domingo, 27 de setembro de 2020

o mestre das polcas

De Guido Viaro já havia lido "O princípio da incerteza". Noutro dia recebi dele esse "O mestre das polcas", de 2019, seu décimo sexto livro publicado. A narrativa se passa em 1881, em Linz, cidade austríaca às margens do longo rio Danúbio. Um respeitado compositor conhecido como Mestre das Polcas, já viúvo, após a morte do filho adolescente descobre-se sem talento, incapaz de voltar a conquistar seu público com sua música. Ele sente culpa pela morte do filho, pois em uma oportunidade não reconheceu neste talento musical (comparável ao seu) e deixou de patrocinar sua educação musical em Viena, fato que fez o garoto abandonar definitivamente a música. A partir daí a narrativa descreve como todo o tempo e energia do sujeito é investido num amalucado projeto de compor uma sinfonia comparável às do próprio Mozart. Entretanto, planeja utilizar como orquestra não músicos profissionais, antes sim bonecos autômatos de metal (Viaro faz o sujeito buscar os serviços de um homem chamado Jaquet-Droz, ficcional descendente de um famoso e real fabricante destes autômatos no século XVIII, o francês Pierre Jaquet-Droz). O livro segue até o final em uma lenta e cíclica vertigem, na qual o Mestre das Polcas alterna entusiasmo e depressão, controlando seu dinheiro e sua saúde, temeroso por ser enganado pelo construtor, ansioso com a passagem do tempo de espera pelos autônomos e a estreia de sua sinfonia. Lembrei de um conto do Machado de Assis, "Um homem célebre", onde um sujeito chamado Pestana, compositor de polcas, é retratado em sua obsessão por alcançar a fama, seu desejo de tornar-se célebre ao compor como Mozart e Beethoven. Provavelmente Guido Viaro inspirou-se neste conto para compor seu romance. Entendi a história como uma alegoria do Fausto, ou seja, de um pacto que alguém faz com um diabo, por conta de um desejo, de uma obsessão, em uma aventura narcísica ou de purgação de culpa. Todavia, ao contrário do Fausto, não haverá um deus para velar por sua alma. Interessante. Segue o baile. Vale!
 Registro #1573 (romance #388)
[início: 12/08/2020 - fim: 26/08/2020] 
"O mestre das polcas", Guido Viaro, Curitiba: Editora Insight, 1a. edição (2019), brochura 15x21 cm., 217 págs., ISBN: 978-85-62241-79-6

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

donaldo schüler: entrevista

"Donaldo Schüler: entrevista" é o segundo volume de uma coleção de entrevistas publicada pela editora Medusa, de Curitiba, coleção da qual já registrei aqui o volume dedicado a Aurora Bernardini. Donaldo Schüler é catarinense, mas sua carreira acadêmica universitária deu-se no Rio Grande do Sul, na UFRGS, onde graduou-se e foi professor titular. Assim como no caso de Aurora Bernardini, às suas atividades acadêmicas, Schüler somou o ofício de tradutor, sobretudo do grego (Sófocles, Homero, Platão), mas ele ganhou especial notoriedade ao traduzir o Finnegans Wake, de James Joyce, no início dos anos 2000. Neste volume estão organizadas (por Dirce Waltrick do Amarante e Marcelo Tápia), um conjunto de treze depoimentos epistolares (trocas de e-mails), provocados a partir de perguntas, conjunto este que é dividido no livro em três sessões: A partida, O retorno, De volta à nau. Talvez por conta deste distanciamento físico e temporal entre perguntas e respostas o resultado seja um tanto confuso, heterogêneo. Há passagens realmente muito boas, nas quais Schüler explica como o ofício da tradução nasceu da docência, do ensino de língua e literatura grega, do diálogo com seus estudantes e/ou ouvintes (ele é também um respeitado palestrante em cursos livres e eventos literários). Ele fala da aventura de conduzir seus alunos pela história da poesia e das ideias, assim como a tradução em si conduz as palavras de um lugar ao outro, de uma cultura à outra; fala como a evolução do homem espelha a história e evolução das formas poéticas; assim como as traduções injetam vitalidades insuspeitas nos próprios originais. Schüler faz questão de registrar que suas traduções produzidas para publicação sempre o foram por encomenda, por convites de editores ou grupos. E fala também sobre seus livros de ficção e de crítica. O que me pareceu confuso, como disse acima, é a provável inserção de reflexões produzidas para outros fins, artigos talvez, nas respostas às perguntas, que são sempre curtas e objetivas, mas que são respondidas, seja quando fala de seus livros Tatu (de 1983), Martim Fera (de 1984), seja quando discorre sobre Mallarme, Trakl, Eisenstein e Bashô  ou mesmo quando fala do Finnegans Wake, de forma muito caótica e dispersiva. De qualquer forma, aprende-se um bocado sobre sua prática e filosofia de tradução. O livro inclui uma cronologia de sua vida acadêmica, bibliografia e prêmios.  Segue o baile. Vale!
Registro #1572 (perfis e relatos #102)
[início: 16/08/2020 - fim: 20/08/2020] 
"Donaldo Schüler: entrevista", Donaldo Schüler, Dirce Waltrick do Amarante e Marcelo Tápia (organização), Curitiba: Editora Medusa (coleção Palavra do tradutor), 1a. edição (2018), brochura 13,5x19,5 cm, 177 págs., ISBN: 978-85-64029-56-9

