Se eu recebesse esse livro sem título ou nome do autor identificado na capa bastaria ler uns poucos parágrafos para que descobrisse que se trata de um legítimo Javier Marías. Seu estilo é inconfundível, mas certamente difícil de ser reproduzido, copiado ou emulado. Seus narradores nunca nos apresentam invenções lineares, cronológicas, fáceis de ler, mas sim uma história que parece banal, mas a qual é, aos poucos, acrescentado um novo aspecto de um determinado assunto, uma história que recebe camadas novas de sentidos e sugestões, de possibilidades e sutilezas, de associações e detalhes, que fazem com que o leitor eventualmente acabe por organizar e entender como uma totalidade argumentativa, um bloco conceitual, uma epifania dos diabos, um diamante literário, uma magia (javiermariesca). Mesmo quando seus narradores parecem ter esgotado uma via de argumentação, exaurido um caminho rico em digressões, eis que percebemos que estávamos (o narrador e nós mesmos, afortunados leitores) enganados, pois havia ainda um último aspecto que deveria ser ali investigado e discutido, que ainda seria possível extrair dali alguma nova maravilha. Javier Marías cria personagens que identificamos de alguma forma com aqueles seus que já conhecemos de outros livros, uma ilusão similar aquela produzida pelos atores de cinema - mais frequentemente atores de antigamente, dos anos 1940, 1950 e 1960- que se especializaram em um determinado tipo de papel (de vilão, sedutor ou atlético, de ingênuo, moral ou ladino, de pérfido, cômico ou misterioso) e nos faziam automaticamente associar ao personagem interpretado por ele num determinado filme todas as características que já conhecíamos do mesmo sujeito quando ele havia interpretado um outro papel num outro filme. De forma similar, quando um grande diretor de cinema, um Hitchcock por exemplo, criava cada um de seus filmes com personagens distintos, adaptados às circunstâncias das diferentes histórias, criava também personas que sabíamos imediatamente aparentadas entre si, como se fossem arquétipos de homo sapiens sapiens, de modelos de seres humanos, de padrões esquemáticos do comportamento humano. Pouco importava se os atores que interpretavam os papéis fossem James Stewart, Cary Grant ou Sean Connery, Kin Novak, Grace Kelly ou Tippi Hedren, assim que os víamos em cena sabíamos que eram atores em um filme de Hitchcock. Com Javier Marías não é diferente (não por acaso o cinema tem um papel importante na maioria de seus livros, desde o primeiro deles, o divertido "Los dominios del lobo", de 1971. Começamos a ler "Así empieza lo malo" e seu personagem principal, Juan de Vere, parece alguém que tem o mesmo estofo do Jacobo Deza do Ciclo de Oxford: "Todas las almas", "Negra espalada del tiempo" e "Tu rostro mañana". É como se fosse um experimentado ator que é contratado para interpretar um papel diferente (em um livro diferente) de Marías. Juan é o jovem assistente de um diretor de cinema, Eduardo Muriel. Produz para ele versões em inglês de cartas, documentos e roteiros cinematográficos. Esse Muriel é casado com uma mulher muito bonita, Beatriz Noguera, mãe de três filhos. Nos meses em que fica hospedado na casa dos Muriel (os meses de verão de 1980, meses da icônica movida madrilenha) ele acaba se envolvendo numa questão que remete ao início do relacionamento de Eduardo e Beatriz, nos anos da guerra civil espanhola, uma questão que será protagonizada, vivenciada e absorvida por Juan de Vere completamente, que o modificará completamente. O narrador (Juan de Vere) conta sua história retrospectivamente. Ele é no livro um narrador de quase 60 anos que lembra dos acontecimentos de quando tinha pouco mais de 20 anos, ou seja, ele fala de uma encarnação que mal conhece ou respeita. Marías utiliza esse intervalo enorme de tempo (desde os anos de guerra civil espanhola, passando pelos anos da movida madrilenha - de redemocratização, pós-morte do ditador Franco, até chegar aos anos de incerteza que conhecemos todos, os anos de Zapatero e Rajoy, de Obama e Putin) para refletir sobre aquilo que cada indivíduo precisa saber discernir o mais rapidamente possível na