sábado, 28 de janeiro de 2012

medeia

Medeia (Μήδεια) é uma peça de Eurípides que foi apresentada pela primeira vez no ano 431 AC. A história é terrível e já inspirou muitos autores nesses quase 2.500 anos (boa parte dos mitos gregos já estão tão amalgamados à cultura popular que um sujeito pode até saber algo do que se narra em uma história sem saber das fontes originais). A edição (bilíngue) da editora 34 é impecável. O industrioso Trajano Vieira assina a tradução, um bom posfácio e generosas notas. Um pequeno texto de Otto Maria Carpeaux, que descreve possíveis leituras possíveis do drama, é incluído na edição. Não é uma leitura fácil, mas o texto ainda é capaz de impressionar um sujeito. Medeia é uma princesa/feiticeira que destrói tudo a seu redor ao menos duas vezes. A primeira é por amor, quanto ajuda Jasão e os argonautas na Cólquida (mais ou menos onde hoje é a Geórgia, ex-república soviética). Mas o que é descrito na peça de Eurípides se passa uns dez anos depois dos sucessos da busca de Jasão pelo velocino de ouro (Robert Graves já nos ensinou que este mito deve estar relacionado com pelegos de ovelha que eram utilizados no garimpo de ouro nos rios da região da Cólquida, mas esta é outra história). No texto de Eurípides Jasão é recebido pelo rei de Corinto, repudia seu relacionamento com Medeia e promete se casar com Glauce, a filha do rei Creon. A fúria de uma mulher desprezada nunca pode ser subestimada (principalmente de uma que é sobrinha da feiticeira Circe). Medeia vinga-se da injúria de Jasão matando Glauce, Creon e os dois filhos que teve com ele, fugindo de Corinto e se fixando em Atenas, onde se casa com o rei Egeu. Como em todo mito poderoso a leitura pode gerar muitas interpretações. Medeia não está louca ou transtornada quando mata os filhos. Tudo é premeditado e calculado, como parte de sua vingança. Jasão tenta ser pragmático, político, só vê os aspectos positivos de sua aliança com o rei Creon, até imagina um arranjo onde Medeia continuaria como sua concubina (quando um homo sapiens sapiens se imagina moderno neste início de século XXI eis que um mito qualquer o lembra do quão perene são as vaidades e pulsões humanas). Gostei muito dos personagens secundários, Nutriz (uma ama-de-leite), Pedagogo (o preceptor dos filhos de Medeia) e Coro (que faz a mediação entre o que está fora da peça com o que é descrito nela). Medeia é uma peça sombria, plena de um feminismo militante, incrivelmente adaptável à atualidade. Os gregos sempre tem algo a dizer para um sujeito. Em breve vou experimentar o Agamêmnon, de Ésquilo. Vamos em frente. [início 02/01/2010 - fim 27/01/2010]
"Medeia", Eurípides, tradução de Trajano Vieira, editora 34, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 191 págs. ISBN: 978-85-7326-449-4 [edição original: Μήδεια Atenas (Grécia) 431AC]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

