sábado, 20 de fevereiro de 2016

lulu

"Lulu" é um romance de sonhos, de pesadelos, de extravagâncias e delírios, hipnótico, onde se oferece ao leitor uma descrição barroca e terrível do acerto de contas entre um sujeito e seu duplo, seu espelho, seu passado (se é que um acerto de contas desse tipo é possível, afinal somos definidos exatamente pela sucessão de metamorfoses que experimentamos ao longo da vida). Um escritor de trinta e poucos anos, Vitor, já respeitado e com uma obra consistente publicada, também professor universitário e casado, isola-se numa região montanhosa do interior romeno para escrever um novo livro, seu último relato, sua última narrativa. O que ele produz é uma longa carta, escrita para para ele mesmo, onde rememora os sucessos ocorridos em sua adolescência, durante um acampamento de verão, pouco tempo antes dele ser obrigado a cumprir o serviço militar (trata-se dos anos aterradores da ditadura comunista de Nicolae Ceausescu). Vitor amarga a clássica inapetência para a vida que quase todos os adolescentes em todos os tempos e lugares do mundo experimentam por algum tempo. Ambiciona tornar-se escritor e publicar seus versos. Nos dias de acampamento ele tenta ler seu Kafka (justamente "A metamorfose", que outro livro poderia ser?), solitário, isolado dos demais, mas acaba atraído pela dança e bebida, pela euforia, luzes e ruídos, passa a participar das brincadeiras e dos passeios com seus colegas, vê os corpos de muitos deles envolvidos nos jogos amorosos, mas nunca sente-se pleno, realmente acolhido naquele ambiente. Nas noites tem pesadelos, onde lembra de uma irmã já morta e reinventa as experiências do dia (a narrativa de Cartarescu lembra algo da decadência e esgotamento que encontramos no "Às avessas", do Huysmans, por exemplo). Um de seus colegas de colégio, Lulu, baixote e loquaz, domina as atividades coletivas daquele pequeno bando. Na últimas das noites no acampamento um concurso de beleza é organizado e Vitor vive ali algo que passará anos tentando resgatar pela memória voluntária, mas ao mesmo tempo sublimar através da literatura que pratica. Escrever sobre si, sobre Lulu e o acampamento é uma busca desesperada pela libertação daquelas memórias, daquela obsessão. Os outros livros do Cartarescu que li ("El rutelista" e "Las Bellas Estranjeras") são bons, cada um a seu modo, mas "Lulu" agradou-me mais, como pura invenção e fértil manipulação de um tema que no fundo é recorrente, conhecido: o despertar para os sentidos que ocorre na adolescência. Seguro que haverá sim mais Cartarescu por aqui. Vale. 
[início: 26/01/2016 - fim: 19/02/2016]
"Lulu", Mircea Cartarescu, tradução de Marian Ochoa de Eribe Urdinguio, apresentação de Carlos Pardo, Madrid: editorial Impedimenta, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm., 158 págs., ISBN: 978-84-15130-19-2 [edição original: Travesti (Bucarest: Humanitas), 1994]

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