vida - para que não sofra muitos aborrecimentos -, ou seja, precisa descobrir logo as sutilezas dentre aquilo que dizemos ser e que se sabe de nós, na vida mundana, social; ou daquilo que somos só para nós mesmos e não compartilhamos com mais ninguém, nem o mais cúmplice dos atores de nossos círculos de amizade, nem para um padre ou psicólogo, nem para um diário ou texto de ficção; e daquilo que gostaríamos de ser psicológica e socialmente falando, enfim, aquilo que projetamos como meta ambicionada para nossa vida futura. Nem Marías (nem o narrador) contam uma história fechada, factual, precisa, definitiva. O que Marías faz é conduzir o narrador por situações que possibilitam que o leitor se identifique com algumas questão e se posicione, que reflita sobre o que faria caso estivesse nas situações descritas como vivenciadas por cada um dos protagonistas de sua história. O livro começa e termina com uma metáfora náutico literária, começa com a presença das brumas por onde cruza um navio baleeiro antes de possibilitar a visão de sua presa, como a névoa que antecede a visão de Moby Dick pela tripulação do "Pequod" pela primeira vez. A epifania final, o entendimento final do narrador sobre sua condição (que é especular àquela vivida por Eduardo Muriel trinta anos antes) repete a sensação de estarmos a cruzar um mar de névoas e incertezas, de opacidade e dúvidas. Nunca ninguém sabe a extensão e implicações definitivas de tudo o que verbalizamos nessa vida. Javier Marías discute como pequenos gestos, acasos e circunstâncias podem provocar transformações definitivas em nossas vidas. Ele fala do neoconservadorismo espanhol, de como a política e a religião estão entranhadas naquela sociedade. Ele fala das diferenças entre a sociedade espanhola e alemã, dizendo que essa última discutiu e absorveu seu passado condenável de uma forma muito mais razoável e saudável que a primeira, que ainda prefere conviver com seus fantasmas despóticos e/ou criminosos, como numa cumplicidade algo amalucada entre prisioneiros e verdugos. Ele fala uma vez mais sobre o poder da linguagem, das construções mentais que verbalizamos (voluntariamente ou através de atos falhos), da força da língua como a ferramenta que mais nos condena e ou que mais eficientemente pode nos salvar. Ele fala dos tempos da guerra civil espanhola, retomando questões já discutidas em vários de seus livros, onde percebe-se que pouco importa o que foi factual, verdadeiro ou real, mas sim o que foi historicamente construído (por força do poder, do despotismo, do ardil, da mentira, da hipocrisia ou até mesmo do acaso), pois é isso que acaba sendo majoritariamente aceito como válido. Qualquer brasileiro intelectualmente honesto deveria ser capaz de entender isso. Uma pessoa inescrupulosa sempre poderá construir para si um passado socialmente aceito (e economicamente vantajoso), desde que disponha dos meios e das oportunidade para fazê-lo. Ao mesmo tempo, trata-se de um romance doméstico, leve (digamos assim), pois os temas principais e os vários personagens podem ser confundidos/espelhados às vivências ou a pessoas reais, conhecidas e próximas de Javier Marías. A construção do protagonista da história, Eduardo Muriel, deve muito a biografia do tio de Marías, o cineasta Jesús Franco; o divertido Francisco Rico - já metamorfoseado como personagem nos livros de Marías diversas vezes - não é outro que o respeitado acadêmico Francisco Rico, da Real Academia Española, dileto amigo de Marías; e a esses pode-se acrescentar a menção explícita (entre pessoas reais e personagens bem inventados) de Peter Wheller, Dr. Arranz, Miguel Deverne e Flavia Manóia (seus personagens em outros livros) ou de Juan Benet, Vidal Secanell, Fernando Savater e Carmen Zapater (que são/foram amigos de Marías). Deve-se acrescentar também a essas minhas ilações a vívida inspiração no livro de vários acontecimentos da vida de sua mãe (Dolores Franco) e de seu pai (Julián Marías). Confundir essa estratégia com autoficção é uma bobagem, esse termo não dá a real dimensão do valor da prosa de Javier Marías e da qualidade de suas invenções. Javier Marías produziu uma vez mais um romance poderoso, que se desfruta