demasiada nieve alrededor

Javier Marías reúne em "Demasiada nieve alrededor" 96 crônicas, publicadas originalmente na revista El País Semanal entre fevereiro de 2005 e fevereiro de 2007. São um misto de crônicas, reflexões e ensaios (como sói acontecer com Marías), textos que respeitam, sobretudo, a inteligência do leitor, sua capacidade de análise e compreensão da realidade. O título sai de uma história muito boa, na qual Marías fala dos sucessos da vida de John Gawsworth (o terceiro rei do reino literário de Redonda, ilha do Caribe cujo rei literário atualmente é próprio Javier/Xavier Marías, mas esta é uma história intrincada demais para ser discutida aqui). Assim como nas séries de artigos dominicais anteriormente publicados (Mano de sombra, Seré amado cuando falte, A veces un caballero, Harán de mí un criminal, El oficio de oír llover) não há assunto que seja inadequado para ele. Há ponderações sobre os contumazes aborrecimentos na rotina de sua vida madrilleña; há o martelar incessante contra os desmandos dos poderosos de plantão (não apenas de seu país, mas de todo o orbe); há artigos que falam da nostalgia dos dias de juventude, dos amigos que se perderam - e que se perdem, a cada instante da vida, num sopro; há discussões etimológicas, sobre os usos da língua espanhola - sobretudo do mal uso dela praticado por seus concidadãos; há sua prosa envolvente e desafiadora; há vergastadas nos hipócritas e mentirosos de seu tempo. O Marías dos romances e contos é bem diferente deste Marías cronista, que compartilha conosco suas impressões sobre as coisas banais do dia a dia, mas não é menos convincente que aquele grande inventor de histórias e narrativas. O humor e a ironia dominam os textos e seus comentários parecem obrigar cada um de nós parar um pouco e pensar. Não é uma coisa ordinária ou menor. O que não me canso louvar em seus artigos é a lógica impecável das argumentações. Javier Marías sabe lembrar ao leitor que a realidade é insistente demais para que nos furtemos dela. [início 21/01/2012 - fim 26/01/2012]
"Demasiada nieve alrededor"", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones), 1a. edição (2007), brochura 14x22 cm, 305 págs. ISBN: 978-84-204-7202-7

domingo, 22 de janeiro de 2012

kappa e o levante imaginário

Meses atrás don @hugocrema falou-me de Ryūnosuke Akutagawa, nome que eu desconhecia quase completamente. Já mais recentemente, no início deste ano, organizei um produtivo safari literário paulicéia adentro e lá acabei encontrando - entre outras maravilhas - "Kappa e o Levante imaginário". Akutagawa suicidou-se com 35 anos, em 1927, e chegou a publicar cerca de 150 contos. Descobri que ele é ainda hoje um autor muito respeitado no Japão. Este livro, bem editado pela Estação Liberdade, reúne onze contos, publicados originalmente entre 1915 e 1927 (Kappa, Rashomon, O nariz, Destino, Os salteadores, Inferno, Dragão, As laranjas, A mágica, No matagal, Rodas dentadas.  "No matagal" (Yabu no Naka) deve ser sua história mais conhecida, pois o premiado filme Roshomon, de Akira Kurosawa, é baseado nela. De fato é uma história contada com muita precisão (curiosamente não são os fatos terríveis que importam, mas sim a psicologia e o ânimo das personagens que conquistam o leitor). A seleção de contos é realmente muito boa. Gostei especialmente de "Inferno" (um conto que fala da soberba, vaidade e arte); "As laranjas" e "A mágica" (duas pequenas jóias, que constrastam realidade e sonho, tristeza e alegria, histórias tiradas de cousas cotidianas, que transcendem como por mágica) e "Os salteadores" (uma movimentada história guerreira, de traição e morte). Enfatizo esses, não que os demais sejam contos menores. "Dragão" e "O nariz" são divertidas parábolas morais, ; "Kappa" e "Rodas dentadas" são bastante inventivos, esse último por descrever (autobiograficamente talvez) uma profunda depressão, aquele por apresentar ao leitor um mundo imaginário que decalca a realidade; "Roshomon" e "Destino", são sufocantes, pois cobram leituras sem intervalos. Grande escritor. [início 10/01/2012 - fim 21/01/2012]
"Kappa e o Levante imaginário", Ryūnosuke Akutagawa, tradução de Shintaro Hayashi, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 346 págs. ISBN: 978-85-7448-193-7 [edição original: 河童 Kappa (Tokyo, Japão), 1927]

