. É um bom livro. Byrne é um adepto do uso da bicicleta como meio de locomoção básico, para uso no dia a dia, tanto para o trabalho durante o dia, quanto para o lazer noturno ou nos finais de semana. É um entusiasta verdadeiro e convincente (um sobrevivente também, claro): usa a bicicleta como meio de transporte há uns trinta anos (que até pouco tempo levava sua bicicleta na bagagem, mesmo nas viagens longas de avião - mas hoje isto quase não é mais necessário, pois é fácil alugar uma em quase toda grande cidade). Mas no fundo sua digna apologia do massivo uso da bicicleta esconde aquilo que de fato percorre todo o livro, que são suas preocupações com os grandes temas do mundo contemporãneo: as relações entre as culturas; os desafios da economia e do fluxo do capital entre as nações; as migrações, fonte de conflitos norte e sul, ocidente e oriente; o papel fundamental da arte. É um livro honesto, com um humor leve, o leitor sendo reiteradamente convidado para acompanhar a reflexão de Byrne, mas sentindo-se a vontade para discordar de suas interpretações (há detalhes que mesmo um observador arguto perde ou entende de forma equivocada). O livro é dividido por cidades, primeiro as pequenas, ainda nos Estados Unidos (Buffalo, Rochester, Valencia, Baltimore, Sweetwater, Columbus, New Orleans, Pittsburgh), depois em algumas mundo afora (Berlin, Istambul, Buenos Aires, Manila, Sydney, Londres) e por fim de volta aos EUA, para as gigantes San Francisco e New York. Para cada uma delas um tema se sobressai: arte e política, música e história, utopia e contracultura. Mas é a apreciação das manifestações artísticas em cada lugar que parece conduzir o texto. Além de ilustrações e fotografias, que dialogam com o texto, Byrne inclui um curto epílogo falando do futuro da locomoção e um bom apêndice com dicas básicas de segurança. Ele se pergunta: porquê os habitantes de algumas cidades adotam o ciclismo e outros não, mesmo quando a geografia e o traçado urbano o facilitariam? Talvez porque "o meme do ciclismo não tenha sido inserido na cultura" (meme é o conceito criado por Richard Dawkins que tem para a memória um papel análogo ao de gene para a genética). Sua filosofia para decidir-se pelo engajamento ou não em alguma causa é boa: "Se a luta for chata, então esqueça". Com "Diários de bicicleta" ele convida o leitor a observar e participar ativamente da vida de sua cidade, de ser um sujeito que se relacione com sua vizinhança. Não há cinismo besta em suas palavras. [início 15/06/2011 - fim 21/06/2011]
"Diários de bicicleta", David Byrne, tradução de Otávio Albuquerque, Anna Lim, Fabiana de Carvalho, Barueri: editora Manole, 1a. edição (2010), capa-dura 14x22 cm, 334 págs. ISBN: 978-85-204-3007-1 [edição original: Bicycle diaries (Viking books) New York, 2009]

