sábado, 26 de outubro de 2019

a caverna dos destinos cruzados

Era uma vez três poetas. Eles inventaram uma história curiosa. Dois deles, Monica Berger e Sérgio Viralobos, escreveram uma narrativa poética, um poema dividido em 22 curtos cantos, sempre cúmplices; o tertius poeta, Leonardo Chioda, produziu ilustrações que interagem com o narrado, complementando-o muito bem. Talvez seja o caso de dizer que as ilustrações incluídas no livro são colagens digitais, e que são tão inventivas e provocadoras como os poemas. Existe uma ambição complicada no volume oferecido ao leitor, que é a de terminar uma ideia do genial Ítalo Calvino, apresentada em seu "O castelo dos destinos cruzados", publicado originalmente em 1973. Assim como no livro de Calvino, Monica, Sérgio e Leonardo produziram algo que gravita os 22 arcanos maiores do Tarot. Eles evocam uma miríade de associações, que vão da cultura pop (das gírias, frases feitas, do mundo coloquial de quem apenas desfruta o belo na vida e vive seu tempo), a muitas e cifradas referências, quase sempre sofisticadas, que abraçam símbolos e erudição, estética e senso de ritmo, jogos verbais e tradição poética. Vê-se que são cousas típicas de poetas já experimentados (apesar de Chioda ser um tanto mais jovem que os colegas). O conjunto faz uma festa nos sentidos do leitor. O trio conseguiu inventar uma bela história, que se defende sozinha: Nela, Pantera e Lobo, amantes que habitam uma caverna onde as serpentes não tem vez, são sacaneados por detentores de poder. Não encontrando acolhimento jurídico nem divino, partem os dois numa honesta sanha, em busca de um filho perdido/roubado e talvez do amor fugidio deles mesmos. Mais não conto. Já sabemos que nas cartas de Tarot estão cifradas todas as histórias possíveis, representadas todas as gêneses e destinos, todas as variantes de nós, viventes deste mundo. Ao final da leitura, que é algo que lembra uma jornada, um descobrimento de si (tripartido, no caso), um louvor à proeza que é amar e ser amado, um registro pagão de uma conversão religiosa, o leitor retorna a caverna primordial de onde saíram Pantera e Lobo, ao cenário que lhes foi apresentado no primeiro dos cantos. Como sempre faço quando leio textos parecidos com este, fiz um bocado das minhas associações selvagens. Lembrei que a tecnologia e a velocidade de troca de informações parecem ser sim mitos modernos; que cada leitor sempre será um intérprete menor, alguém que não alcança a competência dos sujeitos que assinam e se expõe numa obra; que todas associações selvagens, por mais diligentes e inventivas que sejam apenas registram momentos de encantamento, ecos instáveis daquele contrato literário entre autores e nós, ai de nós, leitores. Aprendi um bocado. Gostei desta curiosa épica contemporânea, deste rico e viconiano jogo poético. Vale! Em tempo: diz a lenda que o industrioso Vanderley Mendonça produzirá um reedição deste volume, num formato mais próximo de seus livros arte, com os arcanos de Tarot separados em uma caixa, com capa dura de tecido, usando uma tinta litográfica que talvez dure mil anos. Ulalá! Logo vamos a ver. Vale!
Registro #1462 (poesia #119)
[início: 20/09/2019 - fim: 27/09/2019]
"A caverna dos destinos cruzados", Monica Berger e Sérgio Viralobos, iconografia de Leonardo Chioda, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2019), brochura 15,5x23 cm., 116 págs., ISBN: 978-85-66423-65-5

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