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

unos días en el brasil

Lê-se esse pequeno livro num sopro, com um sorriso irônico. O que mais me impressiona é como um formato inusual (notas de uma viagem curta, sete ou oito dias, que Adolfo Bioy Casares fez ao Brasil em 1960) explicíta rapidamente o quão bom escritor ele foi. Bioy Casares viaja ao Brasil como representante argentino em um congresso do PEN Club (um grupo de poetas, ensaistas e novelistas/escritores - daí a sigla - fundado no início do século passado, que já teve protagonismo político maior do que tem hoje). O congresso envolve atividades burocrática, monótonas. Mas Bioy lembra que dez anos antes, na França, havia conhecido uma brasileira que havia se apaixonado por ele. Ela era ainda uma menina e ele não pode corresponder a sua afeição. Será que a viagem poderia servir para reencontrá-la? Durante o congresso Bioy faz anotações, curtas mas poderosas, que descrevem com objetividade suas impressões, os encontros casuais, a psicologia dos colegas escritores, o estranhamento com os hábitos alimentares e os horários das reuniões. Há algo de sociologia selvagem nas notas, mas elas revelam uma mente curiosa e capaz de reflexões complexas mesmo em um ambiente aborrecido. As notas foram escritas no Rio de Janeiro (que ele contrasta com sua Buenos Aires), em São Paulo (algo sufocante pelo tamanho) e na recém inaugurada e inospita Brasília (onde Bioy faz algumas fotografias, incluídas no livro). Ele comenta algumas diferenças linguísticas e culturais entre argentinos e brasileiros (sem simplificações bobas, como usualmente se faz), visita e faz troça de um consulado argentino, faz um divertido passeio de taxi por São Paulo. O livro é complementado por um conjunto de notas de Michel Lafon, um acadêmico francês, tradutor da obra e especialista em Bioy Casares. São notas muito tocantes, de alguém que realmente conhecia e admirava o trabalho de Bioy Casares. [início - fim 16/01/2012]
"Unos días en el Brasil (Diario de viaje)", Adolfo Bioy Casares, posfacio de Michel Lafon, Buenos Aires: editorial La Compañía de Los Libros, 1a. edição (2010), brochura 12,5x19 cm, 104 págs. ISBN: 978-987-25301-6-7