completamente, nunca aborrece ou entedia. Pouco importa a trama, que é
simples e não vou detalhar aqui para não afastar do leitor o prazer de suas próprias interpretações e descobertas. Para mim o que enfeitiça é a forma como camadas contínuas de
entendimento vão brotando da trama, fazendo-nos aceitar verdades
que não exatamente se contradizem, mas que são incompatíveis uma com as
outras. Trata-se de um romance que reflete sobretudo sobre nossa incapacidade de tomar decisões (e conviver satisfatoriamente com aquelas que já tomamos). Esse tema, claro, remete ao "Hamlet", de Shakespere, pois Hamlet é um sujeito que simplesmente não consegue agir para viabilizar a decisão que tem tomada desde o início da peça (vingar a morte de seu pai). Cabe registrar que o título do livro brota de uma cena do terceiro ato de "Hamlet": "I
do repent; but heaven hath pleas'd it so / To punish me with this, and
this with me, / That I must be their scourge and minister. / I will
bestow him, and will answer well /
The death I gave him. So again good night. / I must be cruel only to be
kind. / Thus bad begins and worse remains behind.". Ao menos como proposta inicial podemos pensar que deve ser feito previamente algum mal para que algum bem eventualmente possa florescer (ao menos para que algo muito pior fique no passado de nossas vidas). Por fim, uma última associação: "Así empieza lo malo" deve também algo ao Dante da "Divina Comédia", pois Javier Marías parece querer povoar sua literatura com menções ainda que elípticas e veladas àqueles viventes que praticaram ou praticam o mal, a todos aqueles que prejudicaram a ele, seus parentes, amigos, a seu país (sua guia pelo inferno não é outra que uma versão balzaquiana da Beatrice dantesca - não consigo escolher um bom Virgílio no livro). Li e reli esse livro como quem tateia um mapa do tesouro. "Así empieza lo malo" foi publicado há pouco mais de dois meses, no último 23 de setembro. Comprei a versão eletrônica do livro naquele dia mesmo e só quando já havia lido quase metade do livro - umas boas 250 páginas - foi que o volume físico chegou até mim. Um mês demorado de espera para algo que deveria levar uns poucos dias: Os correios brasileiros já foram uma instituição eficiente e confiável, paciência. Já com o livro físico nas mãos recomecei a leitura do início pois meu método de leitura implica em contínuas marcações nas páginas, anotações mil, registro de dúvidas. Rabisco coisas nas páginas que nem o mais eficiente dos e-readers alcançaria emular para mim. Terminei de ler o livro ainda em Brasília, durante uma missão de trabalho, há exatamente um mês, mas fiquei assombrado por ele, a consultá-lo e relê-lo, a percorrer algumas passagens como quem quer extrair delas algo mais que faça a alma um grande bem. Neste mês javiermarianesco li também "Las huellas dispersas", uma coleção de textos dele relacionados a seu Ciclo de Oxford (já mencionados acima, no início desse registro). Esses textos, sobretudo as entrevistas feitas com Marías transcritas nele, me ajudaram muito a entender melhor suas obsessões, sua inspiração e seu método. Haverá tempo neste ano para registrar algo sobre esse livro também. Essa é a centésima resenha do ano. Cousa boa. Ave Marías!
[início: 23/09/2014 - fim: 11/11/2014]
"Así empieza lo malo", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a.
edição (2014), brochura 15x24 cm, 534 págs. ISBN: 978-84-204-1627-4
2 comentários:
Guina, eu estava em Barajas dia 20 de setembro, tendo já despachado 9 Marías, entre outros livros, e carregando mais dois na bagagem de mão, quando prometi que não compraria mais nada. Mas eis que entro numa banquinha para ver uma revista, e lá está uma pilha desse romance que eu não havia visto nas livrarias e sebos (e como procurei pelo nome dele!) Levei comigo no colo, e de lá pra cá li cinco livros dele, mas esse vou deixar só pra depois que ler o box do Ciclo de Oxford, que veio com o Huellas Dispersas.
Depois me conte quais foram os livros que vc já leu. E conte também da viagem. Divertida? Abraços.
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