domingo, 4 de junho de 2017

antígona, intriga e enigma

No final dos anos 1980, quando estive por algumas semanas em Stuttgart numa missão acadêmica no Max-Planck-Institut für Metallforschung (hoje aquelas instalações pertencem ao Max Planck Institute for Intelligent Systems), quis a fortuna conceder-me a oportunidade de visitar Tübingen. Na verdade, assim como Virgílio conduziu Dante pelas páginas da Divina Comédia, fui guiado até lá por um amigo daqueles dias, o Gerhard Schneider. Era verão, as flores obviamente desabrochavam sozinhas, éramos jovens e estávamos felizes ali, cervejando sem culpa, literalmente sobre o Necker, falando dos amigos paulistas. I was drowning in honey, stingless. Antes de irmos ver Utte e o pequeno Mattias, que havia nascido há poucos meses, fizemos um desvio, cumprindo uma prometida peregrinação a torre de Hölderlin. "Hier lebte und entschlief Hölderlin" dizia uma placa, e aquele lebte und entschlief ressoava como se ele fosse mesmo viver e dormir para sempre, muito além dos 34 anos que passou ali. Lembrei-me vividamente daquele dia ao começar a ler "Antígona, intriga e enigma: Sófocles lido por Hölderlin". Trata-se de um poderoso ensaio, produzido pela industriosa Kathrin Rosenfield. Esse livro é resultado de acumulada reflexão e elaboração. Uma versão curta, ainda embrionária, foi publicada primeiramente em 1999, na New Literary History; progressivamente robustecido, o texto metamorfoseou-se diversas vezes, tendo sido publicado em revistas ou livros, publicados na França, Alemanha, Brasil e Estados Unidos (a presente edição é uma tradução da versão final, publicada em inglês, em 2010). As ideias centrais do ensaio foram discutidas em eventos acadêmicos, com diversos interlocutores, sobretudo filólogos, filósofos, tradutores e especialistas em literatura. Kathrin valeu-se também de produtiva troca de ideias com Lawrence Flores Pereira, durante o processo de sua tradução de Antígona (originalmente para fins de uma encenação teatral, que aconteceu em Porto Alegre nos anos 2004 e 2005, e posteriormente publicada em livro, em 2006, como já contei aqui num registro recente). Em "Antígona, intriga e enigma: Sófocles lido por Hölderlin" Kathrin argumenta em defesa dos procedimentos de tradução de Antígona como proposto por Hölderlin em sua tradução, de 1804, e em seus ensaios, sobretudo o "Anmerkungen zur Antigonä". Para Hölderlin o texto clássico deveria ser lido com um novo olhar, a leitura deveria ser renovadora. Mas Kathrin diz que, ao contrário do que argumentam os críticos de Hölderlin, desde o inicio do século XIX, "a aparente modernização da peca apenas realça o que havia de moderno e selvagem no imaginário clássico, (...) mudando o ponto de vista a partir do qual devemos contemplar os gregos, reconhecendo nas entranhas da cultura grega o inquietante e estranho daquela época". Segundo essa argumentação, a transcriação de Hölderlin, por mais inovadora que é, também é fiel ao original de Sófocles, pois o homo sapiens sapiens grego do século V antes da era cristã compreendia o paradoxo entre a sociedade gentilica, vinculada às tradições e aos vínculos de sangue entre seus membros, e a ascensão da sociedade política, onde os fins práticos das ações dos homens justificam todas suas implicações sociais. Nas palavras de um conhecido tradutor (Kurt Meyer-Classon), devemos apreciar a tradução de Hölderlin não por ele tentar melhorar Sófocles, o que seria uma coisa ridícula de se fazer (acréscimo meu), mas porque ele recria o antigo drama clássico, renovando-o. O texto de Kathrin é especialmente detalhado, completo. Ela, ato a ato, cena a cena, a cada problema técnico ou questão complexa, discute todas as implicações das soluções tradutórias e escolhas de Hölderlin, mas o faz à luz do que se sabe da filologia grega e da antropologia estrutural neste inicio de século XXI. Trata-se de um texto técnico, complexo, que pode ser apreciado mesmo por um leitor neófito (como eu, ai de mim), desde que a leitura seja feita com disciplina e rigor. Kathrin se propõe "a fazer critica literária sem abrir mão da seriedade do pensamento controlado, permanecendo lúdica, elástica, aberta às propostas estéticas e poéticas oferecidas por Hölderlin". Acho que ela alcançou este propósito. Enfim, aprendi um bocado. O livro inclui os mimos preciosos: uma genealogia dos mitos tebanos; um curto glossário; uma detalhada bibliografia. Cabe, por fim, registrar que essa edição é resultado de uma colaboração entre a icônica editora Perspectiva, a organização social de cultura Poiesis e a Casa de Cultura Guilherme de Almeida, também ele um tradutor de Antígona. Evoé Kathrin, evoé.
[inicio: 22/05/2017 - fim: 03/06/2017]
"Antígona, intriga e enigma: Sófocles lido por Hölderlin", Kathrin H. Rosenfield, São Paulo:editora Perspectiva, 1a. edição (2016), brochura 11x23 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-273-1069-7 [edição original: Sofocle's art, Hölderlin's insight (Aurora/Colorado: Davies Group) 2010]

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