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

a prisioneira

"A prisioneira" é o quinto volume do ciclo "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust. Foi publicado postumamente, em 1923 (assim como os dois volumes restantes: A fugitiva e O tempo redescoberto). " A prisioneira" é quase um tratado de psicologia humana. Proust contrasta o relacionamento de um casal com a vida em sociedade, demonstrando como as relações mundanas que estabelecemos em nosso grupo social são tão enganadoras como aquelas que experimentamos na intimidade. Ele fala da impossibilidade de compreender verdadeiramente qualquer indivíduo, por mais próximo que esteja de nós. O que é narrado segue imediatamente os sucessos de Sodoma e Gomorra. O livro é dividido em três seções. A primeira e a última falam da vida do narrador com Albertine, a segunda do rompimento entre os Verdurin e o barão de Charlus. Factualmente, o que é narrado se passa em poucos dias, mas a magia de Proust alcança apresentar ao leitor coisas do passado remoto do livro - dos outros volumes do ciclo: No caminho de Swann, À sombra das raparigas em flor, O caminho de Guermantes - e já antecipar seu desfecho (que é o da concepção de escrever o livro que o leitor está a ler). O narrador passa a viver com Albertine, alternando jogos sexuais e compras, com absoluto controle sobre ela. Além da governanta da família, Françoise, e a mãe, que é comunicada por cartas do que se passa, ninguém de seu círculo de amizades sabe desta vida em comum. A contradição fundamental do narrador é identificar no sofrimento e no ciúme a força motriz de seu amor por Albertine. Sem sofrimento não há amor, apenas tédio e aborrecimentos. Ele sabe que a solidão teria sido melhor e mais produtiva, mas entre a solidão e a dor do ciúme ele escolhe esta última. A convivência com Albertine reaviva sua curiosidade sobre o passado sexual dela. Ele mortifica-se por não saber exatamente como ela se relacionava com mulheres e tenta impedir que Albertine possa sair de casa e encontrar-se com elas. Se mesmo pontuada pelo ciúme e pelo sofrimento havia alguma felicidade no relacionamento deles, essa felicidade não poderia durar muito. O narrador decidi ir a uma recepção oferecida pelos Verdurin e organizada pelo barão de Charlus, que convida seu pares, aristocratas sobretudo, para conhecer um salão burguês típico. Enfeitiçado por sua paixão pelo violinista Morel, Charlus não percebe que seu comportamento exaspera a verdadeira anfitriã, a Sra. Verdurin. Ela força Morel a romper seu relacionamento com Charlus. O narrador, que esperava uma das conhecidas respostas furiosas do barão (principalmente por sua covardia em não alertá-lo de sua iminente queda, interessado que estava apenas em saber se Albertine tiverá ou não um relacionamento amoroso com a atriz Léa) assiste constrangido sua humilhação. A cena final desta seção, em que a rainha de Nápoles acolhe o barão, poupando-o dos crescentes achincalhes, é soberba. Ao voltar para casa o narrador confronta Albertine por conta de seus ciúmes, mas ela, sem saber exatamente o que ele descobrira sobre sua vida pregressa, acaba se traindo, detalhando vários deslizes amorosos dos quais o narrador sequer desconfiava. O narrador decide romper definitivamente com ela, entretanto, viciado pelo hábito e pelo binômio sofrimento/ciúme seu coração faz com que eles se reconciliem. Nas cinquenta ou sessenta páginas finais deste volume Proust fala da melancolia que acompanha a memória de alguém que sabe já ter perdido um grande amor, mesmo que compartilhe ainda algo dele. São passagens terríveis e memoráveis. Mas a realidade é a mais hábil das inimigas, apenas dois dias depois da última reconciliação, como ao acordar de um sonho ruim, o narrador é avisado da fuga repentina de Albertine. Não me lembro exatamente do que senti quando li esse volume pela primeira vez, há trinta anos. Certamente eu era jovem demais para entender todas as ilações e sentimentos cruzados que Proust oferece e não tinha experimentado na vida quase nada daquilo que ele descreve. Talvez agora eu seja cínico demais, amargurado demais, para me identificar com as intermitências do narrador, mas ainda assim me surpreendo e me identifico com as várias facetas de sofrimento que transbordam do livro. Essa reedição não tem a infinidade de erros tipográficos do volume anterior, mas ainda assim encontrei cinco ou seis notas de rodapé mal numeradas. A numeração do resumo desta vez está correta. O prefácio assinado por Guilherme Ignácio da Silva e o posfácio de Olgária Féres Matos são muito bons. Agora me resta reler os dois últimos volumes. A fugitiva é dos livros mais tristes que já li, mas no O tempo redescoberto encontramos algum conforto. Logo veremos como esse velho e cansado Guina reagirá ao reencontrá-los. [início 19/12/2011 - fim 15/01/2012]
"Em busca do tempo perdido: A prisioneira (vol.5)", Marcel Proust, tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar, São Paulo: editora Globo, 13a. edição, revista (2011), brochura 16x23 cm, 524 págs. ISBN: 978-85-250-4229-3 [edição original: La Prisonnière (éditions Gallimard), 1925]

sábado, 14 de janeiro de 2012

ordinário

Encontrei esse pequeno livro de Rafael Sica por um feliz acaso. Conhecia seu trabalho por conta das ilustrações que ele produz para a Folha de São Paulo, mas nunca havia lido em conjunto suas potentes narrativas gráficas. A experiência de ler cada quadrinho é realmente impactante. O leitor pode interpretar cada uma das tirinhas de diferentes formas, dependendo de seu humor, dependendo de das leituras que faz da realidade em que vive. São histórias expressivas, mas não uma expressividade estática, há sempre dinamismo e movimento em tudo que ele apresenta. Se o grafismo das histórias tem muito de surreal e mágico, o conceito que transparece delas, as ideias que o leitor encontra rapidamente ali são muito realistas (e quase sempre terríveis). Ele fala de questões típicas do mundo moderno: a solidão, a violência, o medo, a religiosidade e o sexo. Sica alcança produzir algo que força o leitor a pensar e isso é sempre muito bom. [início: 06/01/2012 - fim: 13/01/2012] 
"Ordinário", Rafael Sica, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2010, brochura 13x21, 128 págs. ISBN: 978-85-359-1777-2

