quinta-feira, 28 de julho de 2016

fim das coisas velhas

Com a confusão da mudança dos livros para o novo apartamento perdi/escondi coisas mas encontrei outras tantas que já computava inapelavelmente perdidas. Uma delas foi esse pequeno livro de poemas (que comprei num dia em que estive visitando don Frank e doña Valquíria em Caxias, já há tantos anos). Em 2010 Marco de Menezes ganhou o Prêmio Açorianos de livro do ano com esse seu "Fim das coisas velhas". Estão nele reunidos sessenta e um poemas divididos em quatro conjuntos. Os dezesseis de "torvelinho" são reflexões sobre o ofício do poeta, suas leituras e influências, exercícios de forma e ritmo; os onze de "os pátios" são poemas em geral mais curtos, sintéticos, onde cenas urbanas e simbólicas se alternam; já os dezessete de "como um peixe de parede" são versos que cantam a memória de quem vive numa cidade que não é aquela em que nasceu e que se esforça por guardar cousas de seu passado; por fim, em "ítaca, itaqui", estão reunidos os dezessete versos mais fortes (mais eruditos digo eu, na falta de uma definição melhor), que ecoam algo dos gregos, algo da dor e da morte. O efeito de todo o conjunto é realmente agradável. Marco de Menezes parece sem pressa, presta atenção a coisas simples que conta, do campo e da cidade, dos objetos do cotidiano, das gentes. É bom estar com tempo e calma para aproveitar livros assim. Vale.
[início: 16/05/2016 - fim: 17/07/2016]
"Fim das coisas velhas", Marco de Menezes, Porto Alegre: Modelo de Nuvem (editora Belas Letras), 1a. edição (2009), 11,5x18,5 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-63-05700-6

segunda-feira, 25 de julho de 2016

contos de duendes e folhas secas

Os contos de Sérgio Medeiros reunidos em "Contos de duendes e folhas secas" são muito criativos. Ele inventou histórias dirigidas ao público infantojuvenil que alcançam encantar também jovens mais velhos. Parecem aquelas histórias que fabulávamos para nós mesmos quando crianças (para matar o tédio num dia de chuva, ou provocados por uma tia brincalhona), rememorávamos ao contar para um irmão mais novo ou um avô paciente, depois confundimos com sonhos amalucados, mas que acabamos por esquecer quando crescemos muito ou simplesmente nos cansamos (só que o Sérgio parece não ter esquecido das histórias dele!). Em uma nota curta descobrimos que a inspiração de suas histórias veio da cosmologia dos índios guarani, todavia os seres inventados por ele (os "duendes coroados" do Paraguai, criaturinhas pequeninas, ubíquas e incontáveis, ou os "peixes-folhas" que querem nadar nas ondas de um mar) dão suporte para histórias de família; relatos intimistas, urbanos; conversas bem humoradas entre pai e filho, filho e avô, marido e esposa; contos que falam de relações de amizade e das descobertas partilhadas por pessoas que vivem próximas. Os personagens que ele cria estão sempre em movimento, em viagens, mas ou os tais duendes coroados ou os peixes-folhas sempre aparecem e interferem na rotina deles (ou brotam da imaginação coletivamente, como num jogo cujas regras apenas as pessoas que estão a jogar conhecem - não que as regras sejam exatamente rígidas). As narrativas sabem ser sofisticadas, escondem um leitor disciplinado, que lembra bem seu Câmara Cascudo, seu Lewis Carroll, seu Ovídio, seu Isaac Singer, seu Alejo Carpentier. Algumas imagens que surgem dos diálogos lembram o mundo mágico das pinturas de Chagall e de Klee. O tratamento gráfico do livro é muito bom e as ilustrações são assinadas por um sujeito conhecido como Fê. Ulalá. Esse sim é um livro que celebra a alegria de viver. Evoé.
[início: 19/07/2016 - fim: 24/07/2016]
"Contos de duendes e folhas secas", Sérgio Medeiros, ilustração de , São Paulo: editora Iluminuras (coleção Livros da ilha / divisão infantojuvenil), 1a. edição (2016), brochura 15,5x22,5 cm., 132 págs., ISBN: 978-85-7321-449-9

