Por mais que você leia e se interesse por temas abrangentes e fundadores ou absolutamente específicos e maniáticos (que o ocupem e divirtam por anos sem fim), chega uma hora que você precisa voltar para os gregos, voltar para a mitologia. O arrebatamento é sempre poderoso. Claro, um sujeito deve começar pelo Thomas Bulfinch ou Gustav Schwab, mas logo vai procurar coisas mais sutis no Pierre Grimal ou no Joseph Campbell (há uma miríade de outros livros, dicionários, inclusive originais em português, como a série do Junito Brandão, mas as releituras serão sempre bem vindas). Todavia, de tudo que já li, o compêndio de Robert Graves "Os mitos gregos" é o mais iluminador e seminal. Meu pai tem os dois volumes de uma edição surrada da Penguin, mas só quando comprei a tradução portuguesa da Dom Quixote, já no início dos anos 1990, foi que entendi mesmo o projeto de Graves. Ele é mais conhecido por romances históricos como "Eu, Cláudio", mas foi também um respeitado tradutor e poeta. Pois são estas duas ocupações e habilidades (a de tradutor e de poeta) que tornam inovadoras suas propostas de leitura dos mitos gregos. O procedimento de Graves é padronizado e tripartido. Ele reuniu tudo que pode desde vinte séculos antes do nascimento de Cristo. Para cada entrada em seu compêndio ele apresenta alguns parágrafos descritivos (que é o que usualmente se faz nos livros mais simples), lista as referências específicas de cada parágrafo (ele sabe ser detalhista e preciso) e lista suas interpretações pessoais (que transitam entre a antropologia, a história, a geografia e a medicina - há muito pouco de aporte psicológico nele). Graves adverte que deve-se distinguir o mito autêntico de vários outros tipos de registros: alegorias filosóficas; sátiras; contos; propaganda política; lendas morais; amedotas e narrativas (romanceadas, épicas ou realistas). Claro, em cada um destes registros pode haver, como em um palimpsesto, uma origem realmente mitológica. E é esta camada que interessa a Graves. Neste trabalho minuncioso ele vale-se do que se sabe da astronomia, das práticas agrícolas e comerciais, dos movimentos migratórios e incursões guerrreiras. Aprendemos que os mitos (à conveniência dos homens e mulheres poderosos de cada tempo) podem ser fundidos, adaptados, invertidos, deslocados temporalmente e até abolidos. Aprendemos o significado dos rituais de morte de jovens, dos reinados em dupla, do conhecimento e uso dos fármacos alucilógenos, do culto da deusa no Mediterrâneo (que ele descreve melhor em um outro livro dele, "A deusa branca"). Quem é afeito a abordagens românticas (como a das histórias de fada) ou psicológicas (como as interpretações freudianas, junguianas e lacanianas) não deve gostar muito desta máquina de interpretação proposta por Graves (afinal, boa parte do encanto dos mitos é sua capacidade de adapatar-se as questões contemporâneas, a forma como o homem de hoje reage e opera aos estímulos da vida em sociedade e da natureza). Deixe-me apresentar apenas um exemplo de como a coisa funciona. Afinal um sujeito pode até decepcionar-se com Graves ao descobrir que os cíclopes são apenas a representação mágica dos homens que conheciam o ofício de moldar e forjar os metais, os ferreiros. Como este conhecimento era estratégico, os reis escondiam estes homens em locais de difícil acesso (geralmente ilhas com cavernas espaçosas e fontes de calor), criando o mito dos gigantes forjadores dos raios de Zeus para impedir que curiosos se aproximassem destes locais. Estes ferreiros usualmente protegiam um de seus olhos das fagulhas que saltam dos metais quando trabalhados mecanicamente para a produção das armas e artefatos (não existiam óculos de proteção naqueles tempos) e eram suficiente robustos e sujos para emular gigantes de um olho só, escondidos em cavernas inacessíveis. Não há uma genuína poesia nesta ciência interpretativa de Robert Graves? [início 09/04/2011 - fim 16/06/2011]
"Os mitos gregos (volume 1), coleção nova enciclopédia", Robert Graves, tradução de Fernanda Branco, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1a. edição (1990), brochura 18x23,5 cm, 231 págs. ISBN: 972-20-0812-9 [edição original: The Greek Miths (Penguin books) Londres, 1955]
2 comentários:
Bela informação, Guina. Eu não conhecia o trabalho do Graves, vou atrás dele, já que, pelo que dizes, ele nos traz coisas que o Campbel e Junito e outros não fazem. Grande abraço! Estou terminando de ler o livro da Pola Oloixarac, "As Teorias Selvagens". Daqui a alguns dias ela vai estar na mídia brasileira, pois virá para a Flic. Mas estou tendo a impressão que como escritora ela é muito bonita e um tanto nerd.
olá ronai. robert graves é o anti-junito e o anti-campbell.
para ele tudo tem uma explicação antropológica/histórica/médico/geográfica. para quem gosta de não se iludir só com o mito (eu curto como poesia, não como verdade) é mesmo uma maravilha. há uma edição em um único volume lançada no brasil.
doña pola eu não conheço, mas vou ficar de antena ligada. abraços.
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