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

noites das mil e uma noites

Algo impressionado com o bom "O beco do pilão" resolvi pegar o primeiro Mahfouz que estivesse à mão. Encontrei esse "Noites das mil e uma noites", de 1981, já na última década de sua longa carreira como escritor, iniciada nos anos 1930. Mahfouz parece ter sido motivado pela pergunta que qualquer leitor faz após chegar ao fim dos contos árabes das mil e uma noites: O que acontece exatamente após Scheherazade terminar de narrar sua miríade de histórias? Eles viveram mesmo felizes para sempre? Mahfouz inventa uma curiosa trama onde o arrependimento e transformação do tirânico e misógino sultão Shahriar em bom marido e pai amoroso é posta à prova. Mahfouz continua utilizando os elementos mágicos que encontramos nos relatos originais dos "Livros das mil e uma noites" (demônios, gênios, mundos paralelos, metamorfoses, viagens temporais) mas alcança milenarizar de alguma forma o texto, como se o decalcasse e o aproximasse do leitor moderno. Não são as fantasias, mas antes a psicologia dos personagens (mesmo os não-humanos, vamos dizer assim) que serve aos propósitos literários de Mahfouz. Como nos contos árabes originais as histórias se cruzam e superpõe em cascata, se repetem como em mantras, mas encontramos nelas vivências plenas de humanidade. Esse é um livro povoado de personagens e frases feitas (mas também alguma metalinguagem). Os passeios do Sultão à noite lembram aqueles inventados por Shakespeare no Henry V, assim como parece sair das peças de Shakespeare a transformação do chefe da guarda Jamsa al Balti em uma espécie de arauto ou louco (Montjoy ou o bobo do King Lear), que percorre todo o livro. A capacidade de Mahfouz de interpretar e refletir sobre o papel dos homens na política e religião, distinguindo-as (como sempre deve ser) é impressionante. O sultão Shahriar que o leitor encontra no final do livro é um homem mais sábio, assim como o leitor, que teve a chance de comparar as diferenças entre o conjunto de contos alegóricos do original e um romance realmente robusto. Em tempo: Essa é a 600a. resenha que faço nesse blog. É inevitável, mas o Alzheimer vai ter que trabalhar duro para apagar as boas lembranças da leitura destes 600 livros. [início: 08/01/2012 - fim: 10/01/2012]
"Noites das mil e uma noites", Naguib Mahfouz, tradução de Georges Fayez Khouri e Neuza Neif Nabhan, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2011, capa-dura 14x21,5, 308 págs. ISBN: 978-85-359-1907-3 [edição original: ليالي ألف ليلة  Layali alf lela (Cairo) 1981]

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

o beco do pilão

Naguib Mahfuz foi um dos escritores egípcios mais influentes do século passado. Sujeito muito prolífico (publicou cerca de 50 romances e centenas de contos entre 1932 e 1987), Mahfuz ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1988. "O beco do pilão" é um de seus primeiros livros, publicado em 1947. Lembrei muito do "La Colmena", do Camilo José Cela, que é de 1951, mas surpreendentemente partilha com "O beco do pilão" algo do ritmo e da ambientação (preciso reler este livro um dia destes). Encontramos aqui uma especie de mosaico, formado por histórias cruzadas de várias personagens que vivem em um pequeno beco da zona pobre da parte antiga da cidade do Cairo, nos tempos do final da segunda grande guerra. O Egito já tinha sido libertado da invasão das forças italianas e alemã, já experimentando algum progresso com o dinheiro fácil dos ingleses e dos fugitivos da guerra, que continuava na Europa. As histórias são duras, onde cada um, a seu modo, experimenta uma vida miserável, confusa, de sonhos mirrados e futuro incerto. Todavia Mahfuz as apresenta com muita objetividade e realismo, não apela para chantagens emocionais e sentimentalismos bobos. O que o leitor encontra são histórias críveis, sobre homossexualismo, prostituição, avareza, religiosidade, política, militarismo, saúde pública, relações humanas. Mahfuz consegue em poucas frases definir personalidades complexas e o papel que cada um ganha nas tramas sempre é convincente. Os temas descritos são variados e contrastam o comportamento dos habitantes daquele beco com a população de um Egito que se moderniza, por força da ocupação britânica. É tempo, vou procurar mais livros desse sujeito. [início: 28/12/2011 - fim: 08/01/2012] 
"O beco do pilão", Naguib Mahfouz, tradução de Paulo Daniel Farah, São Paulo: editora Planeta do Brasil (1a. edição) 2003, brochura 16x23, 319 págs. ISBN: 85-7479-695-6 [edição original: زقاق المدق Zuqãq al-Midaqq (Cairo) 1947]

