terça-feira, 26 de abril de 2011

ven a buscarme

"Los enamoramientos", último romance de Javier Marías, foi lançado no dia 06 de abril. Ao encomendá-lo eis que vi este pequeno livro, "Ven a buscarme", parte de uma coleção da Alfaguara espanhola organizada por Arturo Pérez-Reverte. É um livro para crianças, mas que tem ao menos uma das marcas indeléveis de Marías: as histórias de fantasmas. Vejo também algo do fatalismo (grego, mas com tons shakesperianos, caros à Marías). Um jovem chamado Héctor e sua irmã menor, Marina, passam os dias de verão no campo, na casa de seus avós. A avó marca uma árvore na mata próxima a sua casa e indica que além dela os dois não poderiam brincar. Héctor ultrapassa este limite (este métron) e encontra uma caixa de metal enterrada na mata. A caixa guarda uma foto antiga de uma menina e uma carta onde esta menina, Celia, pede ajuda, pede um resgate, pois não quer abandonar o campo e ir viver na cidade. Héctor e Marina passam a procurá-la, com a ajuda da avó. O texto é inspirador, mas claro, curto, pois é pensado mesmo para crianças bem pequenas. As ilustrações do livro são muito bonitas, feitas por uma jovem madrilleña, Marina Seoane Pascual. O único defeito deste livro é ser curto. Paciência. Nota breve: Recebi este e outros livros via DHL e não pelos correios. Foram cinco dias úteis entre Madrid e Santa Maria. Incrível a eficiência. Enquanto isto os terríveis correios brasileiros teimam em nos impingir um serviço pedestre, primitivo, medíocre, que piora dia a dia. Este governo patético não entende mesmo nada de trabalho eficiente. Insuportável tudo isto. [início - fim 14/04/2011]
"Ven a buscarme: Mi primer Javier Marías", Javier Marías, ilustrações de Marina Seoane Pascual, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 1a. edição (2011), brochura 25x23 cm, 33 págs. ISBN: 978-84-20-40733-3

sábado, 23 de abril de 2011

entremilênios

Após a maravilha de ler "Signâncias", livro em homenagem ao poeta Haroldo de Campos, morto em 2003, fui a meus guardados resgatar um livro de originais seus que teimava em não se deixar ler. Aos livros parece agradar estes jogos de preparação do espírito do leitor. Sobretudo a poesia não se deixa ler facilmente quando não estamos com o humor adequado, não afinados às suas vibrações, não comprometidos com seu projeto. Pois "Entremilênios" reúne inéditos da última fase da produção poética de Haroldo de Campos. Nos últimos anos de sua vida ele dedicou-se a muitos projetos de tradução, atividade onde também era um mestre, mas sempre investiu tempo e energia criativa em suas criações originais. Após sua morte, Carmem P. de Arruda Campos organizou o vasto material com o qual Haroldo trabalhava e já preparava para edição. Ele nos apresenta cinco conjuntos temáticos. O primeiro é de poemas de louvor a amigos (amigos ainda vivos e amigos já mortos). Neles ele registra com generosidade o prazer da companhia e da memória deles. Sua poesia emula retratos vívidos destas pessoas e de suas obras. No segundo conjunto o tom já é de cólera, de indignação, de dor, de horror. Haroldo parece aborrecido com seu tempo, com os ecos de caos e guerra que já dominavam a passagem do milênio. Sua musa o impele a distribuir açoites, vergastar o mal, travestido de sábio melancólico. O terceiro conjunto reúne sobretudo poemas de viagem, poemas de amor e de morte, poemas dedicados a cidades. Como um grego errante ele vaga e faz com que o leitor acredite que está lendo a produção do poeta no momento e no lugar mesmo da criação. O quarto conjunto reúne onze poemas inspirados na Ilíada (que ele traduziu por dez anos e publicou em 2002). Ele chama os poemas de "leituras" da Ilíada. Os editores tiveram o bom tino de incluir em facsímile uma das páginas originais destas leituras. Além de correções, acréscimos, interpolações, vê-se nestes originais notas de rodapé que remetem as fontes primárias do ofício. A poesia não se faz apenas da memória, mas de um palimpsesto de idéias e leituras alheias. O último conjunto reúne material que talvez pudesse se encaixar em alguns dos três primeiros, mas que encontraram uma outra unidade entre eles mesmos. O mundo grego, mediterrâneo, luminoso e estival, que atrai o olhar dos homens, percorre estes poemas. Li alguns destes últimos poemas em voz alta, como se fosse um daqueles sujeitos que nos barcos a remo marcavam a cadência das remadas com o som de tambores. Com isto adiei um tanto ao inevitável fim do livro. Pena, mas tenho muitas das coisas antigas dele para reler, talvez já seja o tempo. A edição da Perspectiva é muito bonita e delicada. Seguro que Haroldo gostaria de ter visto este livro pronto. Felizes somos nós que temos a chance de voltar a ele sempre que uma presença grega se fizer necessária em nossas vidas. [início 22/03/2011 - fim 09/04/2011]
"Entremilênios", Haroldo de Campos, São Paulo: editora Perspectiva (coleção Signos, 48), 1a. edição (2009), brochura 15x20,5 cm, 254 págs. ISBN: 978-85-273-0848-9

