Dos quase trinta romances que Patrick Modiano escreveu não li nem metade, mas continuo curioso com seu método de contar histórias e o ritmo delas. Ele publicou seu primeiro livro no final dos anos 1960 e continua produtivo. "Ropero de la infancia" foi publicado originalmente em 1989, Modiano já era um autor experimentado e respeitado. A estrutura de suas histórias segue um padrão, mas ele sempre alcança surpreender o leitor e não o entendia. Em seus livros geralmente um encontro casual ou um objeto desperta num sujeito inusitadas associações e lembranças; geralmente esse narrador se interessa por uma mulher algo misteriosa, mas busca nela antes informações sobre outras pessoas ou fatos que o amor ou o sexo; geralmente o protagonista da história é um observador nato, alguém que é capaz de decifrar rapidamente o caráter de seus interlocutores; geralmente acompanhamos o narrador pelas ruas, bares e hotéis de uma cidade, em duas épocas diferentes, aquela da memória despertada e aquela da história que se vive. Encontramos tudo isso em "Ropero de la infancia". Um escritor vive exilado e incógnito, sob nome falso, em uma cidade portuária não identificada, provavelmente no Mediterrâneo. Faz calor, um calor que entorpece o entendimento das coisas, tudo parece acontecer no ritmo lento do verão tropical. Ouve-se um muezzin que chama os fiéis do alto de uma mesquita. O narrador esconde até do leitor as razões de sua saída de Paris e o abandono de uma promissora carreira como romancista. Ele vive de escrever um folhetim medíocre para uma emissora estatal de transmissões radiofônicas. Entende-se vagamente que ele se envolveu num grave acidente automobilístico no qual sua acompanhante morreu e que de alguma forma herdou muito dinheiro de uma mulher, mas provavelmente não se trata da mesma pessoa. Um dia ele é reconhecido por um jornalista mas se esforça para não revelar sua identidade. Ele ajuda uma garota que planeja sair daquela cidade, mas está em dificuldades financeiras. Essa garota lembra uma menina de quem ele se aproximou no passado pois queria no fundo se envolver com a mãe dela, uma atriz de teatro, sustentada por uma espécie de gângster. Ele associa as duas, garota e menina, a um mesmo revestimento de fundo, uma larga parede de veludo azul da qual ambas parecem brotar. Parece que ouvimos Isabella Rossellini cantar "Blue Velvet" quando lemos o livro. Modiano sempre nos lembra que o tempo é transparente para a memória, mas que as cidades e as pessoas passam por metamorfoses por vezes terríveis. Interessante.
[início: 10/02/2016 - fim: 12/02/2016]
"Ropero de la infancia", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama
de Narrativas #903), 1a. edição (2015), brochura 14x22 cm., 133 págs.,
ISBN: 978-84-339-7933-9 [edição original: Vestiaire de l'enfance (Paris: éditions Gallimard) 1989]
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