sábado, 7 de janeiro de 2012

el caballero del jubón amarillo

Nesses dias vagabundos, imerso em mil estímulos e partilhando companhia agradável, um hedonista como eu não conhece aborrecimentos. Reservo tempos assim para leituras ligeiras, que não cobram elucubrações, mas que demonstram ter estofo. Os livros da série dedicada às aventuras do capitão Alatriste, de Arturo Pérez-Reverte, oferecem exatamente isso: diversão com algum rigor histórico-factual, especialmente sobre o século de ouro espanhol. Após dois volumes ambientados em deltas de rios, um nas planícies alagadas dos holandesas (El sol de Breda) e outro nas areias do Guadalquivir (El oro del Rey), desta vez Pérez-Reverte nos leva de volta ao centro do mundo espanhol, à Madrid dos Áustrias (já descrita nos volumes O capitão Alatriste e Limpeza de Sangue). No início do romance encontramos Alatriste enamorado de uma bela atriz. Pérez-Reverte aproveita para descrever o teatro daqueles dias, utilizando passagens das biografias de Luís de Góngora, Francisco de Quevedo, Lope de Vega, Tirso de Molina e até Miguel de Cervantes. Alatriste e seus companheiros (o narrador Íñigo Balboa, o poeta Quevedo, o conde de Guadalmedina) acabam se enredando em uma complexa trama, na qual a vida do rei (Filipe IV) corre risco. Os inimigos de sempre (Gualtério Malatesta, Angélica e Luiz de Alquézar, Emílio Bocanegra) participam ativamente da conspiração, que pode afetar toda a política europeia (as aventuras ligeiras sempre tem de envolver assuntos definitivos para justificar os sucessos que descrevem). Quem já teve a fortuna por flanar pelo bairro de Huertas em Madrid conhece a história e a geografia básicas do romance, percorre com o narrador suas tabernas e restaurantes, ruelas estreitas e escuras, teatros e prostíbulos. De fato o leitor pode acompanhar partes extensas do romance debruçado sobre um mapa de Madrid, seguindo ruas, praças, igrejas, castelos, parques e pontes. Após uma primeira parte (dedicada ao teatro e ao contexto da política espanhola do início do século XVII), que é um tanto fraca e monótona, o romance entra no ritmo mais previsível de escaramuças, duelos, perseguições e lutas, chegando rapidamente a um final frenético, uma caçada sob chuvas torrenciais, nas vizinhanças do El Escorial. A trama é um bocado mirabolante, mas convence e diverte. [início 04/01/2012 - fim 07/01/2012]

"El caballero del jubón amarillo (Las aventuras del capitán Alatriste) volume V", Arturo Pérez-Reverte, Madrid: Punto de lectura (grupo Santillana de ediciones), 3a. edição (2011), brochura 12,5x19 cm, 333 págs. ISBN: 978-84-663-2057-3 [edição original: Madrid: Alfaguara, 2003]

