Algo impressionado com o bom "O beco do pilão" resolvi pegar o primeiro Mahfouz que estivesse à mão. Encontrei esse "Noites das mil e uma noites", de 1981, já na última década de sua longa carreira como escritor, iniciada nos anos 1930. Mahfouz parece ter sido motivado pela pergunta que qualquer leitor faz após chegar ao fim dos contos árabes das mil e uma noites: O que acontece exatamente após Scheherazade terminar de narrar sua miríade de histórias? Eles viveram mesmo felizes para sempre? Mahfouz inventa uma curiosa trama onde o arrependimento e transformação do tirânico e misógino sultão Shahriar em bom marido e pai amoroso é posta à prova. Mahfouz continua utilizando os elementos mágicos que encontramos nos relatos originais dos "Livros das mil e uma noites" (demônios, gênios, mundos paralelos, metamorfoses, viagens temporais) mas alcança milenarizar de alguma forma o texto, como se o decalcasse e o aproximasse do leitor moderno. Não são as fantasias, mas antes a psicologia dos personagens (mesmo os não-humanos, vamos dizer assim) que serve aos propósitos literários de Mahfouz. Como nos contos árabes originais as histórias se cruzam e superpõe em cascata, se repetem como em mantras, mas encontramos nelas vivências plenas de humanidade. Esse é um livro povoado de personagens e frases feitas (mas também alguma metalinguagem). Os passeios do Sultão à noite lembram aqueles inventados por Shakespeare no Henry V, assim como parece sair das peças de Shakespeare a transformação do chefe da guarda Jamsa al Balti em uma espécie de arauto ou louco (Montjoy ou o bobo do King Lear), que percorre todo o livro. A capacidade de Mahfouz de interpretar e refletir sobre o papel dos homens na política e religião, distinguindo-as (como sempre deve ser) é impressionante. O sultão Shahriar que o leitor encontra no final do livro é um homem mais sábio, assim como o leitor, que teve a chance de comparar as diferenças entre o conjunto de contos alegóricos do original e um romance realmente robusto. Em tempo: Essa é a 600a. resenha que faço nesse blog. É inevitável, mas o Alzheimer vai ter que trabalhar duro para apagar as boas lembranças da leitura destes 600 livros. [início: 08/01/2012 - fim: 10/01/2012]
"Noites das mil e uma noites", Naguib Mahfouz, tradução de Georges Fayez Khouri e Neuza Neif Nabhan, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a.
edição) 2011, capa-dura 14x21,5, 308 págs. ISBN: 978-85-359-1907-3
[edição
original: ليالي ألف ليلة Layali alf lela (Cairo) 1981]
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