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

relatos póstumos de um suicida

Segundo o próprio Cassionei Niches Petry, seus livros "Arranhões e outras feridas", de 2012, "Os óculos de Paula", de 2014, "Cacos e outros pedaços", de 2017, e agora "Relatos póstumos de um suicida", formam um tetralogia, sua tetralogia do fracasso. Nesta sua proposta mais recente ele oferece ao leitor 44 relatos curtos, alguns que podem ser lidos como contos independentes, mas eu vou classificar o volume como novela (problema meu). O leitor é apresentado a um jogo, em que narrador e personagens trocam de papel em algum momento, invertem o protagonismo das histórias. O narrador é um professor que sonha eliminar todos aqueles que detesta, todos aqueles que lhe fazem mal, vive suas misérias, sua rotina, e é assombrado por seus fantasmas. Uma das personagens do livro, apresentada inicialmente como uma de suas ex-alunas, que sonha em aprender a escrever, logo passa a dominar as ações da trama. O narrador tenta convencer o leitor de sua particular leitura da realidade, sobretudo sua idealização do ofício de escrever e de se expressar-se, mas vamos combinar, no mundo real só os neófitos não percebem que no mundo do livro, no mundo da literatura ou do mercado editorial, não há lugar para ingenuidade, bom mocismo ou amor incondicional ao prazer de ler um livro. A ideia e/ou necessidade do suicídio paira sobre todo o livro. Outros temas interessantes também são igualmente perenes: a função do sexo pago na sociedade e, mais que tudo, a armadilha do ensino fundamental e médio (onde ninguém educa de fato, onde todos os atores - alunos, pais, professores e gestores - apenas engana e se esconde ou tergiversa com a hipocrisia da coisa). Descrever mais sobre a trama roubaria do leitor boa parte do prazer de ler o livro. Claro, é um jogo literário. Cassionei explora o sarcasmo de Enrique Vila-Matas, que em muitos de seus livros faz uso recorrente da ideia de "literatura portátil", a jocosa teoria de que na literatura, algo acidental, de um erro de interpretação qualquer, força indivíduos a associar aos grandes acontecimentos do mundo aspectos banais de suas próprias vidas. Enfim, interessante. Mas eu acho que o Cassionei exagera um tanto na tecla do fracasso, da inevitabilidade da ruína no ofício de escrever, força o leitor a ter pena de sua escolha. Na verdade ninguém, nenhum leitor, está nem aí para os medos e fantasmas, ego ou superego, ou sonhos, de qualquer escritor. Assim como Vila-Matas, Cassionei navega entre ambiguidades e ironias portáteis para enfeitiçar o leitor. Divertido, afinal de contas. Vale! 
Registro #1571 (novela #78)
[início: 17/08/2020 - fim: 18/08/2020] 
"Relatos póstumos de um suicida", Cassionei Niches Petry, Porto Alegre: Class, 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 82 págs., ISBN: 978-65-990301-1-6