quinta-feira, 21 de julho de 2016

aforismos

Conheci algo de Karl Kraus através de Elias Canetti (especialmente seu segundo volume de memórias, "Uma luz em meu ouvido"). O leitor se assombrava junto com o jovem Canetti quando lia reproduzido tudo aquilo que ele ouvia nas palestras inflamadas de Kraus na Viena dos anos 1920, sobretudo o efeito inebriante que sua voz provocava na audiência, que o idolatrava incondicionalmente. Aos poucos Canetti se distancia daquele jorro de sedutoras palavras, entende bem os acertos e erros na forma de Kraus interpretar os complexos problemas europeus do período entre grandes guerras mundiais e rompe intelectualmente com ele (mas esta é outra história, que se pode acompanhar no já citado "Uma luz em meu ouvido" e também num outro livro de Canetti: "A consciência das palavras"). De qualquer forma Kraus é certamente um dos grandes mestres do gênero e influenciou gerações de escritores. Já registrei aqui alguns livros de aforismos, inclusive um ou dois do Canetti e um outro de um dos grandes estilistas brasileiros do gênero, o Daniel Piza. Neste volume editado pela Arquipélago estão reunidos uma boa mostra da produção de Kraus. A seleção e tradução é assinada por Renato Zwick. Não li o livro linearmente. Fiquei com ele por meses, sempre a mão, lendo aleatoriamente os aforismos, anotando alguns, testando eventualmente com interlocutores o efeito deles aos assuntos brasileiros contemporâneos (quase sempre não funcionaram, mais acostumados que estão boa parte dos brasileiros com jogos de palavras vazias, chistes estéreis ou mentiras, simplesmente). Nem todos aforismos aqui compilados são exatamente breves e sintéticos. Há alguns onde antes a linha de raciocínio e não apenas o conceito realmente importa. Seu interesse era vasto. Há reflexões sobre o mundanismo e a cultura, a política e os usos da linguagem, o direito e a filosofia, os ofícios públicos e a fé, a psicologia e a arte, a guerra e a literatura. Como em toda produção deste tipo há asserções que se contradizem automaticamente, pois foram conjuradas para finalidades e públicos distintos. Além disto pode-se imaginar também que diferentes pessoas possam interpretar cada frase ou parágrafo de forma diferente, pois a função do aforismo é perturbar as certezas do leitor (ou ouvinte) e essas certezas nem sempre são as mesmas. Em tempos turbulentos, agressivos e indigentes (como o que vivemos todos neste início de século) quase sempre é impossível definir algo que possa tornar-se consensual (e, de resto, a capacidade das pessoas pouco educadas refletir de forma independente sobre qualquer assunto é quase nula). Paciência. O livro inclui uma boa apresentação biográfica de Kraus e um curto glossário de nomes, lugares e expressões latinas. Bom livro.
[início: 10/09/2015 - fim: 02/07/2016]
"Aforismos", Karl Kraus, tradução de Renato Zwick, Porto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2010), capa-dura 14x21 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-60171-14-9 [edição original: Aphorismen: Sprüche und Widersprüche (1909); Pro domo et mundo (1912); Nachts (1924) / Schriften, Digitale Bibliothek Band 156 (Berlin: Directmedia) 2007]

sábado, 16 de julho de 2016

pomes penyeach

Neste último mês tive sim uma cota generosa de aborrecimentos, mas também pude descansar da loucura imergindo em meus livros, sem medo, sem temor. Logo após o Bloomsday, no último 16 de junho, resolvi continuar com as cousas do Joyce e ler os poemas reunidos em "Pomes penyeach". São treze pequenos achados, produzidos em Trieste, Dublin, Zürich e Paris, entre 1904 e 1924 (publicados originalmente em livro em 1927 pela icônica "Shakespeare and Company", de Sylvia Beach). Os poemas se deixam ler sem muitas dificuldades, as imagens que Joyce cria revelam um bom observador, mas não daquilo que está na superfície das coisas, antes sim do que é potência, possibilidade, destino. São poemas ligados a eventos de sua vida (a morte da mãe, a vitória do irmão em um evento náutico, sua vida difícil em Triste) mas o tom deles não é autobiográfico. Ele fala de uma flor que dá a sua filha; de alguém que chora um amor perdido; das águas calmas de uma fonte; de seus olhos glaucos, consumidos por uma inflamação; da solidão; de um pregador que grita na rua; de um pastor que leva seu rebanho pela colina. Nesta edição da Faber and faber (originalmente publicada em 1933) estão incluídos três outros poemas de Joyce: seu orgulhoso registro do nascimento do neto, Stephen Joyce, ("Ecce Puer", de 1932); uma sátira cruel sobre a Dublin literária ("The Holy Office", de 1904) e sua reação violenta à destruição da primeira edição de seu livro de contos, Dublinenses, ("Gas from a Burner", de 1912, onde ele não poupa vitupérios ao editor George Roberts, ao impressor John Falconer e a vários escritores irlandeses da época). Livros assim sempre fazem à alma um grande bem. Vale.
[início: 16/06/2016 - fim: 15/07/2016]
"Pomes penyeach", James Joyce, London: Faber and faber, 1a. edição (1991), brochura 12,5x20 cm., 32 págs., ISBN: 0-571-06630-3 [edição original: (Paris: Shakespeare & Co) 1927]