quarta-feira, 20 de abril de 2011

signâncias

"Signâncias" é uma espécie de Festchrift, um livro honorífico, onde se canta e se louva a memória do grande poeta, tradutor, professor e pensador Haroldo de Campos, morto em 2003. A edição é muito bem cuidada e inclui várias fotografias e reproduçõs de capas de seus livros. São 16 ensaios (bem chamados de reflexões no subtítulo do livro). Eles são assinados por pessoas que conviveram, trabalharam e foram influenciadas por Haroldo: Aurora Fornoni Bernardini, Carlos Ávila, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Enrique Mandelbaum, Gênese Andrade, Jacó Guinsburg, Kenneth David Jackson, Leyla Perrone-Moysés, Luiz Costa Lima, Marcelo Tápia, Susana Kampff Lages e Yun Jung Im. Cada um destaca aspectos distintos de sua obra, recorta algo do rico universo crítico e poético construído por ele, cuja vida e carreira foi intensamente dedicada ao entendimento dos multi-bifurcados caminhos da poesia. Conhecido por ser tão industrioso e generoso quanto genioso e sanguíneo, o Haroldo de Campos que transparece no livro é sereno, seminal, sempre disposto a compartir seu tempo e erudição. Gostei especialmente da entrevista com Jacó Guinsburg (outro grande sujeito que merece ser lembrado e louvado). É fato: sobrevivemos um pouco na memória dos outros, particularmente na memória dos amigos. Adorável livro. [início 22/03/2011 - fim 09/04/2011]
"Signâncias: Reflexões sobre Haroldo de Campos", André Dick (organizador), São Paulo: Risco editorial, 1a. edição (2010), brochura 15,5x23 cm, 315 págs. ISBN: 978-85-6390-00-2

segunda-feira, 18 de abril de 2011

n.d.a.

Considerando os trabalhos individuais e as antologias Arnaldo Antunes já publicou uma dezena de livros. Ele é conhecido por seu protagonismo no ofício de experimentar com as formas poéticas. Nesta sóbria edição da Iluminuras ele nos apresenta três séries de trabalhos que compõe três unidades distintas, mas que interagem entre si. Há trabalhos que remetem a poesia concreta, ao Augusto de Campos, ao e.e. cummings, já outros lembram os poemas visuais (ou poemas objeto) de Joan Brossa. De qualquer forma ao final associamos todos eles a obra dele mesmo, inegavelmente um dos bons poetas brasileiros de nosso tempo. A primeira série de poemas, bem mais longa e mais antiga (e que dá nome ao livro), "n.d.a.", enfeixa poemas com imagens e elementos gráficos, além de experimentos que fragmentam os poemas até o limite de uma coluna, uma linha ou até uma única letra. Sempre me surpreendo com o efeito que a distribuição espacial das palavras nas páginas provoca. Me surpreendo também com coisas que poderiam ser denotadas artes plásticas, mas que colocadas ao lado de poemas como que roubam para si algo da musicalidade da poesia. Já a série "nada de dna" é mais recente (de 2006 em diante) e bem curta (toma aproximadamente apenas um quarto das propostas do livro). Nela Antunes alterna poemas curtos com poemas visuais e desenhos brincalhões que ele chama "hand made". Entre estas duas séries Antunes inclui um conjunto de fotografias que ele chama "cartões postais". São fotografias de lugares, placas, registros e anúncios urbanos. Fotografias reais, sem intervenção digital (acredito eu, sem conhecer bem a proposta) onde a palavra - bem mais as palavras, as idéias - ademais de inusitadas, parecem brotar espontâneamente. Um olho menos treinado as deixaria ali na paisagem, mas ele consegue ter o tino de registrá-las de alguma forma (fico a pensar se ele não tem uma legião de estafetas que recolhe estas coisas mundo afora). Mas é no conjunto que elas encontram a voz que não tem individualmente (por serem anônimas, claro). Desvelada por um autor forte, elas provocam o leitor a educar seu olhar. Enfim, "n.d.a" é o tipo de livro que não nos rouba tempo, passamos horas divertidas e prazerosas em sua companhia. Cousa boa. [início 25/03/2011 - fim 07/04/2011]
"n.d.a", Arnaldo Antunes, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2010), brochura 15x21 cm, 207 págs. ISBN: 978-85-7321-319-5

