Afirma Pereira é um romance muito bom. O narrador de Tabucchi começa o livro com a descrição de como um personagem surgiu como um fantasma em sua vida e fez-lhe lembrar de um jornalista português exilado em Paris que ele havia conhecido nos anos 1940. O narrador passa a contar o que soube de sua história. Pereira é um jornalista de meia idade, viúvo, católico, algo acima do peso, experimentado repórter policial, recém contratado por um pequeno jornal vespertino de Lisboa como responsável pelo caderno de cultura. Pereira traduz e edita sobretudo contos franceses. A história se passa no verão de 1938. Os dias são da ditadura salazarista, às vésperas da segunda grande guerra. Na vizinha Espanha a guerra civil está quase no fim, com as forças do ditador Franco já sobrepujando as do governo republicano com o apoio explícito dos governos italiano e alemão (além do apoio discreto do ditador português). Pereira é um jornalista que parece ser sempre o último a saber das coisas. As informações que tem sempre são de segunda mão, recebidas de um garçom, de seus médicos, de seu padre confessor e amigo, de seu chefe na redação, de uma secretária (que ele sabe trabalhar para a polícia política de seu país). Entusiasmado com um texto sobre a morte publicado em uma revista ele resolve convidar seu autor, um jovem chamado Monteiro Rossi, a escrever obituários de escritores famosos para seu caderno de cultura. Os necrológicos que Rossi escreve são sempre panfletários, libertários, algo impossível de ser editado num país onde a censura prévia da imprensa é norma. Pereira descarta as contribuições de Rossi, mas, algo paternal, continua a pagar pelos trabalhos e a dar conselhos ao jovem. Pereira lentamente percebe que Rossi deve estar envolvido com algum tipo de atividade clandestina contrária ao regime. Esgotado fisicamente Pereira resolve passar alguns dias em uma clínica de repouso junto ao mar. Lá ele conhece um jovem médico, de formação francesa, com quem discute uma provável origem psicológica de sua exaustão. Pereira volta a Lisboa e reencontra o agora foragido Rossi, acolhendo-o em seu apartamento. Contar mais sobre o livro é estragar o prazer de um eventual leitor. É mesmo uma pequena jóia, repleto de ironias e metáforas. Trata-se de um livro que pode ser transportado para qualquer tempo e
lugar. A corrupta Itália de Berlusconi parece merecer muitas das ironias, já que Tabucchi publica seu livro em 1994, nos tempos de ascensão de Berlusconi como primeiro-ministro italiano. É um livro que nos faz lembrar do valor intrínseco da democracia e liberdade, que nos faz resistir, nos ensina a dizer não, simplesmente não, a qualquer tentativa de dominação, de
controle social, censura ou opressão. Nos dias que correm muitos brasileiros parecem estar seduzidos com a idéia de viabilizar regimes de exceção, tanto de esquerda quanto de direita, mas esquecem, tolos e canalhas que são, que a tortura e a morte nunca escolhem ideologias, destroem sim tudo e a todos que tocam.
[início: 06/11/2014 - fim: 05/12/2014]
"Afirma Pereira: um testemunho", Antonio Tabucchi, tradução de Roberta Barni, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2013), brochura 13x19 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-405-0517-9 [edição original: Sostiene Pereira (Milano: Feltrinelli editore) 1994]
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