sexta-feira, 15 de julho de 2016

gotas de sicilia

Neste pequeno livro estão reunidas sete histórias curtas, sete causos. Todos têm algo de invenção e muito de memória, fundidos com competência por um sujeito que sabe bem seu ofício. Andrea Camilleri publicou-os originalmente entre 1995 e 2000 em um folhetim, o "L'Almanacco dell'Altana". O tradutor espanhol enfatiza o rico uso que Camilleri faz das variedades linguísticas sicilianas (algo obviamente perdido na tradução, mas que o leitor que conhece italiano pode conferir no link do L'Almanacco que transcrevi acima). Há um clima vago em todas elas, como se saíssem de livros de Borges ou Umberto Eco. A história mais antiga dá conta de acontecimentos de 1919 e mesmo a mais recente fala apenas de coisas do pós segunda grande guerra. Se a geografia siciliana define o cenário delas, os assuntos são variados. O leitor encontra um velho mafioso que discursa sobre seus tempos de glória e a eficiência calma de suas ações; conhece um extravagante médico que ensinou o narrador a amar os livros; acompanha uma procissão pagã que acontece em Agrigento em homenagem a são Calógero; ri do relato dos sucessos entre comunistas, monarquistas e democrata-cristãos em um domingo de Páscoa; investiga junto com o narrador como um sujeito fugiu de uma cidade durante uns festejos paroquianos; contrasta a moral de um ladrão contemporâneo com aquela dos velhos mafiosos; descreve a amizade de dois sujeitos que criaram uma modesta revista literária nos anos 1920. Segundo consta na apresentação do livro parte desses textos foram reutilizados em romances de Camilleri. Quem sabe um dia encontro com eles novamente. Vale. 
[início:23/06/2016 - fim: 05/07/2016]
"Gotas de Sicilia", Andrea Camilleri, tradução de David Paradela López, Madrid: Gallo Nero ediciones, 1a. edição (2016), brochura 11x16 cm., 108 págs., ISBN: 978-84-1652925-4 [edição original: Gocce di Sicilia (Roma: Edizioni dell'Altana) 2001]