sábado, 16 de abril de 2011

tocata e fuga

Luís Dill é jornalista, autor de uma obra já extensa e respeitada. A maioria de seus livros focam o universo dos jovens e a literatura policial. Comprei por acaso este "Tocata e fuga", publicado de 2007. Vi o livro e como já conhecia seu nome resolvi experimentar. Ele explicita que o livro reúne contos policiais, mas eles contam uma história maior, cujo mosaico o leitor não tem muita dificuldade em decifrar. Todas as histórias recortadas tem uma cota generosa de violência, mas nada que um brasileiro vivo já não tenha experimentado, ouvido ou lido. Há inclusive uma certa contenção formal nas histórias. Dill, ao não adjetivar demasiadamente o texto, permite que sigamos sem enfado e algo curiosos as pistas que ele deixa. "Tocata e fuga" deve algo ao cinema, claro, como pode-se verificar revendo filmes como "Pulp fiction" ou "Short cuts", exemplos bem conhecidos de como cada detalhe de um causo banal pode ter maior relevância quando percebemos a verdadeira história que está sendo contada. É um livro que se lê com prazer. A violência não é discutida através de um personagem poderoso como o Bertran Tupra de Javier Marías (ando obcecado com ele, fazer o quê), mas transparece familiar e verossímil para o leitor destes tempos complicados. Vou procurar algo mais deste sujeito. [início 31/03/2011 - fim 04/04/2011]
"Tocata e fuga", Luís Dill, Rio de Janeiro: editora Bertrand Brasil, 1a. edição (2007), brochura 14x21 cm, 122 págs. ISBN: 978-85-286-1288-2

sexta-feira, 15 de abril de 2011

panelinha

Comprei este livro perto das festas de Natal. Quantos momentos festivos tivemos cá em casa desde então? Cada final de semana poderia ter ser sido uma festa, mas me contive e só cozinhei naqueles dias realmente especiais. Não usei apenas este "Panelinha", mas deixei ele por perto para animar e encantar os amigos. É um livro muito bem editado, principalmente a posição e o tamanho das fotos, que se integram ao texto e não competem com ele, como usualmente acontece em livros deste tipo. Afinal de contas é o texto que utilizamos para seguir as receitas e não as fotos, por mais bonitas que sejam. Gostei da forma com que ela apresenta variações, adaptações e alternativas às receitas clássicas (pois nem sempre temos os equipamentos e os ingredientes exatos para a elaboração daqueles pratos todos). O livro é resultado de uma experiência de dez anos, nos quais Rita Lobo interagiu muito com leitores de seu blog bem humorado. Blogs como o dela existem aos montes, mas de fato o dela é particularmente simples de usar e dá informações sem regatear e nem atulhar o leitor com muita propaganda. No livro ela inclui alguns dos posts originais e também mensagens com perguntas de seus leitores. A parte inicial, que inclui listas de alimentos básicos, ítens indispensáveis para a cozinha e conselhos nutricionais me agradaram particularmente. Sou um cozinheiro rebelde, que teima em incluir minhas obsessões gastronômicas nos pratos que preparo, mas fui obediente em ao menos meia dúzia das receitas que ela sugere, que testei e deram mesmo certo (mas pode ter sido apenas coincidência). Livros de culinária sempre atraem outros (comprei nestes dias mesmo os dois volumes do Mark Bittman (este é outro, que a exemplo de Rita Lobo, faz tudo com alegria e sabe sim se divertir na eterna luta contra o fogo na cozinha). [início 26/12/2010 - fim 06/04/2011]
"Panelinha: Receitas que funcionam", Rita Lobo, São Paulo: editora Senac São Paulo, 1a. edição (2010), capa-dura 24x31 cm, 400 págs. ISBN: 978-85-396-0052-6

