O leitor deve estar sereno, preferencialmente até de bom humor ao ler um livro de Herta Müller, pois ela sabe nos incomodar, sabe nos cobrar atenção, sempre arrastando-nos em uma espiral de indagações. As hipocrisias e meias verdades ditas pelos homens não merecem perdão em seus textos. Ela fala do medo, da dor e da morte. Ela sempre parte explicitamente de sua experiência nos anos da ditadura de Ceausescu na Romênia, mas no final entendemos que é o homo sapiens sapiens contemporâneo, nós mesmos; é sobre a experiência humana atemporal que ela se preocupa, investiga e escreve. Em "O rei se inclina e mata" encontramos nove ensaios relativamente curtos (coisa de vinte páginas, quando muito). Em "Em cada língua estão fincados outros olhos" ela reflete sobre o tempo de aprendizado de uma língua; da força do silêncio na conversação entre indivíduos em contraposição ao ruído provocado por vozes que competem entre si; dos sons e significados das palavras que aprendemos. O texto que dá nome ao livro, "O rei se inclina e mata" dá conta de um processo expressivo utilizado por ela: a construção de poemas através da colagem de palavras recortadas de jornais e revistas. Através dessas colagens ela lembra dos mortos, nega poder ao rei/ditador de plantão, descobre em si a origem de todos os medos. Em "A flor vermelha e a vara" ela descreve sua experiência como professora em uma escola de séries iniciais (para crianças de 6 ou 7 anos). Herta se surpreende com a percepção de como mesmo em pessoas tão jovens a capacidade de destruição de um poder absoluto, opressor, já havia operado, já havia se consolidado. Os jovens são capazes de emular o comportamento autoritário sem esforço, mais perfeitamente que as pessoas mais velhas. Nestes três, assim como em cada um dos demais, Herta Müller desnuda facetas da lógica perversa de um grupo que se apropria do estado e o transforma numa ferramenta de dominação, pilhagem, sadismo e imbecilização em grande escala. Mesmo nos textos que descrevem os anos vividos na Alemanha ela consegue alertar para o risco de esquecermos depressa demais, perdoarmos por descuido um crime, uma traição, uma violência (que sempre continua, pois para muitos é natural que um homem oprima e destrua um outro homem). O texto que mais gostei é "O olhar estranho ou a vida é um peido na lanterna". Ela explica como desenvolveu o que chama de "o olhar estranho". Não se trata de um recurso literário bobo ou - como alguns escritores e jornalistas afirmam - uma espécie de ofício que distingue escritores e jornalistas das pessoas comuns, ou mesmo - como alguns artistas preferem - uma peculiaridade da arte, da sensibilidade artística, mas sim uma forma individual e necessária de monitorar, rastrear e contrapor-se ao autoritarismo (além de explicar o estilo literário dela, a forma que ela encontrou para se expressar literariamente). Nestes tempos onde os projetos canalhas de poder dos governantes de plantão e as aspirações da sociedade brasileira mostram-se inapelavelmente dissociados, contaminados por corrupção e mentiras, a leitura dos textos de Herta Müller, por mais custosa que seja, é um descanso na loucura, vale bem mais que só o pouco de saúde que prometeu o mestre Guimarães Rosa.
[início: 27/08/2014 - fim: 03/09/2014]
"O rei se inclina e mata", Herta Müller, tradução de Rosvitha Friesen Blume, São Paulo: editora Globo (coleção Biblioteca Azul / Prêmio Nobel de Literatura), 1a. edição 92014), brochura 14x21 cm., 213 págs., ISBN: 978-85-250-5397-8 [edição original: Der König verneigt sich und tötet (München: Carl Hanser Verlag) 2003]
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