Um ano sem voltar a Espanha é um ano perdido. Sempre lembro desta frase do Cees Nooteboon quando chega esta época. Não fui a Espanha neste ano mas aventurei-me por ela de variadas formas. Li vários livros em espanhol, aprendi um bom bocado de cousas novas, acompanhei as notícias de lá, a queda do Rajoy e os sucessos do movimento separatista catalão, recebi vários mimos que doña Helga trouxe de lá. Paciência, não posso reclamar muito. De qualquer forma uma das mais prazerosas experiências literárias deste ano foi a leitura deste "El viaje de don Quijote", de Julio Llamazares, bem ilustrado Jesús Cisneros. Em 2015, por encomenda, como forma de comemorar os quatrocentos anos de lançamento da segunda parte do Don Quijote, Júlio Lamazares escreveu para o jornal El País trinta crônicas de viagens, repetindo algo que já havia sido feito por Azorín (aka José Augusto Trinidad Martínez Ruiz) há cerca de século, quando das festividades de comemoração dos trezentos anos do lançamento da primeira parte do Quijote. As quinze crônicas de Azorín podem ser lidas no portal da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes (clica aqui!) e as crônicas originais de Llamazares podem ser lidas no El País (ambas valem mesmo a pena). São registros curtos, porém potentes, de alguém que sabe prestar atenção a detalhes, a ouvir pacientemente as pessoas com quem se encontra, a escrever como tino de adestrado jornalista e habilidade de experimentado escritor. Das crônicas não brotam apenas os caminhos literários percorridos por Don Quijote, mas também algo da Espanha profunda, mítica, fundamental, de sonho e de fábula, aquela que se reinventa a cada leitura de seu mais notável livro. Quem lembra do livro de Cervantes sabe que seu personagem fez três excursões em sua aventura como cavaleiro andante, vestido com sua armadura improvisada, montado em seu velho Rocinante. Pois Llamazares divide seu livro em três conjuntos de dez crônicas, cada um dedicado a uma das três saídas de don Quijote. Llamazares viaja de carro, sem as dificuldades de Azorín, que viajou de trem e também um bocado a pé. Viajando pelas comunidades autonômicas de Castilla-La Mancha, Aragón e Catalunya, Llamazares para em pequenos povoados, lugarejos que disputam corresponder aqueles pelos quais passaram don Quijote e seu escudeiro, Sancho Panza. Ele faz contato com gente comum, em pousadas, restaurantes simples, postos de gasolina, bares de beira de estrada. Trata-se de um livro fácil de ler. As crônicas têm o frescor de algo bem escrito para serem publicadas em jornais. O autor alterna suas descrições dos caminhos do Quijote com reflexões sobre a Espanha contemporânea, seus dilemas, as continuadas crises, ou a de emprego para os jovens, ou a de identidade europeia, ou ainda a que ameaça a unidade nacional. Em alguns lugares falar de Cervantes e seu personagem parece um diletantismo bobo. Noutros o registro alcança reproduzir o lirismo do livro original. Lê-se o livro de Llamazares e fica-se a pensar se não é uma boa ideia reler o Quijote, experimentar novamente aquele mundo de encantamentos, tentar recuperar algo daquilo que um dia entranhou-se em nossa memória e lá ficou. Já há tempos digo que preciso reler o Quijote, mas a cada ano renego a promessa, ai de mim. Vamos a ver se em 2019 consigo. Vale!
Registro #1353 (crônicas e ensaios #239)
[início 25/11/2018 - fim: 13/12/2018]
"El viaje de don Quijote", Julio Llamazares, Barcelona: Alfaguara (Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2016), brochura 14x20cm, 202 pág. ISBN: 978-84-204-2094-3
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