quinta-feira, 14 de julho de 2016

tres desconocidas

"Tres desconocidas" conta um pouco da história de três garotas. Em um determinado momento da vida cada um delas toma uma decisão banal cujos desdobramentos talvez nunca imaginaram ser possíveis (como acontece na vida de todos nós, onde cada momento é mesmo potencialmente maravilhoso ou trágico, inevitável porém imprevisível, frívolo ou fundamental). A primeira delas é da região de Dijon, na Borgonha. Num dia de férias conhece uma mulher que mora em Paris que a convida para oportunamente visitá-la. Tempos depois ela aceita o convite, num dia em que imagina ser possível seguir em Paris uma carreira como modelo. A mulher com quem se hospeda tem amigos misteriosos, participa de festas com emigrantes sul-americanos. A garota não consegue o emprego que imaginava e se envolve com um daqueles sujeitos típicos dos romances de Modiano: homens que se hospedam em hotéis baratos, fazem longas caminhadas pela noite parisiense, se envolvem com negócios escusos na fronteira com a Suíça, frequentam bares da periferia, têm problemas com a polícia e um passado que preferem esquecer. A segunda história é de uma garota de Annecy, que mal conhece os pais pois vive em internatos, numa vida anódina, de contemplação. Num dia perde o ônibus que a levaria de volta para o internato e passa a noite na casa de um amigo de seu pai. Passa a gostar de encontrar desconhecidos à noite e a viver aventuras ao acaso. Começa a trabalhar em um hotel de luxo, primeiro como acompanhante de uma senhora idosa, depois como babá. Sua decisão de aceitar um trabalho numa casa de família em Genebra terá resultados desastrosos. A última garota é inglesa. Após romper com seu namorado decide sair de Londres e conhecer Paris. Um pintor que conhece na cidade oferece a ela acomodações em seu apartamento, pois pretende passar uma temporada na Espanha. A garota arruma um emprego qualquer mas logo se percebe acometida de algum tipo de síndrome de pânico, que a impede de usar o metro e a obriga a fazer longas caminhadas pela cidade. Eventualmente conhece um professor de filosofia que a contrata para transcrever livros esotéricos e depois acaba convidando-a a participar de uma seita. A curiosidade dela parece ser maior que o medo do desconhecido. Modiano cria em curtos parágrafos todo um cenário complexo, captura situações agudas, monta diálogos ricos que oferecem ao leitor algo do assombro daqueles que se enredam em algo terrível sem terem tempo de entender o que de fato acontece. As três garotas parecem borboletas que vagam impulsionadas pelos ventos, sem controle de suas ações e escolhas. Os mal entendidos, a improvisação e o acaso parecem ser aquilo que realmente nos define, aquilo que sutilmente determina o caos em nossas vidas.
[início: 23/06/2016 - 11/07/2016]
"Tres desconocidas", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #917), 1a. edição (2016), brochura 14x22 cm., 155 págs., ISBN: 978-84-339-7947-6 [edição original: Des inconnues (Paris: éditions Gallimard) 1999]

quarta-feira, 13 de julho de 2016

senhor augustin

Do alemão Ingo Schulze já li o bom romance "Adam e Evelyn" e os contos reunidos em "Celular" (mas não aquele que a crítica diz ser seu melhor trabalho, o romance "Vidas novas"). Noutro dia encontrei esse livro dele dirigido ao público infanto-juvenil. Vi que uma das personagens do livro chama-se Clara, como minha sobrinha, para quem costumava comprar livros deste tipo quando ela era ainda pequena. Trata-se de uma história delicada, sobre um velho senhor que com sua extravagância e ações inusitadas provoca reações rudes de seus interlocutores. Ele perde coisas (chaves, um chapéu, um guarda-chuva, amigos), mas não por muito tempo, pois "as coisas nos abandonam e depois voltam para nós", ele ensina. Quando comete um ato insensato, sabe se desculpar, e quando sofre um acidente sabe ver algo bom, que mitiga um tanto seu desconforto e dor. O senhor Augustin ensina que recebemos coisas mesmo antes de desejá-las, mas que há vezes em que só percebemos isso muito tempo depois de já tê-las perdido ou esquecido. As ilustrações de Julia Penndorf, também ela alemã, são muito bonitas (acho que são colagens de folhas de papel recortado e/ou rasgado). Interessante mesmo. Acho que a Clara vai gostar, mesmo sendo agora uma moça mais alta do que esse velho e cansado tio.
[início - fim: 04/07/2016]
"Senhor Augustin", Ingo Schulze, tradução de Irene Fehrmann, ilustrações de Julia Penndorf, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), capa-dura 25x30,5, 40 págs., ISBN: 978-85-7503-863-5 [edição original: "Der Herr Augustin" (Berlin: Berlin Verlag GmbH) 2008]

