"Michael Kohlhaas" é a versão romanceada dos atribulados últimos anos de um sujeito (Hans Kohlhaas) que viveu na Saxônia em meados do século XVI (à época a Saxônia fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico). Ele foi contemporâneo de Martinho Lutero e, portanto, da reforma protestante da igreja católica. Heinrich von Kleist escreve seu romance no início do século XIX, mais de 250 anos após os sucessos vividos por Kohlhaas, ou seja, trata-se de uma história que tem mais de 450 anos. Kohlhaas era um criador e comerciante de cavalos que tornou-se o líder popular em uma revolta cuja motivação foi bastante banal: sua busca violenta por reparação - sobretudo moral, mais que financeira - após ter sido espoliado ao cruzar a fronteira das terras de um nobre e ter perdido dois de seus melhores cavalos. Ludibriado basicamente pelo preposto daquele nobre (um castelão algo simplório) Kohlhaas é continuamente enganado pelos atores do complexo sistema judiciário do Sacro Império Romano-Germânico (como todos eles são parentes ou contraparentes, utilizam-se dos mais variados artifícios para retardar qualquer resposta a sua petição). A perda dos cavalos, a morte da esposa, a desonra e a certeza da cumplicidade dos poderosos da região faz com que ele perceba que todos seus aborrecimentos decorrentes daquele logro inicial jamais serão reparados. Ele passa então a saquear e incendiar cidades, alcançando com sua milícia uma série de vitórias contra os exércitos regulares que tentam contê-lo. A descrição de Henrich von Kleist enfatiza a ingenuidade de Kohlhaas e sua ilusão com a possibilidade das leis públicas poderem de fato reparar seus danos. O próprio Lutero é convocado para dissuadi-lo e consegue a promessa de Kohlhaas de esgotar todas os níveis de recursos jurídicos do Império antes de continuar a incendiar cidades (a igreja - mesmo a igreja reformista - sempre faz algum tipo de serviço sujo para o poder estabelecido). Assim, uma vez mais enganado, Kohlhaas se afasta de seus comandados e coloca-se sob a proteção daqueles que por fim o condenarão. O livro seria apenas o registro dos atos cavalheirescos de um líder revolucionário ingênuo demais para merecer o sucesso até que Kleist acrescenta/inventa algo realmente poderoso. Ele faz com que os príncipes eleitores de Brandemburgo (Berlim) e da Saxônia (Dresden) - que são os sujeitos responsáveis pelo último recurso jurídico do caso, Kohlhaas (já condenado, prestes a ser decapitado) e uma cigana/vidente se encontrem num determinado ponto do livro. Com esse artifício von Kleist enriquece Kohlhaas como personagem pois ele passa a controlar não as ações bélicas como fazia antes de ser aprisionado, mas a psicologia do crime que está sendo cometido contra ele, a burla das leis que o condena, o arremedo de justiça que justifica sua morte. Ao lermos "Michael Kohlhaas" aprendemos que as leis existem (sempre existiram e existirão de alguma forma) mas as leis nunca foram/são/serão interpretadas da mesma forma se os sujeitos que buscam nelas conforto ou reparo pertencem a esferas de poder, representatividade e origem diferentes. A ilusão com o valor absoluto das leis é sempre destruidora. Assim como "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre" e "O colóquio dos cachorros", já resenhados aqui, esse pequeno livro faz parte de uma
coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing).
[início: 01/11/2014 - fim: 03/11/2014]
"Michael Kohlhaas: Aus einer alten Chronik", Heinrich von Kleist, tradução de Marcelo Rondinelli, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 155 págs., ISBN: 978-85-61578-37-4 [edição original: parcialmente publicado em jornais Phöbus(Dresden) 1808 / primeira versão em livro: Erzählungen (Berlin) 1810]
2 comentários:
Esse conto/ história é simplesmente algo
Obrigado pela resenha. Nas injustiças do mundo atual nada como rever o quanto não mudou muito o sistema das leis. Estou tentando baixar o livro em pdf.
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