sexta-feira, 12 de outubro de 2018

uniões

No início deste 2018, qual não foi minha alegria ao saber que dois amigos queridos, a Kathrin Rosenfield e o Lawrence Pereira, estavam envolvidos com a tradução de Vereinigungen, um volume de contos de Robert Musil cuja leitura eu havia abandonado há pelo menos vinte anos. Desta vez, pela força da tradução deles e guiado por dois soberbos ensaios críticos da Kathrin, consegui terminar a leitura e entender algo das histórias. Musil publicou esses dois contos ("A perfeição do amor" e "A tentação da quieta Verônica") em 1911. Ele já havia alcançado reconhecimento em 1906 com a publicação de "O jovem Törless", mas o volume com os contos, nos quais dedicou mais de dois anos de trabalho, foram recebidos com indiferença ou ácidas críticas. De fato são histórias complexas, que cobram do leitor concentração, envolvimento, atenção e contínuas reflexões. Nem tudo é dito, explicitado, factual. Nem tudo é linear ou auto-consistente. Em "A perfeição do amor" acompanhamos Claudine, uma jovem senhora, que ao visitar sua filha em um colégio interno, afastada do marido, permite-se testar a atração que provoca nos homens e também testar o alcance do amor que sente por seu marido. Em "A tentação da quieta Verônica" o leitor é apresentado a uma curiosidade de mesma natureza, mas neste caso a protagonista, a Verônica do título, não precisa consumar uma conjunção carnal com um estranho para entender o que sente ou sentia pelos dois homens que a sufocavam (e continuarão a restringir suas ações de certa forma): Johannes e Demeter. Esses dois resumos são obviamente incompletos, falseantes, restritivos. Os dois contos (ou as duas novelas, numa classificação talvez mais precisa) oferecem ao leitor camadas de interpretação, ilações, pistas. Trata-se de exercícios de estilo, através dos quais Musil parece querer demonstrar literariamente as transições de nossas vontades, de nossos gestos, de nosso entendimento da realidade, das razões que entendemos justificar cada uma de nossas ações. Não são narrativas que reduzem as sutis variações de nossa humanidade à psicologia, mas uma tentativa de entender a contradição intrínseca de nossos desejos, de nossas escolhas. Escritas há mais de cem anos, as duas histórias soam frescas, provocativas, apropriadas para descrever até mesmo nós, cínicos e tolos viventes deste inicio de século XXI, ainda encerrados nas mesmas masmorras ideológicas do final do século XIX, incapazes de entendermos a realidade que nos cerca, o mundo natural, nossa psicologia. Mais não digo sobre as histórias. Mas talvez valha a pena contar algo mais sobre meu envolvimento com esse livro. Há quase vinte anos, flanando por uma estival Barcelona, num domingo, lá pelos lados do Mercat de Sant Antoni, comprei "Uniones", a versão espanhola dos contos de Musil, contos sobre os quais nunca havia tido notícia. Meses antes, ainda no Brasil, eu havia terminado de ler uma tradução (assinada por Lya Luft e Carlos Abbenseth) de "Um homem sem qualidades" e estava curioso em saber mais cousas do Musil. Porém, meu espanhol medíocre daqueles dias não me fez avançar muito (meu volume da Seix Barral está pouco rabiscado, quase não amassado, sinal que fui vencido sem dó pelas narrativas). Essa dificuldade, esse desconforto, aliás, também experimentou Thomas Mann ao ler os contos, aprendi isso nos notáveis ensaios da Kathrin, ensaios que por si só já justificam a edição. Enfim, restou ao livro perder-se nos guardados de minha biblioteca. Consultando-o agora vejo que além dos contos a edição inclui alguns mimos: (i) sete curtos relatos ficcionais que foram publicados em jornais e revistas por Musil entre 1923 e 1930 - posteriores, portanto, aos contos; (ii) seis fragmentos ficcionais que só foram publicados após a morte de Musil, em 1942, mas que foram escritos na mesma época da produção dos contos. Esses dois conjuntos de relatos eu já havia lido, estão bem rabiscados (pelo menos isso consegui, o fracasso não foi completo). Não posso finalizar esse registro sem falar mais sobre a edição brasileira, do belo "Uniões" publicado pela Perspectiva. A edição é muito bonita, inclui um conjunto de dezessete ilustrações, reproduções de gravuras em metal de três artistas plásticos (Marcos Sanches, Maria Tomaselli e Raul Cassou). As gravuras foram produzidas por encomenda, fazem parte do projeto editorial do livro e já foram expostas em Porto Alegre e em São Paulo. A edição inclui também uma sobrecapa feita pela dobradura de uma folha em formato A3, impressa dos dois lados, com reproduções das gravuras. Enfim, o livro tem algo de livro arte, de livro objeto, é uma festa para os sentidos. Todavia, convenhamos, são os dois contos do Musil o melhor desta festa sensorial. Grato a Kathrin e ao Lawrence por traduzi-los. Vale! 
Registro #1335 (contos #156) 
[início 01/09/2018 - fim: 04/10/2018] 
"Uniões", Robert Musil, tradução de Kathrin Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, ilustrações de Marcos Sanches, Maria Tomaselli e Raul Cassou, São Paulo: Editora Perspectiva (Coleção Paralelos #35), 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 240 págs., ISBN: 978-85-273-1122-9 [edição original: Vereinigungen - Zwei Erzählungen (München: George Müller Verlag) 1911]

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