terça-feira, 12 de julho de 2016

el quijote de wellesley

Neste 2016 celebra-se os 400 anos da morte de Cervantes (o 400cervantes.es é um dos bons sites dedicado as comemorações que seguem ao longo do ano). A Alfaguara participou dos festejos com a publicação de um pequeno - e inédito - caderno de notas utilizado por Javier Marías num curso sobre o Quijote que ele ministrou no Wellesley College, no outono de 1984. Quem conhece a biografia de Marías sabe que ele morou em Wellesley quando ainda era recém nascido, pois seu pai, Julián Marías, havia conseguido uma posição temporária lá em 1951. Deve saber também que um dos autores aos quais Marías devota mais respeito, Vladimir Nabokov, também morou em Wellesley e também ministrou um curso sobre o Quijote lá (já escrevi aqui sobre isso no: "Curso sobre el Quijote"). As notas de Marías são bem mais sintéticas que aquelas de Nabokov. Correspondem apenas as anotações básicas que ele utilizava a cada dia e não a transcrição exata do material que era lido e desenvolvido nas aulas. De qualquer forma sabemos o formato do curso: as aulas começaram num 04 de setembro e terminaram num 06 de dezembro. A cada uma das vinte e seis aulas as alunas (pois o Wellesley é um colégio apenas para mulheres, cabe dizer) deveriam fazer a leitura dos capítulos indicados por ele, fazer comentários individuais e responder perguntas. A avaliação consistia em uma defesa oral sobre um tópico do livro, escolhido livremente pelas alunas, além da produção de duas monografias cujos temas foram escolhidos por Marías. Ele defende que o Quijote é o romance mais rico e complexo já escrito, talvez por oferecer uma miríade de leituras diferentes (e até contraditórias) ao longo do tempo. Mais do que a história propriamente, Marías enfatiza nas aulas os aspectos técnicos e temáticos, a sofisticada estrutura do livro, faz comentários sobre aqueles que, inseridos por Cervantes no livro (utilizando os distintos narradores), dão conta e justificam a forma dele narrar ou suas opiniões sobre a arte e a literatura. Nestes comentários Cervantes destaca as vantagens da ficção sobre a realidade, do romance sobre a história e joga com o leitor, que sabe tratar-se de invenções tudo o que está a ler, mas que é possível que as regras do ofício literário daquele autor talvez o obrigasse a fazer seus personagens defenderem ideias com as quais eventualmente não concordasse (todos estes temas são caros à Marías, que reiteradamente os explora em seus livros a ideia que mesmo a realidade deve ser inventada). Se as notas são breves (o livro mal tem cem páginas) os argumentos e defesa de seus pontos de vista são quase sempre seminais. Vale. É certo, um sujeito sempre aprende algo novo com Javier Marías.
[início: 16/06/2016 - fim: 01/07/2016]
"El Quijote de Wellesley: Notas para un curso en 1984", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2016), brochura 15x24 cm, 104 págs. ISBN: 978-84-204-2395-1

segunda-feira, 11 de julho de 2016

vidas ejemplares y otros cuentos

Já li vários livros de Mempo Giardinelli e de todos verdadeiramente gostei. Neste "Vidas ejemplares y otros cuentos" estão reunidos vinte e três contos, publicados originalmente entre 1981 e 2005 (a saber: oito na década de 1980; 10 na década de 1990 e 5 na década de 2000; alguns confesso já ter lido antes nas coletâneas "Luminoso amarillo" e "9 historias de amor"). Talvez o que defina essa seleção (feita por ele para o público argentino, privado que foi por muitos anos de seus livros, por conta dos desastres políticos, exílios e a pura e definitiva censura que flagelaram a Argentina), seja o tom confessional, o fato de quase todos tratarem de uma forma de autoficcção, que exalta vidas plenamente vividas ou narrativas onde pouco se lamenta ou exalta o acaso das coisas, antes se alegram, se encantam, com a miríade de formas honestas possíveis de viver neste mundo. Alguns contos lembram crônicas, testemunhos da realidade, mas quando em um determinado ponto da leitura deles percebemos o quão cinematográficas são as situações e quão perfeito é o controle do tempo das narrativas damo-nos conta que estamos no terreno da invenção, da ficção, e não no mundo real. Mesmo a releitura dos contos seis ou sete contos que já conhecia é satisfatória, pois com elas temos a chance de perceber matizes diferentes, nos familiarizar com soluções possíveis de uma conhecida história. Grande sujeito é esse Mempo. Seguro que haverá mais cousas dele por aqui (enquanto isso, divirta-se com o bom e completo site mantido por ele: mempogiardinelli.com). Vale.
[início: 22/05/2016 - 28/06/2016] 
"Vidas ejemplares y otros cuentos", Mempo Giardinelli, Buenos Aires: editorial Página 12, 1a. edição (2011), brochura 14x20 cm., 152 págs., ISBN: 978-987-503-566-9