terça-feira, 21 de junho de 2011

os mitos gregos

Por mais que você leia e se interesse por temas abrangentes e fundadores ou absolutamente específicos e maniáticos (que o ocupem e divirtam por anos sem fim), chega uma hora que você precisa voltar para os gregos, voltar para a mitologia. O arrebatamento é sempre poderoso. Claro, um sujeito deve começar pelo Thomas Bulfinch ou Gustav Schwab, mas logo vai procurar coisas mais sutis no Pierre Grimal ou no Joseph Campbell (há uma miríade de outros livros, dicionários, inclusive originais em português, como a série do Junito Brandão, mas as releituras serão sempre bem vindas). Todavia, de tudo que já li, o compêndio de Robert Graves "Os mitos gregos" é o mais iluminador e seminal. Meu pai tem os dois volumes de uma edição surrada da Penguin, mas só quando comprei a tradução portuguesa da Dom Quixote, já no início dos anos 1990, foi que entendi mesmo o projeto de Graves. Ele é mais conhecido por romances históricos como "Eu, Cláudio", mas foi também um respeitado tradutor e poeta. Pois são estas duas ocupações e habilidades (a de tradutor e de poeta) que tornam inovadoras suas propostas de leitura dos mitos gregos. O procedimento de Graves é padronizado e tripartido. Ele reuniu tudo que pode desde vinte séculos antes do nascimento de Cristo. Para cada entrada em seu compêndio ele apresenta alguns parágrafos descritivos (que é o que usualmente se faz nos livros mais simples), lista as referências específicas de cada parágrafo (ele sabe ser detalhista e preciso) e lista suas interpretações pessoais (que transitam entre a antropologia, a história, a geografia e a medicina - há muito pouco de aporte psicológico nele). Graves adverte que deve-se distinguir o mito autêntico de vários outros tipos de registros: alegorias filosóficas; sátiras; contos; propaganda política; lendas morais; amedotas e narrativas (romanceadas, épicas ou realistas). Claro, em cada um destes registros pode haver, como em um palimpsesto, uma origem realmente mitológica. E é esta camada que interessa a Graves. Neste trabalho minuncioso ele vale-se do que se sabe da astronomia, das práticas agrícolas e comerciais, dos movimentos migratórios e incursões guerrreiras. Aprendemos que os mitos (à conveniência dos homens e mulheres poderosos de cada tempo) podem ser fundidos, adaptados, invertidos, deslocados temporalmente e até abolidos. Aprendemos o significado dos rituais de morte de jovens, dos reinados em dupla, do conhecimento e uso dos fármacos alucilógenos, do culto da deusa no Mediterrâneo (que ele descreve melhor em um outro livro dele, "A deusa branca"). Quem é afeito a abordagens românticas (como a das histórias de fada) ou psicológicas (como as interpretações freudianas, junguianas e lacanianas) não deve gostar muito desta máquina de interpretação proposta por Graves (afinal, boa parte do encanto dos mitos é sua capacidade de adapatar-se as questões contemporâneas, a forma como o homem de hoje reage e opera aos estímulos da vida em sociedade e da natureza). Deixe-me apresentar apenas um exemplo de como a coisa funciona. Afinal um sujeito pode até decepcionar-se com Graves ao descobrir que os cíclopes são apenas a representação mágica dos homens que conheciam o ofício de moldar e forjar os metais, os ferreiros. Como este conhecimento era estratégico, os reis escondiam estes homens em locais de difícil acesso (geralmente ilhas com cavernas espaçosas e fontes de calor), criando o mito dos gigantes forjadores dos raios de Zeus para impedir que curiosos se aproximassem destes locais. Estes ferreiros usualmente protegiam um de seus olhos das fagulhas que saltam dos metais quando trabalhados mecanicamente para a produção das armas e artefatos (não existiam óculos de proteção naqueles tempos) e eram suficiente robustos e sujos para emular gigantes de um olho só, escondidos em cavernas inacessíveis. Não há uma genuína poesia nesta ciência interpretativa de Robert Graves? [início 09/04/2011 - fim 16/06/2011]
"Os mitos gregos (volume 1), coleção nova enciclopédia", Robert Graves, tradução de Fernanda Branco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1a. edição (1990), brochura 18x23,5 cm, 231 págs. ISBN: 972-20-0812-9 [edição original: The Greek Miths (Penguin books) Londres, 1955]

sábado, 18 de junho de 2011

homem comum

Este é um daqueles livros que comprei na época do lançamento, deixei para ler mais tarde e esqueci completamente. Só recentemente, ao ler "Nemesis", descobri que "Homem comum" é a primeira de um ciclo de quatro novelas de Philip Roth dedicadas a descrever aspectos do impacto da morte sobre os homens. "Homem comum" (Everyman, no original) é uma história curta, que se lê com animação e prazer (em que pese o terrível do tema). A economia formal do livro é mesmo rara. Acompanhamos rapidamente a vida pessoal atribulada, o sucesso profissional como publicitário e as reiteradas doenças de um sujeito. O livro começa com ele descrevendo seu funeral. Ele faz o censo dos presentes, tenta fixar o estado de espírito de cada um: seu irmão mais velho, duas das mulheres com quem se casou, seus filhos (os que o detestam e uma que o ama), um ou outro amigo. Este início lembra um tanto o filme "Sunset Boulevard", onde um corpo morto flutuando em uma piscina começa a contar a história de como acabou chegando até ali (lembra também o "Memórias póstumas de Brás Cubas", claro, mas o livro de Machado de Assis é linear nas reminiscências, enquanto que o personagem de Roth embaralha as suas). Ele recorda, em cenas curtas, fragmentárias, os sucessos e fracassos de sua vida: seus casamentos, as desavenças com os filhos mais velhos, suas mentiras, a inveja do irmão, suas aventuras sexuais. Há algo de monôtono nas reiteradas explicações sobre os procedimentos cirúrgicos pelos quais o personagem principal passa, mas me parece que esta saturação é proposital. Roth parece nos lembrar que os aborrecimentos pelos quais os doentes crônicos passam são mesmo infindáveis e sempre originais. Gostei particularmente de uma passagem onde este personagem principal conversa com um coveiro (pensar em Hamlet e a caveira de Yorick é uma associação óbvia). A decadência e as provações pelas quais o personagem passa são visíveis, palpáveis, inevitáveis. Este bom livro provoca reflexões potentes. A morte é mesmo um detalhe besta. [início 07/06/2011 - fim 14/06/2011]
"Homem Comum", Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 1a. edição (2007), brochura 14x21 cm, 131 págs. ISBN: 978-85-359-1087-2 [edição original: Everyman (Houghton Mifflin) New York, 2006]

