Em inglês o título é um tanto diferente ("There But For The"), mas "Suíte em quatro movimentos" não está mau. Ali Smith conta uma história curiosa que começa com uma ação amalucada, propositadamente artificial: um sujeito (Miles Garth) convidado de uma festa na Londres dos subúrbios sofisticados deste início de século abandona a mesa e a conversação e tranca-se no quarto de hóspedes de seus anfitriões. Assim como a corda que se dá a um relógio o coloca em movimento, esse gesto bizarro de Miles faz movimentar um grupo de personagens que pouco tem em comum. A metáfora do relógio me parece adequada, pois Ali Smith ambienta sua história na região de Greenwich, no sudoeste de Londres, famosa por ser o local do observatório por onde passa o meridiano zero, aquele que convencionou-se marcar a origem dos fusos horários e das medidas de longitude. A história de Smith, dividida em quatro capítulos, apresenta a repercussão do auto encarceramento de Miles. No primeiro (There) acompanhamos como uma amiga sua da juventude, Anna Hardie (ou Anna K.), com quem ele viajou de ônibus pela Europa nos anos 1980 é convidada pelo anfitriões (Genevieve e Eric Lee) para que ela o dissuadisse de continuar trancado no quarto. Mas ela nada sabe do sujeito, nunca manteve contato com ele, não tem a menor idéia de como seu número de celular está registrado nos contatos dele (e de resto não existiam telefones celulares quando eles se conheceram, trinta anos antes). Apenas lembra os sucessos da viagem dos dois, resultado de um banal prêmio estudantil. No segundo (But) Mark Palmer, o sujeito que convidou Miles para o jantar recorda os diálogos da festa e a razão de tê-lo convidado. Lembra também de sua infância, dos jogos verbais que sua mãe costumada fazer com ele. Lamenta a perda de um companheiro, que morreu recentemente. No terceiro capítulo (For) o que se narra são os pensamentos de May Young, uma senhora idosa que está hospitalizada e em vias de ser transferida, contra sua vontade, para uma casa de saúde. O leitor acompanha uma série de lembranças esparsas e fragmentárias: seu casamento, o nascimento dos filhos, a morte de uma filha, a morte do marido, a expectativa de fuga do hospital - com a ajuda de uma menina e uns gângsters (?!). No final do capítulo descobrimos que por alguma razão Miles Garth visita regularmente essa senhora. Ele pede a uma garota, através de um bilhete, que a senhora Young seja comunicada que ele não poderá visitá-la pois está trancado naquele quarto de hóspedes. O último capítulo (The) narra o entendimento destes sucessos por Brooke, uma garota jovem e inteligente, filha de um dos casais que participaram da festa dos Lee. Essa garota é a única personagem que interage com Miles e é através dela que sabemos que os Lee resolveram explorar comercialmente a presença de Miles, dando entrevistas e vendendo lembranças a multidão que passou a se reunir na vizinhança para espiar a pseudo celebridade encarcerada na casa deles. É uma história curiosa, repleta de jogos verbais, diálogos cifrados, um bom humor calmo (não histriônico). O livro é formatado de uma forma não convencional (justificado à esquerda). É um livro provocador. Apesar de eu me aborrecer algumas vezes com as pistas soltas e a indefinição sobre quem é mesmo aquele sujeito que resolveu trancar-se em um quarto ao final entendi que talvez seja sobre a solidão e as dificuldade de comunicação entre as pessoas que o livro trata. Tudo que se depreende de alguém tem algo de filtrado, de artificial, de condicionado pelas regras e convenções sociais (e por nossa segura auto-ilusão, claro). Há também no livro um jogo contínuo entre controle e caos, que é próprio da vida, mas que evitamos quase sempre discutir. Preciso ler mais coisas de Ali Smith para aprender a entender melhor suas proposições. Veremos.
[início: 20/08/2014 - fim: 25/09/2014]
"Suíte em quatro movimentos", Ali Smith, tradução de Caetano W. Galindo, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 287 págs., ISBN: 978-85-359-2423-7 [edição original: There But For The (London: Hamish Jamilton), 2011]
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