Foi o Samuel Pessoa, amigo querido, quem falou-me dos contos de Celso Furtado, na tarde mágica de um sábado do último maio, em que falamos do passado (dos tempos do IFUSP e dos amigos de então), do presente terrível (eram os dias da greve dos caminhoneiros) e do futuro (dos planos para as férias de inverno e as viagens que faríamos). Também ouvi da Heloísa histórias maravilhosas sobre literatura, amizade e vida, conheci amigos deles, acompanhei a vibração e alegria contagiante da pequena Inês. Só faltou para mim rever a Raquel, que estava com a Silvia no Rio de Janeiro. Foi o dia em que fizemos libações e sonhamos, uma vez mais "drowning in honey, stingless". Algo sobre o Celso Furtado político, intelectual brasileiro de primeira linha, ministro e imortal da Academica Brasileira de Letras eu já sabia (sou um velho e cansado senhor, já se sabe). Todavia, não tinha ciência desta incursão dele pela ficção, destes contos escritos na juventude, quando não tinha ainda 25 anos. São dez histórias curtas, produzidas no período em que ele fez parte da Força Expedicionária Brasileira, como oficial de ligação junto ao V exército americano, sediado na Toscana italiana, entre janeiro e agosto de 1945. A segunda grande guerra já se encaminhava para seu desfecho. Os contos explicitam uma mente sofisticada, erudição indisfarçada, curiosidade intelectual. De situações banais, na medida em que algo que aconteça durante uma guerra devastadora pode ser banal, Furtado constrói contos morais, reflexões sobre o comportamento humano, faz observações sobre decisões e escolhas, análises finas sobre geopolítica, psicologia e economia. O narrador de Furtado sempre é um oficial brasileiro, como ele, Tenente, que experimenta uma situação limite, nem sempre envolvendo combates e mortes, o trágico da guerra, antes sim sobre aquilo de essencialmente humano que transparece dos escombros de uma civilização. Numa história um pracinha, cansado, sonha com o furto de uns cigarros e o suicídio de um prisioneiro alemão; noutra um pracinha experimenta a cumplicidade de uma combatente italiana, numa espécie de aprendizado sobre o papel da mulher na sociedade; noutra ainda se descreve a aventura de um brasileiro que se encanta com sua imersão nos séculos de história de uma Florença que conhecia apenas livrescamente. Há historias envolvendo vingança e honra. Numa um negro mata um prisioneiro alemão por conta de um bombardeio no qual morre uma velha senhora italiana que ele mal conhecia; noutro um oficial salva a vida de uma jovem, acusada de ter sido simpática aos invasores nazistas. Há histórias nas quais certos aspectos da psiquê brasileira são explorados, como aquela em que uma italiana que pretendia casar-se com um soldado brasileiro para emigrar para o Brasil descobre ser ele casado e mulherengo, e uma outra, uma releitura divertida da Divina Comédia de Dante, em que vários amigos falam das diferenças entre as mulheres do Brasil e da Europa, histórias que beiram o preconceito, mas como trata-se de histórias de caserna, estão longe de ser misóginas. De três contos eu gostei especialmente. O primeiro é uma espécie de road-movie, no qual dois oficiais brasileiros saem de folga numa viagem de Milão a Paris, em busca de sexo e alegria, interagindo com americanos, franceses e até prisioneiros alemães, contrastando hábitos e costumes desses povos; no segundo se narra dias de festejos em uma praia italiana, nos quais uma antropóloga dinamarquesa se espanta com a erudição de um seu confrade brasileiro, que imaginava viver de tanga e a tocar tambores; já o último basicamente trata do debate intelectual entre um oficial americano e um brasileiro, em que se digressa, no limite da civilidade, os diferentes hábitos e história dos dois povos, se desnuda, numa sociologia selvagem, aquilo que os une e os afasta. Seguro que esses contos não brotaram só da experiência de Furtado, devem ter sido ouvidos, em uma miriade de versões, de seus confrades combatentes, sujeitos que inventam e exageram seus sucessos e conquistas, que seletivamente usam a memória. De qualquer forma, Furtado inclui nas histórias reflexões sobre o Brasil, fala da riqueza de sua composição e diversidade étnica; da funesta vocação para o subdesenvolvimento brasileiro, derivada de sua posição periférica; da falta de objetividade da elite brasileira, incapaz de colocar seu refinamento intelectual a serviço de projetos e em ações que transformem seu pais. São contos otimistas, de alguém que espera reverter essa inação, sabedor dos desafios que enfrentará. Os narradores de Furtado vão a museus, a concertos, discutem sobre Brahms e Verdi, são algo lascivos, como não, fazem uso do exotismo para angariar simpatias, são intelectualmente curiosos, dominam as regras de etiqueta e civilização, sabem argumentar e ferir com a linguagem, mais que com a espada. Ao retornar ao Brasil, em agosto de 1945, Furtado começou sua caminhada no palco dos embates políticos, econômicos, sociológicos. Inegável é sua perene presença nos debates acadêmicos sobre o sempre futuro desenvolvimento brasileiro. Não conheço suficientemente sua obra econômica para dizer se suas idéias ainda são válidas, se suas análises sobre as raízes de nosso subdesenvolvimento de alguma forma devem ser levadas em consideração hoje, em que vivemos décadas de crescimento econômico pífio. Como leitor, apenas destes dez bons contos, imagino que talvez o Brasil tenha perdido um bom artificie da língua, um bom escritor, um sujeito cuja intuição literária talvez poderia contrastar e tornar-se mais seminal que aquela de um Jorge Amado, por exemplo. Difícil dizer. Vamos a ver o que o Samuca dirá sobre ele, no livro que prepara e promete publicar ainda neste funesto ano, de eleições, em que teremos todos de tomar decisões cujas consequências são terríveis. A ver. Vale!
Registro #1330 (contos #154)
[início 21/09/2018 - fim: 23/09/2018]
"Contos da vida expedicionária (Obra autobiográfica de Celso Furtado, Tomo1)", Celso Furtado, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra (Grupo Editorial Record), 1a. edição (1997), brochura 14x21 cm., 367 págs., ISBN: 85-219-0282-4