quarta-feira, 13 de abril de 2011

a leitura e seus lugares

Soube da existência deste livro por conta de um post no twitter. O post era um RT (um retweet) irrelevante, lembro bem, mas voilá, rapidamente alcancei o autor original da frase que me interessou (Júlio Pimentel Pinto) e seu blog de crítica literária (o bom paisagens da crítica). Justamente por ter encontrado no blog várias resenhas boas de livros de Andrea Camilleri resolvi comprar este seu "A leitura e seus lugares", publicado em 2004. Júlio é historiador e professor universitário, especialista em Borges. Na verdade só comprei o livro por conta de um bloco de ensaios onde ele discute leituras de Marcel Proust, Bioy Casares e Andrea Camilleri mas, como acontece com os bons textos, acabei lendo o livro todo. O projeto confesso do autor, registrado em sua apresentação do livro, é “convidar a boas leituras num tempo em que pouco se lê e, inúmeras vezes, se lê mal ou se lêem coisas ruins.” Bueno. Não compartilho de seu otimismo em levar este projeto a bom termo, mas louvo sua persistência e dedicação (que podemos acompanhar em seu generoso blog). Acontece que costumo ser mais cínico e elitista, exatamente por não acreditar que em algum momento no futuro próximo uma fração maior da população brasileira desenvolva hábitos de leitura consistentes. Paciência. "A leitura e seus lugares" reúne doze ensaios. Quatro deles já haviam sido ao menos em parte publicados em revistas acadêmicas. Os demais, inéditos, foram trabalhados previamente em cursos de pós-graduação e seminários. Os ensaios são curtos e provocam, mais que convidam, o leitor a pensar. Eles são divididos em quatro conjuntos. Gostei particularmente do primeiro e dos textos sobre Proust e Camilleri no último. Nos três ensaios iniciais ele discute o papel da crítica (e usa um exemplo das artes plásticas, interessante associação); discute a construção de uma biblioteca pessoal (não a construção física, mas a que referencia e guarda memória de leituras); discute o papel central do leitor (de cada leitor individual, que faz associações, enxerga afinidades, vincula textos e tradições, de forma independente da crítica). Sua descrição da banalização provocada pela crítica (profissional ou amadora), onde se substitui o prazer único da leitura por generalizações advindas das leituras de terceiros é muito boa. A meu juízo boa parte destas leituras são eivadas pelo interesse imediato das editoras e pelo cabotinismo de quem as publica - como eu mesmo neste meu blog, claro. Um bom leitor tem de esforçar por construir sua própria interpretação dos textos. O segundo conjunto de ensaios trata de como opera o sentido de modernidade, literariamente falando, e da identidade cultural na América Latina (acho que o nome técnico disto são estudos das literaturas pós-coloniais, mas posso estar errado). No terceiro conjunto de ensaios Júlio Pimentel apresenta interessantes digressões sobre a obra de Borges (principalmente sobre a fronteira entre o autor forte que ele é e a mitologia literária que cerca sua memória). É um conjunto algo heterogêneo, mas que se defende sozinho. Pimentel publicou um outro livro, "Uma memória do mundo", onde fala apenas de Borges e sua obra. Vou procurar este texto um dia, mas antes vou voltar ao Andrea Camilleri e ao Javier Marías, ao Haroldo de Campos e ao Proust, claro. [início 22/03/2011 - fim 31/03/2011]
"A leitura e seus lugares", Júlio Pimentel Pinto, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2004), brochura 14x21 cm, 183 págs. ISBN: 85-7448-094-0

sábado, 9 de abril de 2011

harán de mí un criminal

Só conseguimos ler "Harán de mí un criminal", um livro quase sempre árido, onde são abordados temas terríveis, por conta do gênio de Javier Marías. Ele sustenta o livro com sua boa prosa, seu domínio da lógica, sua erudição. Ele age como se fosse Éaco, Minos ou Radamanto, senhores infernais que perscrutam a alma dos homens. No caso de Marías ele parece averiguar com seu texto quais de nós tem fôlego e tino para acompanhar seu sofisticado raciocínio até o fim. É um livro muito bom. Javier Marías reune 96 crônicas, publicadas originalmente na revista El Semanal entre fevereiro de 2001 e dezembro de 2002. Ele incluiu também uma crônica que foi censurada por seus empregadores e que provocou sua tempestiva saída da revista (desde 2003 ele publica suas crônicas no jornal El País). Sempre antecipando temas e tendências ele defende com contundência a democracia, condena o xenofobismo, aponta iniciativas e propostas fascistas, execra publicamente os regimes totalitários. Vários textos comentam os atentados do 11 de setembro de 2001 e os desdobramentos políticos engendrados naquele dia. Nas crônicas mais bem humoradas ele desmascara com sarcasmo os farsantes, ri do amadorismo da crítica e do mal jornalismo (disto estamos fartos também no Brasil), da arte ruim e artificial, convida o leitor a acompanhá-lo em questões da linguística, do uso da língua. Mais que entretenimento facilmente digerível (mal que acomete boa parte do que é publicado por articulistas nos jornais brasileiros) ele nos mostra como a imbecilidade reinante parece contaminar todos os setores da vida, sem remissão. Ainda tenho duas séries de suas crônicas para ler. Ouro fino, que vou guardar com cuidado. [início 14/03/2011 - fim 25/03/2011]
"Harán de mí un criminal", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 1a. edição (2003), brochura 14x22 cm, 319 págs. ISBN: 84-204-0019-X

