Li os poemas de Jerzy Ficowski reunidos em "A leitura das cinzas" na mesma época em que lia o impressionante ensaio de Joseph Czapski, "Proust contra a degradação". Esses dois senhores poloneses, cada um a seu modo e com suas distintas nobres artes, engrandeceram seu país. Czapski lutou nas forças regulares polonesas e foi prisioneiro dos russos durante a segunda grande guerra; Ficowski lutou como membro da resistência polonesa neste período e foi prisioneiro dos nazistas. Sobreviveram por acaso. Poderiam ter sido somados a milhões de mortos. Com a ascensão do comunismo na Polônia ambos foram censurados e perseguidos. No caso de Ficowski sua obra poética, ensaística e tradutória granjeou a ele respeito e admiração oficial na Polônia apenas já no final de sua vida (ele morreu no inicio deste século XXI), muito embora era reconhecido fora de seu país desde os anos 1980. Ficowski suportou o antissemitismo por décadas e é especialmente conhecido por ter produzido poemas sobre o Shoah, o extermínio dos judeus nos campos de concentração nazistas, e também por ter salvo do esquecimento a obra de Bruno Shulz, admirável escritor e pintor polonês. Os poemas reunidos em "A leitura casa cinzas" tratam exatamente do Shoah. São 25 peças poéticas, que demonstram um poeta que transforma uma das cousas mais abomináveis já perpetradas pelo homo sapiens em arte sublime, em um registro que evita um segundo assassinato, um segundo holocausto, que seria o da memória. Testemunha da tragédia e capaz de dar sentido poético a toda aquela selvageria, Ficowski nos fala das crianças judias no gueto, dos infinitos instantâneos da morte, dos vestígios que restam da cultura judaica na Polônia comunista, das cinzas que calcinaram aquele povo. A edição é bilingue e a tradução assinada por Piotr Kilanowski, polonês radicado no Brasil há 30 anos. Em uma boa introdução Piotr nos ensina sobre as dificuldades tradutórias que enfrentou, as escolhas que fez. Cada poema é acompanhado de notas curtas porém muito ricas, que explicam para o leitor a razão de certos assombros e eventuais enigmas. Gostei dos poemas, mas o que mais me tocou foi um sem título, que segue assim: "Muranów se ergue / sobre camadas do morrer / a fundação apoiada em osso / os porões nas valas esvaziadas de gritos // Foi ou não foi está como está // Há uma calmaria de gemidos removidos / halo negro do fogo defunto / Muranów firmemente plantado / na sepultura da memória / a maioria das cartas chega // Foi ou não foi está como está // E eu como ele elevado / até a superfície das cinzas / sob as estrelas de vidro estilhaçado // Foi ou não foi está como está // eu queria apenas calar / mas calado minto / eu queria apenas andar / mas andando pisoteio." Cabe registrar que Muranów é um bairro de Varsóvia, no qual se encontrava grande parte do terreno do gueto judaico, totalmente destruído após o levante de 1943 e deliberadamente reconstruído após a grande guerra de forma a não permitir que os vestígios da vida no gueto e da matança ali acontecida fossem um dia recuperados. Impressionante e forte livro. Vale!
Registro #1344 (poesia #102)[início 28/10/2018 - fim: 08/11/2018]
"A leitura das cinzas", Jerzy Ficowski", tradução de Piotr Kilanowski, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #4), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-92649-34-0 [edição original: "Odczytanie popiolow" (London: Association of Jews of Polisch Origin in Great Britain) 1979]
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