Era uma vez três
poetas. Eles inventaram uma história curiosa. Dois deles, Monica Berger e
Sérgio Viralobos, escreveram uma narrativa poética, um poema dividido em 22
curtos cantos, sempre cúmplices; o tertius poeta, Leonardo Chioda, produziu
ilustrações que interagem com o narrado, complementando-o muito bem. Talvez
seja o caso de dizer que as ilustrações incluídas no livro são colagens
digitais, e que são tão inventivas e provocadoras como os poemas. Existe uma
ambição complicada no volume oferecido ao leitor, que é a de terminar uma ideia
do genial Ítalo Calvino, apresentada em seu "O castelo dos destinos
cruzados", publicado originalmente em 1973. Assim como no livro de
Calvino, Monica, Sérgio e Leonardo produziram algo que gravita os 22 arcanos
maiores do Tarot. Eles evocam uma miríade de associações, que vão da cultura
pop (das gírias, frases feitas, do mundo coloquial de quem apenas desfruta o
belo na vida e vive seu tempo), a muitas e cifradas referências, quase sempre
sofisticadas, que abraçam símbolos e erudição, estética e senso de ritmo, jogos
verbais e tradição poética. Vê-se que são cousas típicas de poetas já
experimentados (apesar de Chioda ser um tanto mais jovem que os colegas). O
conjunto faz uma festa nos sentidos do leitor. O trio conseguiu inventar uma
bela história, que se defende sozinha: Nela, Pantera e Lobo, amantes que
habitam uma caverna onde as serpentes não tem vez, são sacaneados por detentores
de poder. Não encontrando acolhimento jurídico nem divino, partem os dois numa
honesta sanha, em busca de um filho perdido/roubado e talvez do amor fugidio deles
mesmos. Mais não conto. Já sabemos que nas cartas de Tarot estão cifradas todas
as histórias possíveis, representadas todas as gêneses e destinos, todas as variantes
de nós, viventes deste mundo. Ao final da leitura, que é algo que lembra uma
jornada, um descobrimento de si (tripartido, no caso), um louvor à proeza que é
amar e ser amado, um registro pagão de uma conversão religiosa, o leitor
retorna a caverna primordial de onde saíram Pantera e Lobo, ao cenário que lhes
foi apresentado no primeiro dos cantos. Como sempre faço quando leio textos
parecidos com este, fiz um bocado das minhas associações selvagens. Lembrei que a
tecnologia e a velocidade de troca de informações parecem ser sim mitos
modernos; que cada leitor sempre será um intérprete menor, alguém que não
alcança a competência dos sujeitos que assinam e se expõe numa obra; que todas
associações selvagens, por mais diligentes e inventivas que sejam apenas
registram momentos de encantamento, ecos instáveis daquele contrato literário
entre autores e nós, ai de nós, leitores. Aprendi um bocado. Gostei desta
curiosa épica contemporânea, deste rico e viconiano jogo poético. Vale!
Em tempo: diz a lenda que o industrioso Vanderley Mendonça produzirá um reedição
deste volume, num formato mais próximo de seus livros arte, com os arcanos de Tarot separados em uma caixa, com capa dura de tecido, usando uma tinta litográfica
que talvez dure mil anos. Ulalá! Logo vamos a ver. Vale!
Registro #1462 (poesia #119)
[início: 20/09/2019 - fim:
27/09/2019]
"A caverna dos destinos
cruzados", Monica Berger e Sérgio Viralobos, iconografia de
Leonardo Chioda, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro),
1a. edição (2019), brochura 15,5x23 cm., 116 págs., ISBN: 978-85-66423-65-5
Nenhum comentário:
Postar um comentário