sexta-feira, 8 de abril de 2011

ó

Ó, de Nuno Ramos, é um livro que cobra tempo e atenção do leitor, mas o recompensa generosamente. São 18 textos que podemos chamar displicentemente de contos ou de poemas em prosa, mas que carregam também algo da história de nosso tempo, de memória, de ensaio erudito e de invenção. Li em uma entrevista que ele chama este seu trabalho de "um misto de poesia com ensaios amalucados", algo entre a poesia e o pensamento. Há personagens e um narrador, mas o que enfeixa e é perene nos contos são as manifestações corpóreas dos seres humanos (como se ele pretendesse registrar com palavras o corpo físico mais que a alma das gentes, especialmente aquilo que existe nelas de pré-verbal, de pré-linguístico). Ou ainda, vamos a ver, como se ele pretendesse fazer um "o corpo fala" poético. Cada conto tem uma "teoria", um pensamento central: teorias da linguagem, do teatro lento, do comportamento em grupo, dos sonhos, do erotismo, do corpo orgânico, do estranhamento e do envelhecimento. Mas os contos não são monotemáticos. Eles se fragmentam em outras histórias, que dialogam, se complementam. Há histórias que incluem fragmentos de sonhos, que se não são terríveis, impressionam pela vivacidade. Além dos contos ele inclui sete textos em itálico chamados de "ó" (primeiro, segundo e assim por diante). Estes textos são mais enigmáticos, funcionam como cantos elegíacos, mas não sabemos elegíacos em relação a quem ou ao quê (ao corpo talvez). É como se houvesse uma "radiação de fundo" preenchendo todo o texto, radiação que vaza nestes "ós". Idéias que não se condensaram em textos, ainda vagam pelo ar. Gostei das metáforas que ele cria e das imagens fortes que ele provoca. Identificar cada um de nós como "herdeiros, proprietários, de um corpo cuja escritura foi lavrada com medo e tédio" é algo que obriga o leitor a pensar com o que faz, com o que se envolve, que planos tem, que sonhos tem. Este "Ó" e "O vidraceiro cego", que terminei de ler semanas atrás, são dois bons livros mas o "Ó" me parece mais poderoso, mais fundamental. [início 20/10/2010 - fim 20/03/2011]
"Ó", Nuno Ramos, São Paulo: editora Iluminuras, 1a. edição (2008), brochura 13,5x18 cm, 285 págs. ISBN: 978-85-7321-290-7

