É possível, como não?, que num futuro remoto um meteoro destrua partes significativas do planeta Terra, eventualmente a totalidade da América do Sul, o Brasil de norte ao sul, com todos os gloriosos pagos do estado do Rio Grande do Sul, inclusive os de nossa valorosa Santa Maria, cidade coração do Rio Grande e, com ela, a Universidade Federal de Santa Maria. Todavia, caso entre ruínas fumegantes e destroços seja um dia encontrado esse pequeno livro, essa plaquete de 50 páginas (e que ainda exista alguém que saiba ler português, claro!), a existência da UFSM estaria justificada. Que texto precioso encontramos aqui. Que notável capacidade de síntese encontramos nele. O texto principal é de J. M. Coetzee, um dos mais importantes escritores vivos, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 2003. Trata-se da transcrição de uma palestra de pouco mais de 50 minutos proferida por ele em Porto alegre em 2013, parte de um projeto cultural chamado LiterCultura. Coetzee fala de seu assombro ao descobrir, em 2002, de documentos onde os censores de seus primeiros livros avaliam e justificam a pertinência do deferimento deles para publicação. Coetzee sempre soube que havia uma máquina de censura em seu país, conviveu com ela boa parte de sua vida literária. O que ele registra na palestra é seu entendimento retrospectivo das razões que motivaram os censores a não impediram a publicação de seus livros. Ele percebe que recebeu um tratamento especial, incomum. Ele descobre que seus censores eram pessoas normais, não exatamente burocratas a serviço de uma ditadura, mas antes pessoas que viam a si mesmas como seres civilizados que cumpriam com zelo seu dever (ele não cita, mas há paralelos entre a auto imagem neutra destes com a obediência devida dos nazistas a seus oficiais superiores). Eles eram bons leitores, em certa medida eruditos, argumentaram oficialmente em suas planilhas de avaliação que os méritos literários dos livros de Coetzee eram grandes o suficiente para justificar a publicação, principalmente pelo fato dos prováveis leitores formarem afinal um público diminuto, educado o suficiente para não comprometer a estrutura social e política do país, não colocarem risco o Apartheid vigente. Coetzee descobre que vários destes censores eram pessoas de seu círculo social, não exatamente amigos, mas pessoas com quem vez ou outra privou de alguma intimidade. Ele, desde o início da carreira, um estudioso do tema, se debruça sobre o acaso de seus livros terem sido publicados e faz digressões poderosíssimas, que seguem seminais até terminar duro, ecoando algo do Lampedusa: "A verdade é que não existe essa coisa que chamamos de progresso quando se trata de censura - o pendor de identificar e atacar o objeto censurável é muito complexo e reside muito fundo dentro de nós. Quando nos é negado um objeto indesejado, encontramos outro. Quando mais as coisas mudam, mais se mantém as mesmas." Ulalá, como deve ter sido bom ouvir essa palestra, receber essas palavras pela primeira vez. Que sujeito! Mas a plaquete não se esgota com o texto de Coetzee. Especular ao texto transcrito da palestra encontramos um posfácio assinado por Kathrin H. Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, dois conhecidos especialistas em Coetzee (já registrei aqui um livro organizado por eles, o "Lendo J.M. Coetzee"). Kathrin e Lawrence apresentam os argumentos principais de Coetzee com tal clareza e riqueza de detalhes que mesmo o mais neófito dos leitores, o sujeito menos familiarizado com Coetzee e sua obra entenderá as muitas sutilezas e camadas de entendimento do texto. Que sorte teve a UFSM em poder editar esse livro e oferecê-lo a nós. Que alegria.
[início/fim: 23/04/2016]
"Sobre a censura", J. M. Coetzee, tradução de Lawrence Flores Pereira, organização e posfácio Kathrin H. Rosenfield e Lawrence Flores Pereira, Santa Maria-RS: Editora da UFSM, plaquete 11,5x16 cm., 55 págs., ISBN: 978-85-7391-251-7
Um comentário:
Nossa, você é bom mesmo, fiquei com nostalgia do coetzee que li e do que perdi no aeroporto, fui lá ler minhas impressões, e acabei querendo ler tudo de novo, e mais os trezentos que nem conheci ainda. Procurei a plaquete na edição cujo link você postou, mas não achei, domage.
grande abraço,
vera queiroz
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