domingo, 20 de setembro de 2020

à espera dos bárbaros

Noutro dia o Robson Greystoke avisou-me do lançamento de "Waiting for the Barbarians", filme estrelado pelo Johnny Depp e baseado num livro do J.M. Coetzee, prêmio Nobel de literatura de 2003. Eu disse a ele que havia lido o livro há décadas e que era bom. Fui aos guardados e resolvi reler. Coetzee publicou-o originalmente em 1980. O título remete a um famoso poema de Kaváfis. A trama envolve a incompreensão entre os povos, a inexorável passagem do tempo, sobre o quão rude, perverso e mau pode um homo sapiens ser, sobre quanta dor e perdas uma pessoa pode suportar. Em uma fortificação remota, na fronteira quase irreal de um império não nominado, um velho magistrado narra os sucessos da chegada de um destacamento vindo da capital imperial, para os preparativos de uma guerra contra os bárbaros do país vizinho. O magistrado sabe que os tais bárbaros não existem, pois o povo dali é formado apenas por pescadores, pobres agricultores, nômades do deserto, vendedores de artesanato. Seu passatempo é reunir fragmentos de uma antiga civilização que existiu naquela região, vestígios de uma cultura sofisticada e rica, mas que agora é incompreensível. O coronel que lidera o destacamento imperial é um sujeito taciturno, obcecado por cumprir suas ordens, capaz de mandar torturar e matar sem culpa. O jovem oficial que o acompanha, igualmente cruel, sonha antecipadamente com a glória de conquistas que jamais se materializarão. Coetzee descreve a degradação física e moral destes três personagens, que se dá de diferentes formas. Ele contrasta a desonra destes três homens com a de uma garota, presa pelo Coronel imperial em sua primeira incursão ao país dos bárbaros e que pouco compreende a espiral de tragédias na qual vê-se envolvida. A tensão sexual entre ela e o velho magistrado é apenas outra forma alegórica de Coetzee descrever a cumplicidade, mesmo inconsciente, que têm todos aqueles que servem um governo despótico, um sistema judicial corrompido, uma sociedade indecente. O magistrado recupera algo de sua humanidade (no processo em que perde todo seu poder, respeito e amor-próprio), mas a destruição e mortes provocadas pelo império decadente naquela remota colônia permanecerá para sempre (assim como a da antiga civilização sobre a qual o forte foi construído). Coetzee sempre alcança nos ensinar o quão pouco vale a vida de um ser humano, o quão inútil é a presença do homo sapiens neste planeta. Belo livro. Vale!
Registro #1570 (romance #387) 
[início: 20/06/2020 - fim: 28/06/2020]
"À espera dos bárbaros", J.M. Coetzee, tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, São Paulo: Editora Best Seller, 1a. edição (1989), brochura 14x21 cm., 191 págs., ISBN: 85-7123-097-8 [edição original: Waiting for the Barbarians (Londres: Secker & Warburg) 1980]

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

tirar del hilo

O grande Andrea Camilleri morreu em 2019. Como só leio as traduções espanholas e não os originais italianos tenho pelo menos seis livros dele para ler. Dentre estes seis estão o famoso "Riccardino", último volume da série de aventuras do Comissário Montalbano, escrito em 2006, porém programado para ser publicado após sua morte (na verdade os editores italianos publicaram duas versões do Riccardino, pois Camilleri não ficaria 13 anos sem mexer naqueles originais, claro). "Tirar del hilo" foi publicado originalmente em 2016. Camilleri afirma nas notas do final que esse volume recebeu contribuições criativas de Valentina Alferj, pois neste período a cegueira já havia limitado suas ações. A trama não é simples e é deliciosa de se ler. Montalbano, envolvido com a recepção de barcos de refugiados que continuamente chegam ao sul italiano, precisa investigar a morte de uma estilista. Como sempre nas novelas policiais de Camilleri, duas questões sociais e/ou políticas, bem distintas, ocupam a mente do investigador, que acaba encontrando, ao associá-las, a chave da solução de ambas. A questão do excesso de imigrantes/refugiados bem sabe-se que jamais terá solução, enquanto houver desigualdade no mundo e regimes ditatoriais os expulsando de suas casas. Camilleri fala de xenofobismo, da capacidade de amar, da mentira, da hipocrisia. Suas reflexões quase ficam anacrônicas em um romance policial canônico, mas para o leitor tudo é deleite. O título denuncia um eco grego e óbvio, a ideia de um fio - de Ariadne - que levará o heroi (Teseu) a salvar-se do labirinto de Minos. Montalbano, o Teseu moderno, encontra a solução com ajuda de sonhos e uma ariadniana gata (e mais ou menos a abandonará - como Teseu - após sua função, sem maiores problemas). Belo livro. Vamos a ver quando os demais volumes de Camilleri irão aparecer em espanhol. Vamos em frente. Vale!
Registro #1569 (romance policial #97)
[início: 28/07/2020 - fim: 31/07/2019]
"Tirar del hilo", Andrea Camilleri, tradução de Carlos Mayor, Barcelona: publicaciones y ediciones Salamandra, 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 265 págs., ISBN: 978-84-9838-992-0 [edição original: L'altro capo del filo (Palermo: Sellerio editore) 2016]

