De Julio Llamazares só havia lido "El cielo de Madrid", sem muito entusiasmo. Lembro-me que o comprei logo no final de uma estadia em Madrid, há muitos anos e foi a capa, muito bonita, que chamou-me a atenção e os últimos euros daquela viagem. O mesmo aconteceu com "Distintas formas de mirar el agua", que comprei já no aeroporto de saída de Madrid, no final de fevereiro passado. Dentre todos os livros que estavam em exposição num quiosque esse capturou meu olhar (e também meus outros últimos euros, claro). Trata-se de uma narrativa calma, direta, na qual o leitor acompanha os pensamentos, o fluxo de consciência, de vários personagens durante o breve instante de tempo que é o final de uma cerimônia de despedida, o adeus de uma família às cinzas de seu patriarca, que são entregues às águas de um grande lago. Esse sujeito, Domingos, o morto, não se manifesta no livro. Em meados do século XX, durante o governo de Francisco Franco, ele e sua família (mulher e quatro filhos pequenos) são obrigados a sair das montanhas onde viviam por conta da construção de uma barragem e consequente inundação da região. O governo os transfere para um vale distante dali e eles recomeçam a vida dura de agricultores. Domingos e a mulher, Virginia, deixaram para trás, além da casa e demais equipamentos de sua fazenda, a tumba de um filho primogênito, morto ainda menino. Assim como a cidade, o cemitério e todos seus mortos ficam para trás, submersos. Llamazares dá voz, cada um a sua vez e em capítulos individuais, a mulher, aos filhos, netos e agregados à família de Domingos. Esses personagens/narradores falam de sua fibra, retidão moral, capacidade de trabalho e, também, de sua decisão de jamais retornar em vida ao imenso lago formado pela barragem. Os destinos de cada personagem se confundem com as transformações pelas quais passou a Espanha nos últimos cinquenta anos, da ditadura de Franco a redemocratização, da entrada na comunidade europeia a crise de emprego contemporânea. A memória como se desfaz, se esgarça, a cada geração algo se perde, se borra, é interpretado de forma sutilmente diferente. A ênfase do autor não está nas ações dos personagens ou nos fatos históricos vivenciados por eles, mas sim em seus sentimentos. Nada fica implícito, em algum momento um dos personagens explica um fato da trama que um outro havia esquecido para trás. Descobri depois que trata-se de uma história que brota da experiência pessoal do autor, que também nasceu numa região de Léon inundada por uma barragem. Tudo tem algo de autobiográfico na literatura. Assim como em "El cielo de Madrid" a história é bem contada, mas não há nenhum desafio metalinguístico ou estrutural no livro (Faulkner fez um homem morto falar em seu "As I lay dying"; Akutagawa fez cada personagem contar uma história radicalmente diferente do mesmo causo em "Rashomon"). Paciência. "Distintas formas de mirar el agua" é um livro honesto afinal de contas. E Llamazares parece nos lembrar algo das palavras de Proust: O mar não guarda vestígios dos trabalhos dos homens, o mar há de
consolar todo aquele cuja vida já passou dos primeiros aborrecimentos. Vale.
[início: 29/01/2016 - fim: 02/02/2016]
"Distintas formas de mirar el agua", Julio Llamazares, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones), 1a. edição (2015), brochura 14x22 cm, 196 págs. ISBN: 978-84-204-1917-6
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