sexta-feira, 17 de junho de 2011

obras encolhidas

Diomar Konrad é um bom frasista e tem mesmo uma imaginação poderosa (acrescentar que ele abusa da ironia nas horas vagas e não vagas é quase redundante). Anos atrás ele lançou uma primeira versão de suas "máximas", seus aforismos, compilados com paciência desde seus dias de estudante. A edição era bem acanhada, mas as frases se defendiam sozinhas e fisgavam o leitor. Recentemente ele produziu a segunda versão de suas frases feitas. São jogos verbais, onde ele usualmente surpreende o leitor com uma lógica torta, um viés diferente. Nesta edição ele contou com uma parceria nova, na forma de ilustrações a suas frases, produzidas por Paulo Chagas. As ilustrações dialogam com o texto, acrescentantando alguma leveza às palavras ásperas e ferinas do Diomar. Eles alcançaram mesmo um bom resultado. Se estes dois se animarem um tanto poderiam convidar uns outros sujeitos que adoram produzir frases de efeito e registrá-las em um blog (ou cousa que o valha). Sempre lembro do quão divertido é o blog mantido pelo Millor por exemplo, mas esta é apenas uma idéia torta minha. [início 13/05/2011 - fim 13/05/2011]
"Obras encolhidas - volume 2 : máximas de Diomar Konrad, ilustradas por Paulo Chagas, lidas por quem gosta de perder tempo", Diomar Konrad, ilustrações de Paulo Chagas, Santa Maria: editora Manuzio, 1a. edição (2011), brochura 11x18 cm, 48 págs. sem ISBN

quinta-feira, 16 de junho de 2011

joyce images

Comprei este livro há uns quinze anos. Foi um dos primeiros mimos relacionados a James Joyce realmente preciosos que consegui incorporar a meus guardados. A idéia original deste livro, a compilação das fotografias e design, é de um artista plástico e fotógrafo chamado Bob Cato. Ele contou com a edição realmente cuidadosa de Greg Vitiello e uma generosa e didática introdução do escritor (e joyceano de primeira hora) Anthony Burgess. Este é o tipo de livro que garante, principalmente aos familiarizados com a obra (e sobretudo a vida de Joyce), horas de puro deleite. A iconografia joyceana é relativamente grande, fazer uma compilação que seja abrangente mas não redundante não é trivial. Bob Cato conta uma história silenciosa, fazendo uso de curtas legendas, que mais contextualizam as circunstâncias do registro fotográfico que divagam sobre os fatos da vida dos sujeitos fotografados. O leitor pode se informar bem sobre Joyce no texto de Burgess e em uma cronologia detalhada incluída no final do livro. As fotos são apresentadas em ordem cronológica, os fatos mais marcantes de sua vida, de sua família, pontuados por elas. Reli (revi) este livro neste Bloomsday de 2011, enquanto me preparava e buscava inspiração para os sucessos do dia. Don Caetano Galindo estava a caminho e iria contar um tanto de sua experiência em traduzir o Ulysses. Com sua tradução a língua portuguesa será a única a ter quatro traduções completas e distintas do livro. A aventura começou com Antônio Houaiss em 1966, passou por João Palma-Ferreira em 1989, Bernardina Silveira Pinheiro em 2005 e chega agora a versão deste jovem linguísta e tradutor curitibano. Será um privilégio compartir com ele os festejos deste décimo-oitavo Bloomsday em Santa Maria, lembrar dos 33 anos da CESMA (que nasceu em um 16 de junho também). Cousa boa. É tempo: Stately, plump... [início 12/06/2011 - fim 16/06/2011]
"Joyce Images", Bob Cato, Greg Vitiello, Anthony Burgess, London: W.W. Norton & company, 1a. edição (1994), capa-dura 23x29 cm, 112 págs. ISBN: 0-393-03638-3

segunda-feira, 13 de junho de 2011

a noite de mil olhos

Flávio Moreira da Costa lançou uma primeira versão deste livro em 1984, mas resolveu promover algumas modificações (inclusive o título) para esta segunda edição. A história é boa, mas um tanto datada. Um jornalista/narrador assiste por acaso um assassinato no Rio de Janeiro boêmio dos anos 1970. O que poderia ser apenas uma boa oportunidade de produzir uma matéria acaba se tornando uma obsessão. Anos mais tarde, já nos anos de transição para a democracia (em meio aos sucessos de uma copa do mundo de futebol - e convenhamos, nada mais patético do que o futebol), este jornalista percebe que há uma ligação entre aquela morte carioca e um possível refúgio de nazistas escondido na América do Sul (este é o lado datado deste livro, pois quem é que sabe que houve uma segunda guerra mundial, nazistas, xenofobismo em escala mundial, matanças, ideologias a granel, tempos atrás). Bueno. O livro de Moreira da Costa sobrevive a tudo isto, inegavelmente é um livro bom de se ler. O jornalista/narrador conta como resolve sair em busca de uma matéria, dos fatos para um livro. De seu Rio Grande do Sul fundador ele parte para a Bolívia, Paris, Itália, Áustria, Ucrânia (claro, estamos sobre a influência e eufonia do "Dossiê de Odessa", best seller de Frederick Forsyth daqueles anos). Ele interage com personagens reais longo do livro: Sartre, o rabino Sobel, Joseph Mengele, Simon Wiesenthal. Há passagens que lembram coisas do Umberto Eco ou do Dan Brown (vamos a ver, no que tange sua preocupação recorrente com conspirações mirabolantes, acasos cósmicos, oportunidades), mas estamos falando de um autor que sabe controlar os temas de seu livro. Não há porquê questionar tudo isto. Enfim: "A noite dos mil olhos" é um romance policial divertido e movimentado, mas que abusa um tanto da credulidade do leitor. Afinal, nem todo mundo pode acreditar que um sujeito possa mesmo flanar por tanto tempo pela Europa com um orçamento tão modesto e limitado. Já as aventuras sexuais do protagonistas são também demasiadas e irrelevantes. Paciência. "A noite dos mil olhos" é um livro que se deixa ler com prazer, não faz promessas vãs, mas também não aborrece. [início 28/05/2011 - fim 11/06/2011]
"A noite de mil olhos", Flávio Moreira da Costa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2a. edição (2010), brochura 15,5x23 cm, 263 págs. ISBN: 978-85-209-2538-6 [edição original: Os mortos estão vivos (Editora Record) Rio de Janeiro, 1984]

