Foi só no inicio de 2018 que li "A árvore que falava aramaico", excelente livro de contos de J. F. Botelho, que havia ganho o prêmio Açorianos de contos em 2012 e do qual nunca havia tido notícia. Lembro-me da surpresa de encontrar no livro histórias bastante inventivas e uma linguagem cheia de mimos, exuberância, cousas difíceis de serem bem enfeixadas na literatura brasileira contemporânea. Recentemente Botelho publicou uma nova coleção de contos: "Cavalos de Cronos". Ele divide sua proposta em dois conjuntos, um dito "A terra soturna", outro chamado "Os encontros infernais". Em ambos novamente se destacam uma imaginação dos diabos e uma linguagem riquíssima. Ojo! Talvez haja um excesso no dedilhado barroco da linguagem, mas já sabemos que é possível mesmo por esse caminho alcançar o bom palácio da sabedoria. Faço esse reparo pois talvez um neófito leitor se afogue no texto, embriagado pela vertigem de imagens, figuras de linguagem, associações ricas e potentes, léxico vasto e inusual. Os quatro contos do primeiro conjunto (A terra soturna) têm como orografia os campos neutrais entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. São quatro narrativas curiosas: "Uma história bem contada", na qual um casal segue pistas de um texto mítico (e a mulher parece uma musa encarnada ou uma metáfora do ofício criativo envolvido na ficção); "Cavalos de Cronos", que dá nome ao livro e envolve três jovens, que após terem fugido de uma batalha são emboscados por um traidor (e dão chance para que um digno cavalo faça uma escolha moral); "O silêncio dos campos", no qual um casal enfrenta os cães negros da depressão numa tapera perdida no pampa; e "Coturba dos Ermos", no qual pai e filho se reencontram para novamente se separarem, após uma espécie de travessia, que lembra algo do ritmo de Cormac Mccarthy). Pois nestas quatro historias o pampa faz as vezes de um mar, no qual os personagens de Botelho singram e passam por provações. Os seis contos reunidos no segundo conjunto (Os encontros infernais) são mais mágicos, ambientados em cidades imaginárias ou distantes, espacial e/ou temporalmente, fazendo o leitor viajar à China do imperador Wu, no século II a.C. (O imperador de bambu); ao Oriente Médio de Simão Estilita, no século V (Simeão do Deserto); a uma cidade duplicada, Mirador, onde dois destinos possíveis parecem coabitar e se comunicar por meio de um criado mudo, devidamente destruído numa espécie de Auto-de-Fé canettiano (Neste mundo); a uma ilha distópica, onde tudo é regrado e proibido - e que lembra os mundos de Jonathan Swift (Os deuses de Tingitana); ao Mediterrâneo dos tempos das cruzadas (Romance do Cativo e da Mourisca); à Roma dos tempos das guerras púnicas (O sonho de Catão). Botelho da pistas de sua Yoknapatawpha fundamental, que ele chama de Mirador, o lugar imaginado de onde brotam parte de suas histórias (valeria a pena discutir com ele uma eventual camada psicanalítica desta criação: a cidade, que vê a passagem dos homens, e o narrador, que observa e cria os destinos deles). Uma "Sesmaria dos Lopes", não muito distante desta cidade imaginada, amplia o horizonte onde habitam seus personagens, sendo que os Lopes, citados em vários contos, lembram os Snopes faulknerianos. Dois contos,"Romance do Cativo e da Mourisca" e "Simeão do Deserto", parecem ser cantos de um projeto maior e futuro, dito "A Jangada de Caronte", um poema épico talvez, que enfeixe as influências literárias e estéticas de Botelho. Já falei do barroco da ourivesaria dos contos, mas cabe acrescentar o rosário de mitos literários, a notável linguística campeira, o compêndio dos hábitos e regras mundanas gaúchas, os vaticínios bíblicos incorporados às narrativas, o surgimento recorrente de duplos, espelhos, bibliotecas, o elogio aos livros e à leitura. Difícil dizer qual dos contos é o mais bem resolvido. Cada leitor encontrará o seu. Vale!
Registro #1343 (contos #148)
[início: 22/11/2018 - fim: 28/11/2018]
"Cavalos de Cronos", José Francisco Botelho, Porto Alegre: Zouk editora, 1a. edição (2018), rochura 14x21 cm., 192 págs., ISBN: 978-85-8049-073-2
2 comentários:
Eita, fazia tempo que você não aparecia...
Correrias de final de ano. Aulas e aborrecimentos. Abraços Paulo
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