domingo, 10 de julho de 2016

o homem do terno de vidro

Do Cláudio já li os bons causos e narrativas curtas reunidos em "Um arado rasgando a carne" e "O uniforme", fração pequena dentre talvez os quarenta livros que ele já publicou (ele, que também trabalha com edição de livros, não tem medo de distribuir gratuitamente versões em pdf dos seus: veja a lista aqui). "O homem do terno de vidro" ele chama de rimance. Trata-se de um experimento, de um relato que tem a fluidez da poesia com as divisões de uma peça teatral, as transições lentas e suaves de um álbum musical, assim como a estrutura de um hipertexto, repleto de grafismos, tipologias, ilustrações e vinhetas que cobram e desviam a atenção do leitor. O livro brota de um poema do Carlos Drummond de Andrade ("E agora, José?") que, cindido, apresenta e encerra três livros curtos (as tais quase-novelas do subtítulo). Esses três livros tratam da covardia, da teimosia e de um terninho de vidro, que eu entendo como autoilusão, autoengano. O narrador sempre é o mesmo, está num ônibus que trafega entre Juiz de Fora e Belo Horizonte, amarga alguma desilusão, reflete sobre seu passado e futuro. No primeiro ele parece hiper consciente de sua condição, com ironia e erudição, mas sem medo, sem temor. No segundo livro o sujeito parece falar com seu eu psicanalista e faz um balanço de suas escolhas, suas decisões. No terceiro ele se percebe no ônibus, se espanta com os demais passageiros como alguém faria ao saber-se na infernal barca de Caronte, sabe que está nu como o rei da fábula, mas ainda protegido por um terno de vidro, pensa na vida e em seu talento desperdiçado. Num anexo, uma espécie de coda, já fora do ônibus, aquele narrador-poeta percorre os últimos trechos de seu labirinto mental declamando um poema. É o tipo de livro que honestamente provoca o leitor. Muito interessante. 
[início: 01/06/2016 - fim: 22/06/2016]
"O homem do terno de vidro: rimance (três quase-novelas ou um quase-romance)", Cláudio B. Carlos (CC), São Paulo: Clube de Autores, 1a. edição (2013), 15x20,5 cm., 112 págs., sem ISBN

sábado, 9 de julho de 2016

terra do fogo

Quando viajo sempre procuro ler algo de um escritor local. Se na minha última andança por Fortaleza encontrei o Weaver e o bom catálogo de sua exposição, durante minha passagem recente por Teresina foi-me sugerido esse "Terra do fogo". Edmar Oliveira é um piauiense radicado no Rio de Janeiro, atua na área de Psiquiatria. Recentemente ele decidiu produzir um romance histórico com elementos de sua memória afetiva, uma autoficção com fragmentos de suas lembranças da região onde nasceu e das histórias que ouviu quando jovem. Acrescentou a essa decisão um bom tempo de pesquisa e o resultado é um livro compacto, bem escrito e que se defende bem sozinho, mas que também fica devendo algo em invenção, preso a cronologia e fatos da política piauiense e brasileira dos anos da ditadura Vargas. O narrador conta a história de uma mulher que sucessivamente encarna alguns dos papéis que a machista e misógina sociedade brasileira costumava (e costuma) reservar a todas de seu gênero: a que engravida por acaso de um sujeito que não é de sua classe social; a que é forçada a se casar por interesse familiar com outro, bem mais velho e já viúvo; a que posteriormente se enamora de um terceiro que é estrangeiro, sedutor e encantador, mas que ela só descobre desprezar quando o abandona; e a que se encanta com um professor comunista salvo por ela de uma prisão do Estado Novo e que lhe oferece um amor perene e calmo. O Brasil letárgico e controlado por coronéis subservientes ao ditador Getúlio se transforma no final dos anos 1930 e acaba sendo forçado a se alinhar aos norte-americanos, nos anos 1940. Os desdobramentos destas transformações deixam marcas nos indivíduos, destrói vidas e destinos. O leitor encontra descrições dos terríveis incêndios provocados nas casas da gente pobre da periferia de Teresina pelos donos do poder interessados ou numa oportunidade imobiliária ou no controle político dos demais cidadãos, mas o livro tem lá suas passagens líricas e também registros interessantes sobre as classes sociais e a cultura regional daquela época. O livro faz bom uso de uma alegoria, na qual o entendimento acertado de uma história se assemelha ao processo psicanalítico de autoconhecimento, de descoberta de nós mesmos. E a solução que o autor encontrou para resolver o grande impasse do livro lembra o final do Casablanca (filme do Michael Curtiz, de 1942), só que com sinais trocados. Solução que funciona e é divertida. Vale.
[início: 25/05/2016 - fim: 12/06/2016]
"Terra do fogo", Edmar Oliveira, Rio de Janeiro: Vieira e Lent Casa editorial, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 176 págs., ISBN: 978-85- 8160-023-9