domingo, 12 de junho de 2011

o time dos sonhos

A paixão pelo futebol é algo encarnado em muitos povos. Engana-se quem pense que são os brasileiros, particularmente, quem goste mais deste esporte. Basta acompanhar a literatura esportiva e as transmissões internacionais de qualquer partida para ver que são muitos os demais americanos, do sul e do norte, bem como muitos são os europeus, africanos e asiáticos que acolheram o futebol como seu esporte nacional. Aqui em Santa Maria, gremistas e colorados, torcedores do internacional local e do rio-grandense, para ficar apenas nas possibilidades mais óbvias, não se furtam de demonstrar reiteradamente seu encantamento pelo futebol, seja através das provocações que antecipam os dias em que há partidas, seja nas flautas posteriores aos jogos. Mais afeita às páginas dos jornais diários e das revistas temáticas vez ou outra esta paixão é fixada em livro. É que às vezes um sujeito encontra a motivação ou a voz certa e propõe-se escrever sobre o jogo. Há aqueles que inventam futuros possíveis, querem responder logo no início do ano quem vai ganhar o campeonato mais importante, e eventualmente nos assombram com sua capacidade de premonição. Há outros que retratam tão claramente o mundo presente, as intrigas em voga, os bastidores das transferências de atletas, os planos mirabolantes que se executam, que nos consolamos previamente de nossos aborrecimentos do dia. Por fim há aqueles que optam por recortar algo de seu passado, de suas lembranças, e o presenteiam aos demais. Estes últimos sempre são os mais generosos e também os mais imprescindíveis. Boa parte do amor pelo futebol surge das memórias afetivas mais entranhadas, do encontro de um garoto com a paixão que não era ainda dele, mas sim de seus pais e irmãos mais velhos. Quando alguém conta uma história sobre futebol todos ficam em silêncio, e ouvem, e prestam atenção! Afinal, não foi assim desde o princípio, ouvindo histórias, ao redor de um fogo talvez, que os homens aprenderam os ritos, inventaram mitologias, criaram as sagas e descobriram algo de si nos demais? Haverá algo mais ritualístico, mais mitológico, que gera sagas mais vibrantes e desafiadoras que o mundo do futebol. Bueno. Quem conta algo deste passado aos homens apaixonados pelo futebol dá a eles um grande presente. E é isto que Candido Otto da Luz faz com mais este volume resgatado de seus guardados. Ele começou há quase vinte anos a registrar em livro, em edições bem cuidadas e ricas em material iconográfico, um tanto da história do futebol santa-mariense. Candido faz um trabalho minucioso, detalhista, trilha um caminho que só aqueles realmente apaixonados por seu ofício costumam frequentar. O resultado é ao mesmo tempo um documento e uma porta para este mundo mágico. Neste volume ele rende homenagens a Donga, ou melhor, a Luiz Alberto Salenave, um dos jogadores que mais vezes vestiu a camisa do Internacional de Santa Maria, time do qual foi capitão, temido e respeitado, por muitas vezes. Cumprimentos ao Candido por seu trabalho. O mundo do futebol, dos apreciadores de futebol em Santa Maria deve muito a seu paciente trabalho. Parabéns meu caro. [início 02/04/2011 - fim 02/05/2011]
"O time dos sonhos do Internacional de Santa Maria (parte II: Donga)", Candido Otto da Luz, Santa Maria: editora Manuzio, 1a. edição (2011), brochura 21x29 cm, 61 págs. sem ISBN

