quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

o outro lado

"O outro lado", de Aldyr Garcia Schlee, deixa-se ler sem pressa, porém é difícil termos a paciência de abandoná-lo em algum ponto, sem sabermos como sua historieta terminará. Schlee chamou esse seu último livro publicado em vida de "noveleta pueblera". Ele nos informa que o escreveu ainda nos anos 1990, mas resolveu deixá-lo inédito até recentemente pois via nele semelhanças temáticas com um filme de Roberto Benigni, "O pequeno diabo", lançado justamente um pouco antes dele ter finalizado seu livro. Trata-se de uma narrativa curta, onde se fala basicamente de uns poucos sucessos de um casal: um estranho sujeito, José Jacinto, que vive na fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, e, Marita, sua mulher. Em 22 curtos capítulos o leitor é apresentado é fragmentos das biografias entrelaçadas dos dois: as andanças de José como bom changueiro (transportador, biscateiro) na região dos departamentos do nordeste uruguaio (Cerro Largo e Treinta y tres) e também na cidade de Jaguarão, no sul do Brasil; o encantamento que ele experimentou ao ver uma mulher quando viajava de trem com um grupo de artistas de circo; a forma como ele conheceu e depois fugiu com sua companheira, Marita; as circunstâncias de como ele encontrou dinheiro em um trem e apossou-se esse dinheiro; o passeio que eles dois fizeram a um circo onde ela conheceu o que era um picolé; o dia em que do outro lado do rio, em Jaguarão, viram um trapezista - que bem poderia ser um diabo que cuidava daquela mesma mulher que José viu no trem - cair no palco de um teatro. A novela gravita esses cinco ou seis acontecimentos fundamentais das vidas de José Jacinto e de Marita. O narrador repetidas vezes os descreve, como se fosse um aedo que contasse de forma diferente uma epopeia para seu público, modificando e ajustando as passagens de forma a alcançar um melhor efeito cênico, melhor escandir sua poesia, prender a atenção dos ouvintes. José Jacinto e Marita são quase uma unidade, um casal que se funde, silenciosos e cúmplices em tudo, sem jamais olharem para o passado. Enfim, trata-se de uma história simples, comum, uma metáfora da banalidade de qualquer vida, de qualquer escolha, de qualquer destino. O narrador faz um personagem dizer a José Jacinto que ele "seria muito rico sem sabê-lo". Talvez seja assim com quase todos os homos sapiens, que vivem vidas inteiras fazendo planos, guerreando, eliminando inimigos reais e imaginários, submetendo-se a inúmeras vilezas, sem dar-se conta das maravilhas cotidianas, das cousas que de fato fazem à alma um grande bem. Enfim, cabe registrar aqui que Schlee lançou "O outro lado" há poucos meses (foi em meados de setembro, em sua Jaguarão fundamental) e que morreu no último 15 de novembro. Seguem o rio e o barco. Segue a vida. Vale!
Registro #1351 (novela #72)
[início 08/11/2018 - fim: 12/11/2018]
"O outro lado: noveleta pueblera", Aldyr Garcia Schlee, Porto Alegre: Editora Ar do Tempo, 1a. edição (2018), brochura 14x21cm, 152 pág. ISBN: 978-85-62984-53-2

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