sexta-feira, 8 de julho de 2016

rastros

Conheci virtualmente o Weaver há uns dois ou três anos. Tempos depois recebi dele "Seres Urbanos", uma antalogia de fanzines produzidos por ele e seus colegas no Ceará, na década de 1990 (e que ganhou o prêmio Miolo(s) de melhor livro de HQ em 2015, prêmio importante organizado pela editora Lote 42 e a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo). Desde o início dos anos 2000 ele tem se dedicado às artes visuais e tem participado de salões e mostras coletivas. Em 2011 ele iniciou um projeto de arte urbana, o RASTRO, cuja proposta permitiu a ele viajar pelo interior do Ceará e produzir grafittis e pinturas em espaços públicos e nas fachadas de casas particulares. A ideia não era apenas interferir graficamente no espaço urbano ou nas casas que conservam em sua arquitetura características típicas do sertão nordestino (principalmente o colorido vivo das fachadas, portas de madeira, marcos das janelas e platibandas - elemento arquitetônico muito antigo, gótico, cuja função é esconder telhado das edificações). Ele também  interage com a população das cidades que visita, conversa com os moradores, dá palestras em escolas e percorre as ruas das cidades distribuindo aleatoriamente obras originais de sua autoria (serigrafias ou pinturas, assinadas e numeradas, cujos temas são comuns às suas intervenções urbanas em grandes formatos). Esse esforço pela democratização da arte, que inventiva os moradores da cidade a participarem do processo criativo alcançou tão bons resultados que Weaver conseguiu patrocínio público para uma exposição individual na Caixa Cultural Fortaleza, que ficou aberta para visitação durante o outono deste 2016. Não vi a exposição, composta por aproximadamente uma centena de obras, entre painéis com grafites em grandes formatos, pinturas inéditas em tinta acrílica sobre tela, os moldes utilizados na produção, fotos e vídeos com os registros da  interação com a população nas cidades em que ele fez suas intervenções urbanas. Todavia, tive a sorte de encontrá-lo em sua definitiva Fortaleza e receber dele esse catálogo, onde estão reproduzidos boa parte do que poderia ser visto na exposição. O catálogo inclui dois textos longos, assinados por Juliana Castro e Luciana Rodrigues, nos quais são discutidos aspectos técnicos e conceituais do projeto. As imagens do catálogo contam e comprovam uma bela história. O povo cearense tem sorte de contar com um sujeito tão industrioso e talentoso. Em tempo: o projeto RASTRO continua. Ainda veremos os desdobramentos da ideia original e os novos caminhos trilhados pelo Weaver. Ojo.
[início: 10/06/2016 - fim: 05/07/2016]
"Rastros: Uma exposição de Weaver F", Weaver Lima, Fortaleza/Ceará: Caixa Cultural Fortaleza, capa-dura 16x21 cm., 184 págs., sem ISBN