sábado, 11 de junho de 2011

o senhor brecht

Gonçalo Tavares é um autor português bastante cultuado. No ano passado li "A biblioteca", um livro onde ele faz pastiches dos autores que lhe são caros. Não gostei muito. Este "O senhor Brecht" faz parte de um projeto na mesma linha, chamado de "O bairro", uma coleção de livretos dedicados cada um deles a um dos autores preferidos de Tavares. Em Portugal ele já publicou dez destes volumes (e a coleção promete alcançar uns quarenta deles). No Brasil pode-se encontrar cinco. Em "O senhor Brecht" encontramos cinquenta aforismos amalucados, cinquenta historietas algo surrealistas feitas para surpreender o leitor. Talvez sirva como um exercício de estilo, de estilística, mas para o leitor o efeito não é tão seminal. Claro, qualquer livro, mesmo os terríveis e entediantes, dão algo para o leitor. Os aforismos de Tavares provocam, obrigam o leitor a pensar em uma perspectiva não usual, mas certamente deve ter sido mais divertido escrever estas histórias. A ver. Vou procurar as coisas mais densas deste sujeito. [início 05/06/2011 - fim 06/06/2011]
"O senhor Brecht", Gonçalo M. Tavares, Rio de Janeiro: editora Casa da Palvra, 1a. edição (2005), brochura 14x21 cm, 71 págs. ISBN: 978-85-872-2090-5 [edição original: editorial Caminho (Lisboa) 2004]

quarta-feira, 8 de junho de 2011

três sombras

Cyril Pedrosa é um escritor e ilustrador francês. Quando jovem ele trabalhou em um estúdio de animação americano, mas desde 1998 pelo menos tem trabalhado em seus projetos individuais. "Três sombras" é uma de suas histórias em quadrinhos mais recentes, originalmente publicada em 2007. Ele ganhou um dos prêmios do prestigioso Festival de quadrinhos d'Angloulême por conta deste trabalho. "Três sombras" começa com a descrição da idílica vida de uma família: Louis, Lise e o pequeno filho deles, Joaquim. Mas logo acompanhamos como esta tranquilidade é perturbada pela aparição de três figuras sombrias, indistintas, que não se comunicam diretamente com eles, mas os afetam terrivelmente. Cyril não se preocupa em identificar exatamente nem a época, nem o local onde se passa sua história. Parece ser o campo francês pré-industrial, mas poderia ser algum lugar do Caribe ou de New Orleans. Pouco importa, pois toda a concepção do livro é metafórica, ela poderia ser transportada para vários cenários e épocas. Bom. De alguma forma Louis e Lise tem alguma ciência do que exatamente os afeta com a presença daquelas três figuras. Louis decide então fugir com o pequeno Joaquim. Esta jornada de auto-conhecimento (dele, Louis, mas que Joaquim acompanha ativamente) segue o enredo típico das histórias heróicas das mitologias. As três sombras são, claro, as três Moiras, funestas representantes da morte na literatura grega. Louis/Joaquim o herói que passa por provações e desafios. Quem já leu alguma coisa de Joseph Campbell ou de Robert Graves entende rapidamente a fórmula utilizada por Cyril Pedrosa. Isto é quase inevitável, mesmo que um autor não perceba, arquétipos deste tipo vazam de qualquer história que os homens se dispõem a contar. Se no enredo ele usa esta estrutura antiga seu traço é algo realmente novo e inspirador. Os enquadramentos, o ritmo, a escolha do acabamento, tornam a leitura muito agradável e ágil. O traço ora é limpo e direto, ora mais carregado, dissimulado. História boa e honesta. Para ler e deixar o tempo passar com prazer. [início 30/05/2011 - fim 31/05/2011]
"Três sombras", Cyril Pedrosa, tradução de Carol Bensimon, São Paulo: editora Companhia das Letras (Quadrinhos na cia), 1a. edição (2011), brochura 16x21,5 cm, 267 págs. ISBN 978-85-359-1832-8 [edição original: Trois ombres (Éditions Delcourt) Paris 2007]

