Nunca havia lido um livro de Elfriede Jelinek, ganhadora do prêmio Nobel de literatura em 2004, todavia já havia visto uma adaptação cinematográfica de seu romance "A pianista", dirigida por Michael Haneke em 2001 (e que ganhou o Grande Prêmio do Juri do festival de Cannes daquele ano). Trata-se de um livro impressionante mesmo. Erika Kohut, 36 anos, uma tirânica professora de piano, um dia imaginou poder tornar-se uma solista de sucesso, mas dá aulas num conservatório vienense. Seu aparente profissionalismo e erudição mascaram uma personalidade fraca, submissa ao despotismo da mãe, viúva; escondem um temperamento cruel, de quem não se envergonha das maldades que cometeu e comete contra colegas e rivais; ocultam seu duplo, uma mulher voyeurista, curiosa de sua sexualidade, que se mutila e frequenta cabines de peep-show. Um de seus alunos, dez anos mais jovem, passa a seduzi-la. Ela responde com tal perversão e desentendimento aos avanços do rapaz que ele acaba tomado de uma ferocidade absurda, incontrolável. O livro é escrito numa prosa direta, de frases curtas, implacáveis. Não há vez para romantismo e hipocrisia na narrativa. Erika funciona como uma metáfora da sociedade austríaca (para não dizer da sociedade contemporânea). Incapazes de entender a si mesmos pouco entendemos daqueles que nos cercam. Jelinek alcança demonstrar o quão devastadores podem ser os efeitos do confronto com a realidade que num determinado momento pode vivenciar todo aquele que, ou por escolha ou por submissão a uma figura de autoridade, experimentou apenas um aspecto da existência, foi incapaz de compreender mais que uma fração de si mesmo, esforçou-se em entender somente parte das complexas relações sociais e afetivas que poderia estabelecer com os demais homo sapiens sapiens, nossos contemporâneos. Viver plenamente não é uma atividade ordinária, corriqueira, pois custa tempo, educação e real investimento psicológico. Podemos viver anos sem fim num limbo moral e afetivo, padecer como escravos mentais por décadas, nos desgraçar em silêncio por tolas causas, sonhos ou distopias. Todavia é possível, senão provável, que em algum momento o mais cruel dos juízes, nós mesmos, finalmente decida-se por nos sentenciar e nos obrigue contemplar o que somos de fato, sem ilusões, sem autoenganos, sem máscaras. Costuma não ser um quadro bonito de se ver. Vida dura. Belo livro.
"A pianista", Elfriede Jelinek, tradução de Luis S. Krausz, São Paulo: editora Alaúde (selo Tordesilhas / Prêmio Nobel), 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 333 págs., ISBN: 978-85-64406-05-6 [edição original: Die Klavierspielerin (Reimbeck bei Hamburg: Rowohlt) 1983]
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