terça-feira, 15 de setembro de 2020

assombro zen

Marco Aurélio de Souza apresenta neste pequeno volume 38 poemas curtos. Não são exatamente haikus (ou anti-haikus), mas flertam com a estrutura de três versos em uma única estrofe. Nos poemas encontramos a justaposição de imagens e ideias dos haikus tradicionais, mas o mundo imagético de Marcos Aurélio não é aquele idílico, da natureza, do mundo flutuante japonês, antes sim do mundo rude, sujo e barulhento, citadino, contemporâneo, repleto de misérias e cruel, bem nosso, brasileiro (essa proposta estética já se encontrava em seu volume de contos: "Os touros de Basã"). Vamos a ver o que esse jovem paranaense vai inventar no futuro. Deixo aqui uma de suas propostas: "No centro velho a cidade saciada / Regurgita seu fastio / Pipocam putas pelos bares de biombo". Segue o baile. Vamos em frente. Vale!
Registro #1568 (poesia #133)
[início - fim: 07/06/2019]
"Assombro Zen, Marco Aurélio de Souza, Curitiba: Kotter Editorial, 1a. edição (2020), brochura 13x18,5 cm, 88 págs., ISBN: 978-65-80103-87-4

domingo, 13 de setembro de 2020

ricardo aleixo

A coleção "Encontros"  da editora Azougue reúne entrevistas com músicos, filósofos, arquitetos, dramaturgos, poetas e tantos outros artífices do pensamento, brasileiros e latino-americanos. Neste volume, lançado em 2017, encontramos dezenove entrevistas e/ou depoimentos de Ricardo Aleixo, premiado e respeitado poeta mineiro, lá das terras altas do Campo Alegre de sua Belo Horizonte fundamental. As fontes deste material são variadas: nove entrevistas haviam sido publicadas em jornais ou revistas, cinco foram transmitidas originalmente pela televisão, uma pelo rádio e três em meios digitais. Uma última foi gravada pela organizadora da coleção, Telma Scherer, após uma das performances de Aleixo. A mais antiga é de 1996 e a mais recente é de 2014. Como é natural neste tipo de registro, de linguagem informal e que gravita o momento específico da conversa, em algumas encontramos ênfase na história pessoal e influências na formação, noutras é do projeto estético e das técnicas que se fala. Todavia, apesar de temporalmente afastadas por quase duas décadas observa-se notável uniformidade nelas, além de complementaridade, pois a cada entrevista ou depoimento o leitor tem a chance de rever uma ideia, conferir o acerto dos caminhos antes projetados, relembrar um dado biográfico. Enfim, o volume é um fértil depósito de informações que progressivamente se somam. John Cage, ora silente, ora tonante, paira sobre as dezenove entrevistas, soberano, mas Aleixo também rende homenagens às suas, digamos assim, Musas poéticas, que são os laços familiares, Augusto de Campos, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Décio Pignatari, Exu e seus caminhos, o futebol e a música, a ideia e os atos de liberdade, a oralidade. A entrevista que mais gostei é de 2010, foi provocada por Fernando Pérez e Guilherme Ribeiro e publicada em uma revista universitária chilena (clika aqui e lê). Entretanto, como já registrei acima, todas elas são muito boas. Nada supera a leitura de uma obra (e no caso do Aleixo, também a fruição ao vivo de seus atos performáticos, seus cantares poéticos), mas neste volume o leitor tem a chance de aprender algo sobre a formação, processo de criação e estímulos intelectuais de um grande artista brasileiro. Segue o baile. Vamos em frente. Vale!
Registro #1567 (perfis e relatos #101)
[início: 07/10/2019 - fim: 20/09/2020]
"Ricardo Aleixo: encontros", Ricardo Aleixo, Telma Scherer (organização), Rio de Janeiro: Azougue (Coleção Encontros: a arte da entrevista, #54), 1a. edição (2017), brochura 14x28 cm, 248 págs., ISBN: 978-85-79202-16-2

