Terminei de ler essa autobiografia de Nabokov ainda na semana passada, mas que dia melhor para falar dele que hoje, o dia do equinócio, dia em que começa a primavera (às 23h29min)? Assim será. Como o título evoca, "Fala, memória" é a versão - definitiva - das memórias de Vladimir Nabokov. No início de 1966 ele revisou o que havia escrito e publicado antes em revistas, mudou o título da primeira edição em livro (chamava-se "A prova conclusiva") e acrescentou um último capítulo (que é uma divertida resenha crítica de seu próprio livro, explicando o que ele entende ser os padrões temáticos de cada um dos quinze capítulos anteriores). Eles não foram nem escritos, nem publicados na ordem cronológica em que são apresentados agora no livro. O texto mais antigo é de 1936 (publicado na revista Mesures quando ainda morava na França) e os demais produzidos quando já vivia nos Estados Unidos, entre 1946 e 1951, publicados em revistas como The New Yorker, The Atlantic Monthly, Harper's Magazine e Partisan Review, antes da primeira edição em livro (também em 1951, pela Harper and Bros.). Os capítulos descrevem desde suas lembranças mais remotas, quando era pouco mais que um bebê (se é que isso é possível), até sua saída da Europa, em 1940, quando a segunda grande guerra começava. Nabokov nasceu no final do século XIX (22 de abril de 1899, no calendário ocidental), em São Petersburgo, filho mais velho de uma rica família russa (não exatamente nobres, mas seguramente muito ricos e poderosos). Em 1919, durante a revolução soviética, sua família e ele emigram da Rússia. Ele se instala primeiro na Inglaterra, em Cambridge, onde cursa a universidade, depois vive longos períodos em Berlin e Paris. Em 1940 emigra para os Estados Unidos, onde vive vinte anos, até 1961, para então emigrar uma última vez, para a Suiça, onde morre, em 1977. Se um sujeito quer entender o mundo e o estilo de vida que Nabokov vê desmoronar em 1917 recomendo fortemente o "História concisa da Rússia", que já resenhei aqui. "Fala, memória" flerta com o sombrio repetidas vezes, ao lembrar da opressão brutal e absoluta oferecida pelo bolchevismo (sonho de consumo de dez entre dez dos idiotas que estão de plantão no governo federal brasileiro, em seu projeto de retenção eterna do poder). Mas ao mesmo tempo é um livro repleto de passagens maravilhosas, em que o leitor imerge nos anos de formação intelectual de um sujeito que aprendeu a conhecer como se comportam os homens tanto em tempos de alegrias quanto em tempos sombrios. Associar vários dos capítulos com o ciclo proustiano "Em busca do tempo perdido" é mais que automático. O primeiro capítulo, onde encontramos as memórias mais remotas: de seu batismo, de seu pai sendo arremessado para o alto pelos servos, parece brotar de "O caminho de Swann"; o capítulo 12: onde ele fala dos anos de paixão por uma garota que ele chama de Tamara, ecoam "A prisioneira" e "A fugitiva"; o capítulo 6: onde ele fala dos dias numa praia francesa (Biarritz) lembra a Balbec de "À sombra das raparigas em flor"; o capítulo 14: onde a segunda grande guerra é eminente e o mundo parece mudar rapidamente, lembra a clarividência do narrador de "O tempo redescoberto". Claro que aquilo que é narrado, ou seja, a história de sua vida e lembranças, é algo muito interessante, mas é o estilo de Nabokov, a beleza das frases e as associações entre a natureza e os sentimentos dos homens que fazem a alegria do leitor. As imagens evocadas são realmente vívidas. Inspiradoras são as lembranças dos pais, dos tutores e babás, do primo Yuri, do irmão Sergey (que morrerá num campo de concentração alemão), de R.A.Butler (um político inglês que não entende a ameaça stalinista), dos anos deslizantes que antecedem a segunda grande guerra. Em algum momento do livro ele diz esperar um dia poder falar dos anos 1940-1960 passados na América do Norte, mas isso nunca chegou a acontecer. O livro é dedicado a sua mulher Vera, que aparece como interlocutora várias vezes (notadamente nos momentos difíceis, de decisões difíceis). Duas de suas grandes paixões: o Xadrez e a Lepidopterologia, mereceram longos capítulos (sua dedicação ao estudo e coleção das borboletas e mariposas rendeu-lhe reconhecimento acadêmico). Os quatro romances escritos em russo, quando vivia em Berlin e Paris, aparecem descritos marginalmente (ele utiliza um alter ego, que ele chama de Sirin, para falar destes livros). Já havia lido em ensaios de W.G. Sebald e Javier Marías onde as maravilhas desta autobiografia eram contadas, mas não tinha idéia de que iria me divertir tanto. A vida de Nabokov parece o ciclo lagarta e borboleta, não exatamente repetindo-se, antes como que metamorfoseando-se de vinte em vinte anos (em ciclos vividos na Rússia, Inglaterra/França/Alemanha, Estados Unidos e por fim Suiça). A Alfaguara fez bem em publicar essa autobiografia de Nabokov tão perto do início da primavera. Isso deu-nos tempo de nos preparar para essa revoada de borboletas (que são suas memórias e o desejo de ser compreendido, afinal).
[início: 07/09/2014 - fim: 16/09/2014]
"Fala, memória: uma autobiografia revisitada", Vladimir Nabokov, tradução de José Rubens Siqueira, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Selo Alfaguara (Grupo Prisa), 1a. edição (2014), brochura 15x23 cm., 327 págs., ISBN: 978-85-7962-313-4 [edição original: Speak, Memory - An autobiography Revisited (London: Victor Gollancz Ltd) 1951]
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