quinta-feira, 7 de abril de 2011

os da minha rua

Ondjaki (ou ondjaki, em minúsculas, como e.e.cummings) é um jovem escritor angolano, de pouco mais de trinta anos. Apesar de jovem tem um obra já numerosa e seus livros têm alcançado sucesso de crítica nos últimos anos. Este é o primeiro livro dele que tive a chance de ler. Ele chama o que incluiu no livro de "estórias". Para mim são mesmo causos travestidos de contos. Nunca se pode confiar no que diz ou escreve um escritor sobre sua obra. A biografia vaza quando encapsulada na ficção. A invenção domina quando o escritor pensa explicitar fatos. Nunca se sabe. Ondjaki narra 22 histórias curtas em torno de uma juventude que brota. Acompanhamos os familiares, os amigos do bairro, as meninas da escola, os pais amorosos, o tio estranho, os vizinhos da rua, as descobertas do mundo de um narrador arguto. Seu texto traz palavras e construções que nosso português brasileiro sabe algo estravagantes, mas que demonstram exatamente o vigor de um autor que já conhece seu ofício. Como é curioso saber em Angola se come "manga com sal", que se pode pintar com "aguarela", que a infância lá tem ritmos similares aos nossos. A presença brasileira se dá através das novelas (pobres angolanos, não sabem o azar que têm). As pequenas tragédias nunca cessam. O narrador fala de uma viagem de férias à Naníbia, das cicatrizes da guerra civil, das vizinhas muito míopes que precisam de uma operação delicada nos olhos, da presença cubana através dos professores na escola (camarada professor ele os chama, que patético). As histórias se passam no início dos anos 1990. O narrador deve ter uns 12, 13 anos. A cota de desgraças de Angola não contamina este livro (como faz com vários daqueles que li do Agualusa por exemplo, editados por esta mesma Lingua Geral). Talvez a geração de Ondjaki seja exatamente aquela dos que tiveram a sorte de já ver o país sendo reconstruído, difícil dizer, pois antecipar felicidade e paz nos países africanos só pode ser um desejo irrefletido. Os causos terminam quando os pais do narrador decidem emigrar para Portugal (uma nova etapa da guerra civil parecia estar se iniciando, os realmente jovens devem ser poupados destes azares). Apesar de seu exotismo parecer-me demasiadamente artificial, construído mesmo, procurarei mais coisas deste sujeito. Bueno. Este livro ganhei da Tânia, amiga querida, mas ela não sabe (pois foi com um cheque livro que ela me presenteou). Detalhes. [início 17/03/2011 - fim 19/03/2011]
"Os da minha rua", Ondjaki, Rio de Janeiro: editora Língua Geral (coleção Ponta de lança), 1a. edição (2007), brochura 13x18 cm, 164 págs. ISBN: 978-85-60160-23-5

quarta-feira, 6 de abril de 2011

o chapéu de três bicos

Há uns dez anos don Renato Cohen, sua princesa consorte à época e eu fomos ao teatro (peça terrível, pois lembro-me que dormi quase o tempo todo, em meio a um mar de gargalhadas, mas esta é outra história). Antes da peça, enquanto estávamos ainda na longa fila para entrar, conversávamos animadamente. Eles contavam sobre os planos para mudar de apartamento, eu histórias de minha recente estada na Espanha e dos livros que havia adquirido por lá. Quando citei haver encontrado uma edição bilíngue muito boa do Lazarillo de Tormes eis que fui corrigido em um detalhe banal - discreta e educadamente, cabe dizer - por um senhor que estava logo atrás de nós na fila. Ele falou com autoridade sobre o Lazarillo e também sobre Cervantes e as cousas da Espanha. Apresentou-se e conversamos um bom tempo. Era don Julio Garcia Morejón e entre outras maravilhas nos disse que havia acabado de traduzir uma história tradicional espanhola chamada "Chapéu de três bicos" e que nos enviaria um exemplar caso tivéssemos interesse. Trocamos cartões e eis que após um par de semanas recebi este "O chapéu de três bicos". Lembro-me de ter folheado o livro displicentemente quando o recebi, envolvido com outras coisas como estava. Semanas atrás, ainda no estival início de 2011, o Fernando Landgraf contou-me sobre sua aquisição de um legítimo "chapéu de três pontas", um desejo de juventude. Um gongo ressoou por meus neurônios e não sosseguei enquanto não encontrei meu exemplar do livro presenteado por don Julio nos guardados de minha biblioteca. Li "O chapéu de três bicos" com muita alegria. A edição é bem cuidada, bilíngüe, repleta de notas, com uma boa introdução assinada por Julio Morejon, uma completa bibliografia e uma detalhada cronologia de seu autor, Pedro Antonio de Alarcon. Publicado em 1874 este livro registra uma versão de uma história tradicional, onde se descreve os sucessos do amor alegre e ingênuo - mas forte - entre pessoas simples do campo. Um moleiro andaluz chamado Lucas é casado com uma bela navarra chamada Frasquita. Os homens da região, principalmente os mais poderosos, como o prefeito e o corregedor (uma espécie de magistrado judicial do rei), sempre se fazem presentes no moinho de Lucas durante as tardes de verão, pretensamente por cortesia, mas na verdade por cupidez. Lucas e Frasquita confiam na força de seu amor e gerenciam, com cumplicidade, bom humor e picardia, o assédio que Frasquita sofre. O corregedor imagina uma forma de alcançar o prêmio de uma noite a sós com Frasquita, provocando reviravoltas e confusões incríveis, principalmente associadas a quem, a cada vez, faz uso de um chapéu de três bicos (um chapéu deste tipo era o emblema oficial das autoridades constituídas na época em que se passa a história). Os imbroglios acabam se resolvendo apesar da tensão inicial. Tudo é muito divertido. Trata-se de um texto moralista e ingênuo, claro, mas que conta vividamente algo de um grupo social que ainda hoje pode ser encontrado em grotões (nem tão distantes assim) mundo afora, Brasil afora. Finda a história tudo volta a configuração inicial, inclusive com as eventuais visitas ao moinho nos finais de tarde. E como todo modismo o tempo faz com que o uso do chapéu de três bicos fosse substituído pela moda das cartolas. Mas nesta época Lucas e Frasquita já eram dois velhos - dois velhos ainda enamorados. Gostei de ter lido este livro, principalmente por relembrar de don Julio Morejon e sua generosidade. Lembrei-me que ele havia nos convidado para visitar a coleção de Quixotes que sua universidade mantinha, coisa que não fiz, ai de mim. Paciência. Neste ano voltarei a ler o Quixote e a lembrar das planícies vazias da Espanha, das cores e das rochas daquele lugar. Ya veremos. [início 28/02/2011 - fim 18/03/2011]
"O chapéu de três bicos", Pedro Antonio de Alarcón, tradução de Julio Gregório Garcia Morejón e Manoel Dias Martins, São Paulo: editora CenaUm (Centro Universitário Ibero-Americano), 1a. edição (1999), brochura 16x23 cm, 275 págs. ISBN: 85-86356-20-4 [edição original: El sombrero de tres picos (Espanha) 1874]

