Foi um colega recifense, o Francisco Fernando, zootecnista dos bons, quem falou-me deste "As brasas" pela primeira vez, com entusiasmo. Estávamos os três, ele, Marlene Cristina e eu, numa tarde quente no sul de Minas Gerais, após uma missão acadêmica, quando livros e literatura entraram na conversa. Eu havia lido apenas um livro de Sándor Márai (o bom "A amante de Bolzano"). Trata-se de um livro compacto, muito bem escrito, cerebral - é a palavra que primeiro me ocorreu. A narrativa trata de uma questão de honra, de um jogo de máscaras sobre a amizade, da tensão quase sexual que existe entre amigos de longa data, das semelhanças entre orgulho e covardia, de uma discussão sobre a solidão e a incapacidade que todos temos de compreender completamente alguém (e mesmo compreender as motivações e desejos de nós mesmos). Escrito originalmente em 1942, "As brasas" permaneceu censurado na Hungria natal de Márai até a redemocratização do país, após o esfacelamento da União Soviética e a morte dele, em 1989. Muito do livro lembra aquilo que é escrito num tom épico e marcial no excelente "Marcha de Radetzky", de Joseph Roth. Afinal, o pano de fundo da narrativa de Márai é a letargia, a inação e decrepitude do Império Austro-húngaro, mas o livro não descreve essa decadência em detalhes, como no livro de Roth, mas sim trata de algo mais fundamental e definitivo para nós, homo sapiens sapiens, que é o amor e a nossa capacidade de amar, sobretudo quando esse amor é posto à prova. Um general aposentado recebe, após quatro décadas, um colega militar de quem foi muito próximo, tanto na juventude quanto na carreira, apesar de serem de classes sociais bastante distintas. O que o leitor acompanha factualmente é a noite de jantar e conversas entre esses dois velhos militares, em aposentos iluminados por brasas bruxeleantes e povoados por suas memórias vívidas e doloridas. A expectativa, ou antes, a certeza deste encontro foi a única razão para que eles continuassem vivos boa parte das quatro décadas de afastamento mútuo. Descrever mais da trama estragaria boa parte do prazer que encontramos no livro, por isso me calo. As digressões, ou antes, o congelamento do tempo narrativo alcançado por Márai, lembram as melhores passagens de Javier Marías, senhor das narrativas onde tudo é dito de forma elíptica, por ilações, onde tudo se esclarece, convence, lentamente. Como disse um amigo, livraço! Grato pela dica meu caro Fernando, inté uma próxima (vamos a ver se aquela ideia do carnaval prospera). Lembrei de outra cousa: Curiosamente tenho um amigo chamado Sandor, o Melo. Preciso perguntar a ele se há raízes húngaras em sua família.
[início: 11/05/2017 - fim: 01/06/2017]
"As brasas", Sándor Márai, tradução de Rosa Freire D'Aguiar, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras),
1a. edição (1999), brochura 14x21 cm., 172 págs., ISBN:
978-85-7164-954-5 [edição original: A gyertyák csonkig égnek 1942]
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