Com "O portal", publicado originalmente em 1910, Natsume Soseki encerra uma trilogia que começa com "Sanshiro" e passa por "E depois", já resenhados aqui. Esses três romances não têm personagens compartilhados mas os temas discutidos são similares. Soseki discute o papel dos indivíduos numa sociedade em rápida transformação. Em "Sanshiro" acompanhamos um sujeito simples que sai do campo para a capital para estudar numa universidade. No admirável mundo novo que se apresenta, através das novas amizades e dos desafios a que se submete, a mundanidade e a hipocrisia tanto fascinam quanto assustam, deixando-o imobilizado (nunca é fácil administrar emoção e razão, responsabilidades públicas e o desejo). Em "E depois" um outro sujeito, membro de uma família rica e poderosa, forma-se numa universidade mas não se decide sobre qual carreira seguir. Descobrir-se apaixonado pela mulher de um amigo apenas reforça sua imobilidade, sua incapacidade de agir e avançar, de assumir um papel honrado na sociedade. A narrativa de "O portal" é um tanto mais amarga que a dos dois romances que o antecedem. Somos apresentados a um casal de meia idade, Sosuke e Oyone, que passam por dificuldades financeiras, tem problemas recorrentes de saúde, vivem apenas um para o outro. A exclusão da sociedade de ambos parece auto imposta, mesmo considerando-se as rígidas convenções morais da sociedade japonesa do início do século XX. Sosuke pertencia a uma família abastada que proporcionou sua ida para a universidade, mas se afasta dos estudos e cai em desgraça após se envolver e casar-se com Oyone, a irmã mais nova de um colega que já estava prometida em casamento. A repentina morte do pai e sua inabilidade natural para os negócios (antes sua recusa em pensar nos problemas, deixando sempre que o pior aconteça, ao ponto de ter sido enganado por um de seus tios) acabam por obrigá-lo a receber em casa seu irmão mais novo (Koroku). Ele parece incapaz de impedir que também o irmão abandone seus estudos universitários. A presença do irmão perturba a rotina do casal e as dificuldades financeiras se agravam. Oyone e Sosuke lamentam o fato de não terem filhos. Quando tudo parece sem solução, pois Sosuke precisa encontrar um jeito de fazer com seu irmão volte para a universidade e se formar, para não tornar-se um quase pária como ele, Sosuke parte em busca de ajuda em um mosteiro Zen budista. Seus dias ali lhe fazem bem, mas é por puro acaso, através da ajuda de um vizinho que afeiçoou-se a ele, que seus problemas são de fato resolvidos. Assim como nos demais romances da trilogia o final é aberto, podemos ser otimistas ou não sobre o destino dos personagens (Soseki parece especular sobre as possíveis metamorfoses pelas quais passa a sociedade japonesa, que enriquece, passa por rápida industrialização e militarização). Soseki tem um estilo interessante. Lê-se o livro e parece que quase nada factual de verdadeira importância acontece, até que de repente nos damos conta das complexas repercussões dos conflitos que seus personagens experimentam e aqueles conflitos nos absorvem. Soseki não moraliza a discussão, nem se utiliza de um narrador que descreva a psicologia dos personagens, mas a tensão alcançada por ele é notável. Ainda prefiro seu livro de estréia ("Eu sou um gato"), mas nenhum livro dele que já li é ruim. Soseki sempre alcança provocar reflexões poderosas a partir de suas histórias. Vale.
"O portal", Natsume Soseki,
tradução de Fernando Garcia, São Paulo: editora Estação Liberdade (1a.
edição) 2014, brochura 16x23, 240 págs. ISBN: 978-85-7448-241-5 [edição
original: Mon (門) Tokyo, 1910]
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