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

los emplazados

Nos idos de março, quando subi para as terras altas de Itaara, em meu isolamento por conta da pandemia, levei um bom estoque de livros. Achei adequado levar alguns de Elías Canetti, sujeito que entendia muito sobre a morte. Pois fiz bem. Alternando Canetti com outros livros e divertimentos alcancei não deixar-me derrotar pela solidão, frio ou medo da morte. Reli as três peças reunidas neste volume: La boda, La comedia de la vanidad e Los emplazados. Como cada uma envolve reflexões muito especiais, farei registros separados delas. "Los emplazados" é de 1964. O título original é Die Befristeten, que dá a ideia de limitação, de algo temporário. Em espanhol se dá a ideia de "colocados", colocar alguma coisa em seu lugar, ou de convocar oficialmente alguém, na tradução inglesa (The Numbered), se enfatiza algo particular da peça, o fato de todos os personagens serem identificados por números, e a tradução publicada no Brasil (Os que Têm a Hora Marcada) talvez se associe mais precisamente ao título original. Bueno. Li essa peça pela primeira vez em 1983, na mesma época em que li "Auto de Fé", o romance fundamental de Canetti. Esta curiosa peça parte de uma situação absurda, distópica, para provocar no leitor/espectador boas reflexões sobre a condição humana. Canetti propõe um mundo (pós-apocaliptico?, pós-científico?), no qual a sociedade é organizada de tal forma que todos, ao nascer, recebem como nome um número, que corresponde aos anos que viverá (esse número é guardado em uma cápsula que todos carregam presas ao pescoço). Assim sendo, trata-se exatamente o contrário da realidade, pois não há em sua proposta dramática a loteria da vida, com a qual estamos suficientemente acostumados, que implica em aceitar que o momento da morte de cada um não é algo previsível. A sociedade é uma teocracia, ou seja, a religião fundamenta o poder político, organiza as leis. Não aceitar a inevitabilidade da morte no ano do seu nome equivale a um anátema, a excomunhão, ao exílio social. "Cinquenta", o protagonista da história, não aceita a ideia de morrer com cinquenta anos e questiona o sujeito responsável por verificar os prazos de vida ("Capsulón", na tradução espanhola). Um terceiro personagem principal, "Amigo", lamenta o desaparecimento de sua irmã, que fugiu da sociedade ao cumprir seus doze anos. A recusa de Cinquenta em aceitar seu destino provoca uma espécie de revolução, o início de uma nova seita, de organização social. Canetti parece antecipar o controle biométrico das pessoas (via implantes de chips no corpo, algo real neste nosso século XXI), de uma espécie de controle técnico do tempo de vida (com os avanços da medicina moderna) e da atração natural entre semelhantes (os jovens - pessoas com números baixos - só se identificam com jovens, os velhos - pessoas com números altos, socialmente admirados - exploram os demais). Filosoficamente, o leitor é apresentado a vários espantos: Seria bom se cada um de nós soubesse antecipadamente nosso tempo de vida?; neste mundo, viveríamos plenamente ou igualmente escravizados?; a ideia da morte e a ideia da vida são especulares, complementares ou contraditórias entre si?; viver ignorante de nosso destino não seria preferível?; em um mundo onde o tempo é propriedade de cada um, não compartilhável, é necessário aprender algo, reproduzir-se, fazer planos?; o mundo onde o medo da morte não existe, é bom? (lembrei de uma passagem do Blade Runner, em que Roy, um dos replicantes, diz a Decker, o humano: "que bom viver com medo!", - teria Phillip F. Dick conhecido esta peça?, a ver!). Grande Canetti. Poucos escritores escreveram tão bem sobre a morte e descreveram tão bem a psiquê de nós, pobres e limitados homo sapiens. Em breve farei registros das outras duas peças reunidas neste volume. Segue o baile. Vamos em frente. Vale!
Registro #1566 (drama #22)
[início: 13/04/2020 - fim: 19/04/2020]
"Los emplazados", Elías Canetti, Barcelona: Muchnik Editores, 1a. edição (1982), brochura 13x20 cm, 260 págs., ISBN: 84-85501-46-2 [edição original: Die Befristeten (München: Deutscher Taschenbuch Verlag) 1964]

