Carlos Alberto Dória é doutor em sociologia e um dos maiores especialistas sobre a história rica e variada da culinária brasileira. Dele já li o pequeno porém poderoso Formação da culinária brasileira, livro que me foi sugerido pela Heloísa, amiga querida, já há tantos anos. Nesse volume, "A culinária caipira da Paulistânia", recém publicado, ao leitor são oferecidas duas formas de familiarizar neste vasto assunto: o caminho da análise acadêmica e o caminho das receitas e produtos desta culinária. Na primeira abordagem Dória parte de sua tese central, que é a definição do que pode ser entendido como culinária caipira, para apresentar um panorâmico registro de sua história, evolução e os atributos quase míticos que hoje possui. Trata-se de uma espécie de arqueologia, a procura de registros de algo que em grande parte se perdeu, metamorfoseou-se, talvez seja melhor dizer. A Paulistânia é um enorme território, que abrange hoje a totalidade dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e partes dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O elemento central e inicial desta culinária é o uso do milho e suas farinhas, em contraposição às farinhas de mandioca, que reinavam nas demais regiões do país. A maior facilidade de processamento das farinhas de milho possibilitou
que indígenas autóctones da Paulistânia (sobretudo guaranis), depois os mamelucos, e ainda depois que os ditos bandeirantes,
promovessem a lenta e grande expansão das fronteiras do Brasil, ainda na primeira
fase colonial, definindo esta região como um território gastronômico. Dória fala da dieta indígena, cartografa a geografia desta culinária, fala de
história e sociologia, define o sítio (que é algo diferente de uma fazenda), a casa e a comida que ali se produzia, fala dos produtos que eram utilizados e sua
evolução. Apesar de ser um trabalho apresentado com todo um rigor acadêmico trata-se de um livro fácil de ler, é muito bem escrito e inventivo. O livro inclui extensas notas, vários mapas, uma robusta bibliografia e um fundamental índice, que ajuda o leitor a percorrer o livro em busca de conceitos e definições. A segunda parte do livro, a segunda abordagem que é oferecida ao leitor, é também assinada por Marcelo Corrêa Bastos, chef e proprietário de restaurantes em São Paulo. Carlos Dória apresenta um vasto conjunto de produtos e técnicas culinárias que são episodicamente comentadas por Marcelo Bastos em curtos parágrafos. Não se tratam propriamente de receitas, antes sim de registros sobre como se preparavam o desjejum, os cozidos e as caças; o milho, o arroz e o feijão; as conservas, os refogados e os mexidos; as farofas, as frituras e os empadões, biscoitos e pães. Além desses produtos os autores descrevem algo das tecnologias afeitas à culinária: a evolução dos fogões, as técnicas de refrigeração, as máquinas de processamento e moagem, a seleção de sementes, a logística, o sistema de vendas e distribuição de produtos. Na conclusão Dória produz uma coda amarga ao livro, aquela que identifica a cozinha
realmente caipira como uma ilusão, uma miragem somente acessível por meio da
arqueologia de algo que já se perdeu, que é
conhecido e praticado por poucos. A explicação para este distanciamento
é complexa, associada ao falso refinamento decorrente da rápida
industrialização de São Paulo e a chegada de imigrantes europeus na
segunda metade do século XIX, a pasteurização do gosto, a necessidade que qualquer povo tem de reinventar seu passado, idealizando-o. Bueno. Aprende-se um bocado neste livro. Um leitor curioso pode experimentar a prosa de Dória em seu blog (e-Boca livre). Vale!
Registro #1342 (gastronomia #34)
[início: 22/10/2018 - fim: 26/10/2018]
"A culinária caipira da Paulistânica", Carlos Alberto Dória, Marcelo Corrêa Bastos, São Paulo: Editora Três Estrelas (Grupo Folha), 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-68493-53-3
Registro #1342 (gastronomia #34)
[início: 22/10/2018 - fim: 26/10/2018]
"A culinária caipira da Paulistânica", Carlos Alberto Dória, Marcelo Corrêa Bastos, São Paulo: Editora Três Estrelas (Grupo Folha), 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-68493-53-3
Um comentário:
".........Acontece que costumo ser mais cínico e elitista, exatamente por não acreditar que em algum momento no futuro próximo uma fração maior da população brasileira desenvolva hábitos de leitura consistentes....." -
Prezado Aguinaldo,
O comentário consta na resenha do livro "A leitura e seus lugares" do Júlio Pimentel Pinto, que você fez em 2011, mas que só agora eu li....
Profético.
O filósofo Robert Kurz chamou nossa sociedade de "Sociedade da combustão"....... podemos atualizar para "SOCIEDADE DA LOCOMOÇÃO" ... todo mundo, está indo e vindo, sempre......E aí, um livro é um transtorno, pesado, caro, tem que ter lugar para guardar.....
Inescapável a lembrança de Millor Fernandes, ...a indústria do turismo, faz com que um idiota, ao invés de ser idiota em um só local, seja idiota em vários locais, ao mesmo tempo...
Vida que segue .......
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