sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

nas águas desta baia há muito tempo

Há livros que nos encontram por eles mesmos, sem que tivéssemos notícias deles antes, pouco importa quantos anos já tenham passado de sua edição. Há dois ou três meses, vagabundeando por uma livraria paulista, sem medo, sem temor, interessei-me por um livro cujo título é poderosíssimo: "O preto que falava iídiche". Resolvi comprá-lo, mas não me furtei de levar junto seu irmão mais novo, que a seu lado repousava na estante, justamente esse "Nas águas desta baia há muito tempo: Contos da Guanabara". Comecei a ler naquele dia mesmo. Que assombro. Que delicia. Que textos maravilhosos. O autor, Nei Lopes, é um senhor escritor. São 18 contos de fada, 18 mitos revistados, 18 narrativas de estalo, que demonstram o quão poderosa e rica é a língua portuguesa. Para usar uma metáfora de Nei Lopes utilizada no livro, são caudalosos os mares de invenção que podemos singrar quando nos damos conta que brasileiros somos, e que cabe a nós, cada um a seu jeito e maneira, tino e oficio, nos afastar da borda do perene abismo em que vivemos. Somos nietzschianos de nascença. Nei Lopes apresenta ao leitor 18 contos curtos, todos eles brotam de um nome, uma figura mítica, um carioca que viveu tempos atrás. Ele parece sintetizar e emular aquilo que nós, os não cariocas, imaginamos ser próprio dos habitantes daquela antiga capital. Os contos tratam de um período que vai dos anos finais do império e primeiros anos da republica, dos anos 1880 e 1900. Em vários deles ecoam os bombardeios decorrentes de uma das "revoltas da armada", aquelas em questionavam e confrontavam o despótico governo de Floriano Peixoto. A geografia ou cartografia literária dos contos se fixa na baía da Guanabara, nas ilhas do arquipélago interior formado por ela. A baía da Guanabara é um grande mar e suas ilhas e praias a terra prometida dos cariocas. Ao inventar e registrar suas histórias Nei Lopes reescreve um Rio de Janeiro lendário, de fábula. Fala de ruas que tinham outros nomes, usa palavras que tinham outra conotação, registra hábitos de um país que parece diferente do que conhecemos, mas do qual somos certamente metamorfose, nova encarnação, nova persona. Claro, o leitor pode ficar a pensar se aqueles personagens existiram, se tudo aquilo descrito por Lopes aconteceu, se somos mesmo descendentes ou herdeiros deles. Só sabe quem lê. Que aventuras maravilhosas experimentará todo aquele que se aproxime deste poderoso livro. Evoé don Nei Lopes, evoé. Vale!
Registro #1352 (contos #159)
[início 23/10/2018 - fim: 28/10/2018]
"Nas águas desta baía há muito tempo: Contos da Guanabara", Nei Lopes, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2017), brochura 14x21cm, 270 pág. ISBN: 978-85-01-10913-2

Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Esse eu vou comprar!
vc sabe, acredito, que esse tipo de feliz descoberta tem o nome, em inglês, de serendipity?
Abração.