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

todos os homens são mentirosos

Quem me falou pela primeira vez desse livro, certamente há mais de um ano e com franco entusiasmo, foi o industrioso Tailor Diniz. Mais recentemente o Escobar Nogueira repetiu a indicação com um entusiasmo similar. Com duas referências tão boas (e lamentando não ter seguido de pronto a sugestão inicial do Tailor), acabei comprando o livro no dia seguinte ao encontro com o Escobar. Li "Todos os homens são mentirosos" com um sorriso nos lábios, divertindo-me com a maquinaria literária e a metalinguagem que Alberto Manguel sabe oferecer ao leitor. Isso é acessório, mas estou em uma fase onde tento interpretar o que leio à luz dos esquemas propostos por Orhan Pamuk no O romancista ingênuo e o sentimental, vamos a ver até quando isso dura, pois é claro que alguma teoria ajuda, mas sei que não posso perder o foco, sufocar o prazer genuíno da leitura descompromissada de qualquer texto ou romance. "Todos os homens são mentirosos" lembra o filme Rashomon de Akira Kurosawa (que é baseado no conto Yabu no Naka, de Ryūnosuke Akutagawa - devo ao Hugo Crema a lembrança dessa linhagem). O que se discute no romance é como o exílio forçado afeta cada indivíduo. O primeiro dos narradores de Manguel discute com um jornalista detalhes da vida de um sujeito que sobreviveu a ditadura Argentina e exilou-se em Madrid. Sua curiosidade se concentra nos porquês do sujeito cometer suicídio justamente na noite do lançamento de um livro fenomenal, que faz muito sucesso posteriormente. O segundo narrador é uma das ex-mulheres desse sujeito/escritor, mas sua versão dos fatos é substancialmente diferente. A terceira narrativa é de um cubano exilado, alguém do círculo de amizades do desterro madrillenho do sujeito/escritor. Ele comunica através de carta uma terceira versão dos fatos. Manguel dá voz a um morto na quarta de suas narrativas, o que embaralha ainda mais o entendimento do leitor. Por fim o jornalista, em uma narrativa final, formula sua síntese do que depreendeu das versões anteriores. O resultado é o livro que estamos a ler, fruto de contraditórias e complexas perspectivas dos eventos. Haverá alguma verdade afinal de contas, parece nos perguntar Manguel, também ele um exilado, um dos milhões de latino-americanos perseguidos por ditadores sanguinários. Belo livro. [início 15/12/2011 - fim: 16/12/2011] 
"Todos os homens são mentirosos", Alberto Manguel, tradução de Josely Vianna Baptista, São Paulo: editora Companhia das Letras (1a. edição) 2010, brochura 14x21, 179 págs. ISBN: 978-85-359-1745-1 [edição original: Todos los hombres son mentirosos (Barcelona: RBA Libros) 2008]

domingo, 1 de janeiro de 2012

queremos miles

De todas as exposições que vi no ano passado "Queremos Miles!" foi a mais impactante, certamente foi a que proporcionou a experiência estética mais completa e deslumbrante. Montada originalmente pelo museu Cité de la Musique, de Paris, em 2009, já em outubro passado, logo no início da primavera, ela foi montada no SESC Pinheiros de São Paulo (e eu estava lá para conferir, contumaz admirador de Miles que sou). O catálogo não substitui o arrebatamento proporcionado pela exposição, é uma peça de arte independente, que certamente funciona como ferramenta didática. Organizado por Vincent Bessières (também curador da exposição) o catálogo tem um texto principal assinado por Franck Bergerot, além de contribuições de George Avakian, Laurent Cugny, Ira Gitler, David Liebman, Francis Marmande, John Szwed e Mike Zwerin. Os textos descrevem bem as muitas fases, as inovações, experiências musicais e revoluções conceituais inspiradas por Miles. Há informações sobre o Miles jazzista e também coisas sobre a vida pessoal do sujeito irascível, mercurial e zeloso de sua privacidade que era. Claro, os textos, relativamente curtos, não substituem o prazer de ler a autobiografia que Miles assinou em parceria com Quincy Troupe, nem a biografia assinada por Ian Carr, coisas que li com voracidade anos atrás. Mas o catálogo oferece ao leitor um aparato iconográfico espetacular, com fotografias, desenhos, partituras manuscritas, reproduções de capas, ilustrações e pinturas, além de longas seções de bibliografia. Ao leitor resta cantarolar baixinho os riffs jazzísticos que conseguir lembrar, saudoso que certamente fica de Kind of Blue, Birth of the Cool, Miles Ahead, Sketches of Spain, Tutu, Amandla, Bitches Brew e tantas outras maravilhas. [início 20/10/2011 - fim: 01/01/2012]
"Queremos Miles", Vincent Bessières (org.), Frank Bergerot,  tradução (português) de Renato Rezende, tradução (inglês/francês) de Christian Gauffre, São Paulo: edições SESC SP (1a. edição) 2011, brochura 24x28, 223 págs. ISBN: 978-95-7995-026-1 [edição original: We want Miles (Paris: Éditions Textuel/Cité de la Musique) 2009]