segunda-feira, 4 de abril de 2011

um dia de chuva

O ideal seria ler este "Um dia de chuva" também em um dia chuvoso e escuro. Neste pequeno livro Eça de Queiroz conta uma história de amor calma e contida, primeiro o amor por uma idéia (a de visitar o campo), logo o amor por um lugar (as serras e seu casario), e por fim o amor por uma mulher (da qual ouvimos histórias, mas nunca a voz). Um sujeito entediado com Lisboa viaja a região de seus pais, interessado em adquirir uma quinta (uma propriedade rural). Apesar de não ser muito distante de Lisboa ele tenta levar uma considerável bagagem da qual Eça providencialmente o faz separar-se ainda no trem. Isolado na casa paroquial desta cidade da província, ele passa os dias assuntando com um padre a eventual compra de um velho casarão. Mas o tempo está inclemente, chove o tempo todo. Os dias de chuva são vencidos com conversas mundanas com o padre que o acolheu, ouvindo histórias das famílias da região e tomando caldos fortes. Ele se interessa particularmente pela fotografia de uma menina, justamente a filha do dono da quinta que lhe interessa comprar e quando a conhece, no meio de um passeio de charrete, já está apaixonado. A menina como por mágica cessa os longos dias de chuva. Lisboa é abandonada como um sonho distante e mau. O enredo é simples, delicado, mas realmente tem o poder de encantar o leitor por um par de horas. Na edição consta que este conto foi estabelecido por Beatriz Berrini, conhecida especialista em Eça de Queiroz. Nestas notas ela registra que parte do texto original se perdeu, portanto seu trabalho é baseado na primeira edição póstuma das obras de Eça. Talvez um pequeno prefácio pudesse ajudar um leitor mais obcecado em entender detalhes de sua origem. Paciência. O livro é ilustrado por Eloar Guazzelli, correto como sempre. [início 14/03/2011 - fim 17/03/2011]
"Um dia de chuva", Eça de Queiroz, ilustrações de Eloar Guazzelli, editora Cosac Naify, 1a. edição (2011), capa-dura 16x23 cm, 56 págs. ISBN: 978-85-7503-907-6