domingo, 5 de junho de 2011

conversas apócrifas com enrique vila-matas

Kelvin Falcão Klein é um jovem entusiasta da obra de Enrique Vila-Matas e tem se dedicado, já há muitos anos, a entender e interagir com esta obra. Não sei exatamente quando ele começou, mas foi antes de 2005, quando Klein esteve na sessão de lançamento da tradução de "Bartleby e companhia" e encontrou pessoalmente seu "guru literário" (vamos dizer assim, pois as relações entre efebos e precursores sempre são divertidas). Depois disto Klein teve a chance de trocar alguns e-mails com Vila-Matas e reencontrá-lo em um outro lançamento de livro, desta feita na Argentina. Em 2009 Klein defendeu, no programa de pós-graduação em letras da UFRGS, a dissertação de mestrado intitulada "Vozes compartilhadas: a poética intertextual de Enrique Vila-Matas", onde analisa o conjunto da obra publicada até então, mas dá especial atenção ao livro "O mal de Montano", publicado originalmente em 2002. Portanto, Kelvin Klein não é um neófito, mas sim um dos sujeitos no Brasil que deve conhecer mesmo a obra de Vila-Matas. Seu livro "Convesas apócrifas com Enrique Vila-Matas" funciona como um convite a leitura de seu autor favorito. Um convite agradável, pois nele não há as doses altas de teorias literárias, típicas dos trabalhos acadêmicos, nem a superficialidade das entrevistas conduzidas por jornalistas mal preparados. Na verdade este livro tem a mesma estrutura dos jogos caros à Vila-Matas, que em seus livros sempre cria uma nebulosa fronteira entre a invenção propriamente dita e a apropriação de textos alheios, ou melhor dizendo, sempre explicita a aventura intertextual de sua obra. Klein afirma que encaminhou questões a Vila-Matas durante a elaboração de sua dissertação e esta é a gênese de seu "Convesas apócrifas", mas também afirma que compilou trechos retirados de seus livros para suprir eventuais lacunas. O resultado destas duas fontes de inspiração ele transformou em um discurso direto (entrevistas que tem 92 perguntas e respostas. sim, eu contei). Em que medida paráfrases, eventuais paródias, alusões ou a tradução propriamente dita de textos originais de Vila-Matas se complementam ao factualmente perguntado e respondido por ele só Klein saberá dizer (mas a meu juízo pouca coisa não é). Isto não é exatamente um problema. É uma coisa proposital de Klein, pois na verdade ele está utilizando, na construção de seu livro, a mesma ambiguidade que encontramos nos livros de Vila-Matas. As conversas registradas/criadas no livro são muito orgânicas, bem organizadas, o que facilita a vida do leitor (ao contrário do que Vila-Matas faz, paciência). Klein dividiu seus "entrevistas" em temas: amizade, tradição e literatura, crítica, política, vanguardas e metaficção. No final ele incluiu um depoimento, o de Rita Malú, um artista plástica amiga (!?) de Vila-Matas. Este depoimento (provavelmente falso como a própria Rita Malú, traduzido por Marcos de Menezes) lembra as coisas mágicas e inventivas de Vila-Matas. Realmente divertido. Enfim, este é um livro escrito de forma ágil e a leitura é mesmo muito agradável. Eu teria incluído uma lista dos livros a título de bibliografia essencial, como o próprio Vila-Matas faz no seu 'Historia abreviada de la literatura portátil". Mas eu não sou o autor deste livro. Parabéns ao Klein por ele. Vamos em frente (tenho ainda a minha cota de Vila-Matas para ler). [início 18/05/2011 - fim 29/05/2011]
"Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas", Kelvin Falcão Klein, Porto Alegre: editora Modelo de Nuvem, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 120 págs. ISBN: 978-85-63057-01-3

sábado, 4 de junho de 2011

as entrevistas da paris review

Em 1988, quando a Companhia das Letras ainda era uma jovem editora paulistana, lançou um volume de entrevistas publicadas originalmente na revista Paris Review. O curioso do lançamento foi a proposta da editora paulista: fazer da capa de cada exemplar da edição uma peça de arte única. Para isto escalou dois artistas plásticos: Marco Mariutti e Clovis França. Eles criaram uma linha de produção inusitada e pintaram artesanalmente (com ajuda de amigos e celebridades) as 3.000 capas da edição original. Lembro-me da experiência de ver os volumes nas estantes da livraria cultura (naquela época havia apenas uma livraria cultura) e da dificuldade de escolher um exemplar [o budismo ensina que upādāna (apego) é um mal, mas talvez no caso dos livros não seja bem assim]. De qualquer forma tenho meu exemplar até hoje, algo machucado pelos anos, infestado um tanto por fungos. A capa ainda mantém seu charme. Os livros sabem nos contar também um tanto da passagem cruel do tempo. No ano seguinte eles lançaram um segundo volume de entrevistas, que também tenho nos meus guardados, mas a capa (dos mesmos Marco Mariutti e Clovis França) já foram produzidas industrialmente. Recentemente a editora resolveu produzir uma nova seleção e edição das entrevistas. Não se trata de uma reedição daqueles livros do final dos anos 1980. Acontece que editar um livro com entrevistas da Paris Review é relativamente fácil, pois desde sua fundação quase 350 entrevistas foram feitas. Esta nova edição reúne quatorze delas, a mais antiga de 1956 e a mais recente de 2006. A seleção dos escritores entrevistados deve algo da leitura que o organizador faz da boa literatura de seu tempo e da tradição que ele entende ter ainda alguma força para influenciar este seu tempo. Das 17 escolhas de 1988 feitas por Marcos Maffei, a pessoa não nominada que fez a seleção em 2011 manteve apenas 3 (Faulkner, Céline e Borges). Os demais são: Truman Capote, Ernest Hemingway, W. Auden, Doris Lessing, Manuel Puig, Amós Oz, Primo Levi, Billy Wilder, Ian McEwan, Paul Auster e Javier Marías. Se um sujeito cotejar as duas edições pode se perguntar, porquê Capote e não Vidal, Lessing e não Gordimer, Levi e não Singer, Billy Wilder e não Dorothy Parker, Auster e não Cheever. Bobagem, toda escolha é irrelevante. As entrevistas sempre se defendem sozinhas. Nada supera o encontro de um leitor com a obra de um sujeito. Mas somos humanos e gostamos de ouvir algo de primeira mão sobre a vida ou sobre o processo de invenção e produção dos autores mais influentes que conhecemos. Fiquei feliz em ler algo que não conhecia do Javier Marías (sempre muito divertido e arguto) e do Ian McEwan (também preciso e bem humorado). As entrevistas mais antigas, de Borges, Auden, Hemingway, Capote, Céline e Faulkner continuam seminais. Este não é um livro para se ler de uma vez só, mas pode ser deixado à mão para ser consultado quando o humor - sempre errático - ou a leitura recente de algum daqueles autores, vier a convocar nossa vontade. Por fim cabe registrar que a Paris Review Magazine nasceu em Paris em 1953 e foi transferida para New York ainda nos anos 1970 (o site da editora não informa isto corretamente). Desde a fundação até 2003 foi editada pelo industrioso George Plimpton. O certo mesmo a ser feito é ir a fonte original destas entrevistas, o site da Paris Review e conferir cada uma delas, que estão todas lá no original, sem taxas - por enquanto). Mas já é hora de voltar a algum original forte, alguma ficção consistente, abandonar estes divertimentos, estes desvios. É tempo. [início 11/04/2011 - fim 28/05/2011]
"As entrevistas da Paris Review - vol. 1", W.H. Auden, Louis-Ferdinand Céline, Javier Marías, Jorge Luis Borges, Ian McEwan, William Faulkner, Ernest Hemingway, Primo Levi, Manuel Puig, Doris Lessing, Amós Oz, Paul Auster, Truman Capote, Billy Wilder, tradução de Christian Schrwartz e Sérgio Alcides, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 459 págs. ISBN: 978-85-359-1814-4 [edição original: The Paris Review Interviews (New York), 1956, 1957, 1958, 1964, 1967, 1974, 1988, 1989, 1994, 1995, 1996, 2002, 2003, 2006]

