sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

los cuentos de la peste

Além de habilidoso romancista, inventor de histórias igualmente cativantes e fortes, Mario Vargas Llosa também aventurou-se pelo teatro ao longo de sua carreira literária, tendo publicado pelo menos uma dezena de peças. "Los cuentos de la peste" é a mais recente. Foi montada pela primeira vez em janeiro de 2015, no Teatro Español de Madrid, sob direção de Joan Ollé e contou com o próprio Llosa atuando. A peça é baseada no "Decameron", de Giovanni Boccaccio. Llosa transporta o leitor/espectador para os arredores de Florença, em meados do século XIV, quando eclodiu a peste negra, que tantas vidas cobrou. A peça é dividida em duas partes ou atos, de dez cenas cada um. Assim como no original de Boccaccio, a eclosão da peste faz com que um grupo se isole e, de certa maneira, sobrevivam à doença inventando histórias, inventando mundos. A literatura funciona como metáfora para a fuga da realidade, para a experiência de viver em fantasia destinos que jamais viveríamos. Na peça de Llosa são apenas cinco os atores (enquanto para Boccaccio eram dez, o dobro). Nenhum deles é de fato quem afirma ser: O duque Ugolino, também é um covarde que fugiu da luta nas cruzadas, que nunca foi capaz de amar; Giovanni Boccaccio, apenas um inquisitor cruel de seu tempo, não um poeta; Aminta, condessa de la Santa Croce, uma princesa muçulmana, enganada por homens vis; Pánfilo, um ator mambembe travestido de monja; Filomena, uma monja travestida de atriz mambembe. A bem da verdade cada um deles passa por diferentes metamorfoses nos contos que contam na peça, nos vinte esquetes teatrais em que a peça é dividida, assumindo papéis que, assim como um caleidoscópio, multiplicam a luz, as imagens, as histórias. Os atores falam de questões de seu tempo, do medo da morte, do amor e do desejo, das relações entre distintas classes sociais, do destino, de suas biografias inventadas e por inventar, das mentiras cotidianas que sustentaram no passado. Ao enganarem a peste, contando os contos, livraram-se da morte, mas também da ilusória existência de seus passados. Será possível voltar à realidade? Será tolerável viver uma vida sem mentiras? No final da peça Boccaccio sabe que deve agora escrever seu "Decameron", na língua franca do povo, o italiano, não no latim de seus poemas. A vida imaginada e a vida vivida, a ficção e a realidade, serão plasmadas naquele livro. De certa forma, Llosa está falando de nosso mundo contemporâneo, das infinitas formas que utilizamos para fugir das pragas reais e metafóricas que vivemos, das insuportáveis e cruéis facetas da vida em sociedade, da farsa que praticamos nas redes sociais, do autoengano, das manipulações à qual tão alegremente nos submetemos e de forma tão desprezível praticamos contra nossos semelhantes. Que jogo mágico e interessante Mario Vargas Llosa nos oferece. A edição é muito bonita, com muitas reproduções fotográficas da montagem original da peça, fotografias assinadas por Ros Ríbas. Lembrei dos dias em que morei em Madrid, jovem neófito e necessariamente deslumbrado, das poucas peças e apresentações teatrais que vi, inclusive lá no Teatro Español, que fica justamente na icônica Plaza de Santa Ana, ai de mim. Vale! 
Registro #1474 (drama #17) 
[início: 07/11/2019 - fim: 12/11/2019]
"Los cuentos de la peste", Mário Vargas Llosa, fotografias de Ros Ríbas, Cíudad Autônoma de Buenos Aires: Aguilar, Altae, Taurus, Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2015), brochura 14x23 cm., 280 págs., ISBN: 978-987-738-029-3

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