sábado, 2 de abril de 2011

à espera do tempo

Este belo volume de "À espera do tempo" foi lançado pela Cosac no ano passado em parceria com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ele é composto originalmente de uma série de relatos produzidos para divulgar as atividades de uma companhia de vídeos japonesa nos anos 1990. Por conta disto talvez seja um exagero dizer que este livro é exclusivamente uma homenagem ao trabalho de Kurosawa. Teruyo Nogami trabalhou diretamente com ele por muitos anos, mas seu livro enfeixa memórias esparsas de vários outros ícones da industria japonesa de cinema. Nos primeiros ensaios ela fala de Mansaku Itami, seu mentor e importante diretor cinematográfico da primeira metade do século passado. Esta primeira parte é confusa e muito repetitiva, mas funciona para registrar o respeito que ela e os de sua geração tinham por Itami. Não apenas nestes ensaios iniciais, mas em todo o livro há uma profusão de nomes de profissionais que um sujeito pouco familiarizado com o cinema japonês não tem como reconhecer. Nos ensaios mais robustos do livro ela fala de como a sorte levou-a a trabalhar diretamente com Kurosawa (como script-girl, ou seja, continuísta, em todos seus filmes a partir de Rashomon). Ela lembra sua obsessão com o roteiro e com a pintura (ele era um respeitado ilustrador), conta causos, histórias por vezes tensas, outras vezes engraçadas, do dia a dia de filmagens das produções com as quais Kurosawa se envolveu. Fala de seus prêmios e de sua notória irascibilidade. Acompanhamos os relatos das dificuldades técnicas, discussões e oscilações de humor que todos os que participam de uma atividade coletiva como o cinema conhecem bem. Ela registra também histórias de vários atores, entre eles Toshiro Mifume. Nos ensaios finais há a inevitável lista de colegas mortos e o relato da morte de Kurosawa. O livro inclui uma filmografia completa de Kurosawa (realmente muito boa). É um livro muito irregular, mas tem seu valor, pois de fato foi escrito com lealdade e paixão, algo que não podemos simplesmente descartar nestes tempos tão hipócritas. [início 08/03/2011 - fim 15/03/2011]
"À espera do tempo: Filmando com Kurosawa", Teruyo Nogami, tradução de Diogo Kaupatez, editora Cosac Naify, 1a. edição (2010), capa-dura 16x23 cm, 320 págs. ISBN: 978-85-7503-919-9 [edição original: Tenki Machi, Bungei Sunju (Tóquio) 2001]

sexta-feira, 1 de abril de 2011

how fiction works

Soube deste pequeno livro através do Daniel Piza, talvez ainda no natal de 2008, mas não me preocupei em comprá-lo naquela época. Acabei encontrando "How fiction works" mais recentemente, em uma tarde estival, paulista, acompanhado de don Renato Cohen e discutindo livros. Li o bom texto de James Wood entrecortando o tempo com outras cousas (como sempre acontece afinal de contas). O inglês de Woods é relativamente fácil, entretanto ele usa vez ou outra uns termos que só meu arsenal de dicionários e alguma invenção lograram decifrar (se é que consegui fazê-lo certo, confesso, pois há que se considerar que teoria literária não é exatamente minha seara). O livro é dividido em dez capítulos, mas cada parágrafo, focalizado em uma idéia ou conceito, é numerado. Isto facilita localizar posteriormente um argumento qualquer dele. Trata-se de um livro bem objetivo. Serve-se de exemplos do que há de melhor na prosa: Flaubert (principalmente) e Henry James, mas passando por Nabokov, Bellow e Joyce, Proust, McCarthy, Foster Wallace, Roth e Sebald, entre uma miríade de citações. Ele consegue não deixar o livro tornar-se pedante e/ou demasiadamente acadêmico. No final incluiu uma lista com os quase cem títulos citados - até aqueles que o foram apenas episodicamente. Qualquer programa sério de leituras certamente acolheria este cânone sem maiores problemas. Ele levanta questões interessantes sobre a dose certa de artifício e verossimilhança que toda criação literária pode aspirar alcançar (isto sem cair na vala comum do realismo, que não é o tipo de ficção que possa se prestar a ser lida neste início de século). Não é, nem de longe, um livro para amadores ou beletristas, leitores que se contentam com ler apenas o que é oferecido pelo cardápio literário contemporâneo, ou aqueles que leem por encomenda, sem maturidade. O que ele parece dizer é que há autores que um sujeito que preze a literatura não pode se furtar em ler, pois é através da leitura destes bons livros que, primordialmente, inferimos o quê realmente importa na vida, nas questões morais e nos homens. Seu argumento original aspira emular o que John Ruskin fez com o desenho e a pintura em "The elements of drawing". Por fim, cabe registrar que um inglês como ele tem de ter coragem para escrever: "The english language is a van cousin of the french language". Ulalá. Vou procurar outras coisas deste sujeito. Belo projeto de interpretação, belo livro. [início 12/01/2011 - fim 14/03/2011]
"How fiction works", James Wood, Great Britain: Vintage Books U.K. (Random House Group), 1a. edição (2009), brochura 13x20 cm, 194 págs. ISBN: 978-1-845-95093-4