sexta-feira, 3 de junho de 2011

joan manuel serrat

Publicado originalmente em 1973 este pequeno livro ficou muitos anos sem ganhar uma reedição. O pacote de mimos que consegui trazer de Madrid no ano passado incluiu este livreto, mas só agora tive o tino de lê-lo. Conheci as músicas de Joan Manuel Serrat através de Oscar Torales, um amigo argentino, físico e bom músico, de quem perdi contato há quanto tempo? Vinte anos? O problema do tempo e da memória é este acumulo de escolhos e saudades. Bueno. Manolo Montalbán inclui nos relatos biográficos deste livro apenas o que ele pode apurar dos primeros anos de Serrat, aqueles anos em que sua biografia se confunde com a luta do povo catalão pelo direito de se expressar em sua língua. A morte de Franco e a redemocratização da Espanha não estavam muito longe no horizonte. Este livro faz parte de um projeto maior de Montalbám, o livro de análise da Nova Cançó catalana e da música dos anos duros da ditadura de Franco, que ele publicou no início dos anos 1970, chamado "Cancionero general do franquismo". Ele descreve a origem e a biografia de Serrat, sua sucesso inicial, o desafio de passar a cantar em castelhano (um achincalhe e traição segundo muitos catalães), a difícil decisão durante o Eurovision de 1968, os anos de ostracismo provocado pela política cultural de franco. Montalbám sabe criticar e apontar os equívocos de Serrat, mas sabe também não perder a ternura, não perder o carinho que tem pelo jovem cantor catalão, de origem proletária, que havia conquistado legiões de admiradores tão rapidamente. O livro é repleto de canções de Serrat e vale como iniciação a sua obra. O que me impressiona em Manolo Montalbám é a forma como ele antecipa em uma década o ufanismo (e quase xenofobismo) que contaminará toda a Catalunha durante os jogos olímpicos de 1982. Grande sujeito. Sempre. Haverá mais Montalbám por aqui neste ano. [início 13/05/2011 - fim 27/05/2011]
"Joan Manuel Serrat", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: editorial Nortesur, 1a. edição (2010), brochura 10x17 cm, 111 págs. ISBN: 978-84937357-9 [edição original: Ediciones Júcar (Barcelona) 1973]