quinta-feira, 7 de julho de 2016

una voz en la noche

Vigésimo-quarto livro da série Montalbano, "Una voz en la noche" garante bons momentos de leitura. Os truques de Andrea Camilleri são conhecidos: Montalbano sempre está as voltas com as trapalhadas linguísticas de Catarella; com o transtorno obsessivo de Fazio com os detalhes biográficos dos criminosos; com as delícias gastronômicas produzidas por Adelina ou Enzo; sempre faz uso da amizade com um jornalista ético para se contrapor aos planos de um jornalista canalha que trabalha para a máfia; sempre alimenta a tortura psicológica que é seu relacionamento à distância com Lívia; sempre faz uso de um elemento teatral ou onírico na trama. Todavia não é apenas a repetição dos métodos e situações que conquista a fidelidade do leitor. A inventividade das descrições, a complexidade da trama e a riqueza dos diálogos que ele cria dão relevo a uma literatura que, afinal, é produzida para entreter sem compromisso. Montalbano, no dia de seu aniversário, 58 anos, precisa resolver dois crimes aparentemente distintos: o assassinato da garota de um político importante e o suicídio de um comerciante. Montalbano é sobretudo um investigador, que sabe enxergar as camadas de verdade e mentiras nas histórias que ouve de suspeitos e vítimas, mas também é um sujeito que esquece, comete erros, sente o corpo e a mente cansados. A máfia operacionaliza um judiciário corrupto (que dá a alguns suspeitos um impenetrável foro privilegiado, nada com que um brasileiro já não esteja familiarizado), mata ou compra o silêncio das testemunhas. Entretanto não há problema ou dificuldade que seja obstáculo à determinação de Montalbano para solucionar o mistério dos dois crimes. Em uma curta nota no final Camilleri diz que esse texto foi produzido há muito tempo (a publicação original é de 2012) e que ele reconhece que algumas situações não se encaixam bem na cronologia dos eventos descritos nos livros anteriores de seu protagonista (a culpa é dos editores, sempre, ele avisa). Divertido, as usual.
[início: 23/06/2016 - fim: 25/06/2016]
"Una voz en la noche", Andrea Camilleri, tradução de tradução de Carlos Mayor, Barcelona: publicaciones y ediciones Salamandra, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 221 págs., ISBN: 978-84-9838-744-5 [edição original: Una voce di notte (Palermo: Sellerio editore) 2012]

quarta-feira, 6 de julho de 2016

história do mundo grego antigo

Esse bom livro foi projetado com a ambição de oferecer ao leitor não especialista um quadro panorâmico da história do mundo grego antigo. Não é uma tarefa fácil, claro, mas o resultado final é bastante satisfatório. Lefèvre, professor da Universidade Paris IV - Sorbonne, reconhecido especialista na área, argumenta que o adjetivo "antigo" é falho, pois somos herdeiros absolutos dessa cultura, tão viva e ainda próxima da nossa, rica e fascinante como poucas outras. Ele optou em apresentar essa história em quatro grandes blocos, associados a qualidade e a quantidade de registros confiáveis e/ou já estabelecidos pela crítica especializada. A primeira parte trata do Período Neolítico e da Idade do Bronze, antes do desenvolvimento da escrita alfabética; a segunda da Época arcaica, que vai do início do século XI (antes da era cristã) ao final do século VI (a.C.) ; a terceira parte trata da dita Época Clássica, que envolve as guerras contra os persas e a Guerra do Peloponeso, aproximadamente até o início do século IV (a.C.); e a quarta parte da Época helenística, que é o nome que se dá a difusão da cultura grega nos territórios conquistados por Alexandre (o Grande), a consequente adaptação dos gregos aos ritos das demais culturas com quem passam a interagir e o período de transição que termina com a afirmação do poderio militar romano, já no início da era cristã. O livro é repleto de fontes bibliográficas (que ele chama de orientações, pela quantidade e variedade delas), que auxiliam o leitor a procurar informações detalhadas sobre qualquer ponto que é apenas comentado no livro. O material iconográfico também é muito bom, reunindo reproduções de moedas, cerâmicas, mosaicos, pinturas, mapas, esculturas e resquícios das estruturas urbanas, templos e edifícios. Os capítulos não são estanques, a divisão não é rígida, Lefèvre repetidas vezes retoma argumentos que já havia discutido para ilustrar a evolução de um determinado tema ou assunto. Ele inclui também subcapítulos temáticos, que tratam das fontes primárias, problemas atuais de arqueologia, características geográficas, evolução da escrita, experiências políticas, aspectos religiosos e socioeconômicos. Uma detalhada cronologia auxilia o leitor a localizar rapidamente no livro os grandes temas, aqueles que imediatamente associamos aos gregos e a sua história, por menos que a estudamos ao longo da vida. Grande livro.
[início: 01/03/2016 - fim: 02/07/2016]
"História do mundo grego antigo", François Lefèvre, tradução de Rosemary Costhek Abílio, São Paulo: editora WMF Martins Fontes, 1a. edição (2013), brochura 16x23 cm., 486 págs., ISBN: 978-85-7827-749-9 [edição original: Histoire du monde crec antique (Paris: Librairie Générale Française / Livre de Poche) 2007]