Em "Esta bruma insensata", seu romance mais recente, Enrique Vila-Matas oferece uma vez mais uma narrativa onde importam antes as ideias, a discussão sobre o ofício da invenção literária, intertextualidade, metalinguagem ou o mundo diáfano dos livros e não necessariamente a trama, a história, os sucessos e aborrecimentos de personagens que, sabemos todos, só existem na imaginação de escritores e leitores. No livro acompanhamos três dias da vida de Simon Schneider, um sujeito algo misantropo, que vive isolado num casarão em ruínas de Cap de Creus, no ponto mais oriental da Península Ibérica, próximo à badalada Cadaqués, na Catalunya. Simon vive de traduções e também do curioso ofício que é compilar aforismos e frases feitas. Nos últimos vinte anos ele vendeu suas frases compiladas e aforismos sobretudo para um irmão mais novo, Rainer Schneider Reus, sujeito que era um medíocre escritor quando morava na Catalunha, mas que emigrou para os Estados Unidos e tornou-se um escritor respeitado, tanto por seus truques metaliterários quanto por sua reclusão, sua aversão a exposição pública, ao estilo de Thomas Pynchon ou J. D. Salinger. Simon entende que a força e o sucesso dos livros de Rainer deve muito a seu trabalho, às frases feitas que envia ao irmão. Ao mesmo tempo tem consciência do fracasso, sabe que a matéria prima da literatura sempre é algo que já foi contado e recontado infinitas vezes, que a originalidade é uma quimera, um sonho, esquecido entre "brumas insensatas", para aproveitar o título do livro. Vila-Matas situa temporalmente seu livro no final de outubro de 2017, nos dias em que massivas manifestações públicas aconteceram em Barcelona em função da declaração unilateral de independência anunciada pela Generalitat de Catalunya (e que tantos desdobramentos fez toda España experimentar desde então). Rainer e Simon funcionam como Doppelgänger um do outro, são duplos, faces opostas e complementares, um do outro. A bem da verdade, entendi o relacionamento deles dois algo parecido com o de James Joyce e seu irmão Stanislaus, sempre tratado como um escravo particular, desde os tempos em que viviam em Trieste até o final da vida de Joyce, já em Zürich. Há momentos em que Simon e Rainer confessam fé cega na literatura, no poder
das palavras, ja noutras, com sarcasmo, renunciam a ela, por sua natural
impostura. O livro oscila entre estas duas ambições, louvar a
literatura e renegá-la. Vila-Matas povoa seu livro com citações interessantes (de Elias Canetti, Raymond Queneau, Anthony Burgess, Ortega y Gasset, Winston Churchill e tantos outros). Ele faz seu personagem principal, Simon, deambular de Cap de Creus a Cadaqués, dali a Barcelona, justamente nos dias das manifestações contra ou a favor da independência da Catalunya, para encontrar, mas isso só nos últimos capítulos do livro, com seu famoso e dissimulado irmão. Esse encontro, em um hotel do Eixample barcelonês, funciona como um momento de auto-análise, uma sessão de psicanálise, uma interpretação do valor das palavras trocadas entre eles. Com bem diz um deles nestas seções finais do livro, "a paranóia é como o alho, deve ser usada com parcimônia". O livro termina enigmático, com uma palavra dita por Rainer para Simon, que lembra o final do "Cidadão Kane", de Orson Welles, e também termina com Simon perseguindo, pelas ruas coloridas de amarelo da Catalunha, uma esquiva Dorothy, que talvez fosse a mulher de Rainer, ou talvez não, vai saber. Vivemos todos sob um nevoeiro sem sentido. A literatura de ficção, Vila-Matas faz Simon enunciar: "gosta do passado e por isso corre o risco de não ser outra coisa que algo do passado". Sempre provocante, esse curioso e prolífico catalão. Vale!
Registro #1403 (romance #356) [início: 11/05/2019 - fim: 22/05/2019]
"Esta bruma insensata", Enrique Vila-Matas, Barcelona: Editorial Seix Barral Biblioteca Breve (Grupo Planeta) 1a. edição (2019), brochura 13,5x23 cm., 311 págs., ISBN: 978-84-322-3489-7
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