quinta-feira, 2 de junho de 2011

nemesis

Comprar edições em capa-dura é um mimo que faz bem a alma. Consolamos o Scrooge que late dentro de nós lembrando que o papel é melhor e menos ácido, que as costuras são bem acabadas, que a sobrecapa irá proteger melhor o livro. Encontrei este "Nemesis" em uma daquelas excursões aos jardins de cimento dos Campos de Piratininga (quem está cansado de São Paulo está cansado da vida). Para os gregos Nêmesis era a força contraposta à soberba dos homens, a força inevitável que pune aqueles que ultrapassam uma certa medida (o duro é descobrir esta justa medida). Para Philip Roth Nêmesis é o grande tema que une suas últimas histórias (Homem Comum, Indignação, A humilhação, Nêmesis). Não há Kepeshs, Roths ou Zuckermans em "Nemesis", uma novela curta (mas com enredo denso), que se resolve em três breves passagens. O tema parece ser mesmo a morte e o acaso da vida. Ele fala principalmente de como as decisões que tomamos pouca influência têm no fluxo natural das coisas, já que a vida é mesmo um sopro. No caso de "Nemesis" o narrador é Arnie Mesnikoff, nas duas primeiras partes do livro ainda um garoto, na terceira já um senhor de meia idade. É Arnie quem conta a história dramática do personagem principal, Eugene Cantor, um jovem professor de educação física. No verão de 1944 Cantor dá aulas de recreação em um parque público da periferia de Newark (New Jersey), onde vivem majoritariamente judeus. Ele não foi convocado para a guerra pois tem um problema bobo nos olhos, mas é um excelente atleta e incentiva seus alunos a tornarem-se bons atletas também eles. Sua namorada, também uma jovem professora, mudou-se para a região das montanhas Pocono (na Pennsylvania). Ela tenta convencê-lo a aceitar um posto de professor na mesma escola (ou acampamento de verão, não estou certo) em que ela está trabalhando. Como quase sempre nos livros de Philip Roth, ele apresenta uma situação mais ou menos ideal, previsível e logo coloca seus personagens narradores para falar e destrinchar o que há de podre nela. Em "Nemesis" é uma epidemia de poliomelite (uma doença incurável até meados dos anos 1950). Seus alunos do parque público começam a contrair a doença. O pânico por conta das primeiras mortes, principalmente pelo contraste com as mortes nos combates na Europa, é imenso. Sua garota tenta convencê-lo a aceitar a posição no acampamento da Pennsylvania (tanto por medo da doença, quanto pelo desejo de ficar perto dele e casar-se). Todavia Cantor fica dividido moralmente, pois acredita ser seu dever permanecer ao lado de seus alunos (que continuam ficando doentes e morrendo). Ele se pergunta se não há uma deidade que velaria pela segurança e felicidade dos homens. Roth sustenta este dilema por todo o livro. O leitor realmente partilha algo deste dilema. Há mais, claro, Philip Roth nunca se contenta em apresentar apenas um problema moral para seus leitores ideais, mas se eu continuar daqui a graça do livro se perde. O velho urso de Connecticut parece não ter mais fôlego para histórias longas, mas ainda sabe surpreender um leitor. Bom livro. [início 09/05/2011 - fim 26/05/2011]
"Nemesis", Philip Roth, New York: Hougton Mifflin Harcourt, 1a. edição (2010), capa-dura 13,5x20 cm, 280 págs. ISBN: 978-0-547-31835-6

quarta-feira, 1 de junho de 2011

a ninfa inconstante

Este é um dos melhores livros que li este ano. Bem humorado, repleto de citações (ora eruditas, da literatura e da filosofia, ora da cultura pop, do cinema e da música), algo surpreendente, cheio de reviravoltas e jogos verbais, bons personagens, com temática provocadora mas habilmente cifrado. Claro, este romance não é produto de um neófito, mas sim de um poderoso escritor, Guillermo Cabrera Infante, o mais saudoso cubano de todos os cubanos forçados ao exílio. Cabrera Infante morreu em 2005. Segundo sua viúva, Mirian Goméz, sempre citada por ele, Cabrera Infante trabalhou muito nele em seus últimos anos. O trabalho de fixar o texto partindo dos manuscritos foi complexo. Em 2008 o livro foi lançado na Feria de Madrid, lugar e evento caros ao autor. O livro se passa na Cuba recriada pela memória dele. Ainda segundo Mirian Goméz a memória de Cuba foi das poucas coisas que o terrível duo de patéticos tiranetes de lá não roubou de seu marido. A ação começa vertiginosa em um 16 de junho, um Bloomsday, o de 1957. Não deve ser por acaso, Guillermo entendia de epifanias joyceanas. Em "A ninfa inconstante" um sujeito vê uma moçinha em flor perto do mar caribenho e pronto, se apaixona (e a musa irônica sopra baixinho: luz da minha vida, fogo na minha carne). Se o Humbert Humbert de Nabokov é sombrio e cruel ao perceber-se apaixonado por Lolita, o narrador de Cabrera Infante (Guillermo Cain, seu alter ego, sempre) é apenas sarcástico consigo mesmo, quando seduz (ou é seduzido) e foge (ou flana, brevemente) com Estela, sua nominada ninfa inconstante. Os diálogos são sempre muito bons. A tensão sexual, nada contida, como contam os boleros que ele cantarola pelo livro. Há frases potentes, vertiginosas, que acompanham o leitor quando termina o livro. Como o narrador é jornalista algo do nervosismo e da superficialidade deles vaga pela história. Encontramos boas metáforas e expressões populares, além de referências cinematográficas e literárias. Mas sobressai-se por tudo uma presença grega, como se todas as danações, virtudes e reflexões só pudessem vir mesmo da Grécia, dos conceitos gregos. Nas historias paralelas uma outra ninfa surge. Claro, é Cuba, uma Cuba decadente, do final dos anos 1950, mas anterior ao sombrio terror castrista. Havana é uma cidade serpeante, misteriosa e envolvente, também ela uma sedutora implacável, mas que sabe ouvir lamentos e curar as feridas de amor. Cabrera Infante presenteou a todos com este belo e divertido livro. [início 18/05/2011 - fim 22/05/2011]
"A ninfa inconstante", Guillermo Cabrera Infante, tradução de Eduardo Brandão, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 230 págs. ISBN: 978-85-359-1800-7 [edição original: La ninfa inconstante (Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores) Barcelona, 2008]