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

explora madrid

Já registrei aqui algo das boas lembranças que tenho de Madrid ("Escrito en el cielo", "Guia Madrid diferente"). De tempos em tempos leio algo sobre a cidade. Esse "Explora Madrid" é um volume fartamente ilustrado. Encontramos dezenas de reproduções fotográficas, gravuras, desenhos, pinturas, mapas. Os textos são curtos. Tratam da história e de anedotas, causos populares, lendas urbanas. Não é propriamente um guia turístico, nem tampouco está desatualizado. Os autores tentem a valorizar aspectos não exatamente históricos, antes sim indiscrições, mexericos, fofocas que ficaram populares. Eles também enfatizam que o segredo de um bom turista é ter novos olhos a cada visita, pois os descobrimentos são pessoais, intransferíveis. De qualquer forma, o livro é dividido de forma canônica. Um terço corresponde a geografia e história formal da cidade, descrevendo os vestígios urbanos da Madrid Medieval, da Madrid de los Austrias, da Madrid de los Borbones. Comentários sobre mais de trinta lugares são apresentados em um mapa, o que ajuda o leitor a localizar-se e deambular pela cidade. Os dois terços restantes são divididos em três partes: uma trata de lugares associados a causos bizarros, mortes, assassinatos, as tais lendas urbanas; uma a lugares de encanto, onde amores virtuosos ou proibidos se consumaram; uma última sobre as Tabernas ou Casas mais castizas (genuínas, tradicionais) de Madrid. O livro inclui também uma última seção, onde se fala de curiosidades histórias e apresenta as receitas mais tradicionais da cidade. Por fim, uma farta bibliografia ajuda o leitor curioso a procurar mais informações. O leitor aprende um bocado lendo os ensaios incluídos no livro, mas apenas folheá-lo, com calma, vagabundo, sem medo, já faz a alma um grande bem. Vamos em frente. Vale!
Registro #1565 (turismo #16)
[início: 13/07/2020 - fim: 19/07/2020]
"Explora Madrid", Fátima de la Fuente del Moral e Enrique Fernández Envid, Madrid: Ediciones La Librería, 1a. edição (2017), brochura 21x21 cm, 212 págs., ISBN: 978-84-9873-361-7

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

estudo sobre a carne humana

De Deonísio da Silva, respeitado escritor, professor e filólogo, só conhecia o bom livro de referência "De onde vem as palavras", que partilha espaço em minha biblioteca com os Houaiss e os Aurélios, o Oxford e o Cambridge, os Câmara Cascudo e um punhado de outros mais. Semanas atrás, ouvi uma transmissão do "Universidade aberta", mantido pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre e coordenado pelo professor Sergius Gonzaga, no qual o Deonísio da Silva era o entrevistado. Aprendi um bocado, sobre sua vida, carreira acadêmica e produção literária. Descobri que o sujeito já publicou mais de trinta volumes, entre romances, contos e ensaios (e que já foi várias vezes premiado). Curioso, procurei alguns livros, e resolvi começar pelo mais antigo que encontrei. Em "Estudo sobre a carne humana", de 1975, estão reunidos quatorze contos curtos. Neles transparece um fino leitor de tipos humanos, alguém que sabe incluir nas narrativas, sem sufocá-las, passagens das mitologias, histórias bíblicas, alguma etimologia, curiosos registros de linguagem popular e, sobretudo, o clima tenso e hipócrita dos tempos repressores da ditadura militar. Ele parece navegar por um mar de censores, cuidando o tom, mas sem comprometer as verdades de suas histórias. Há também muito humor nas histórias, que se passam tanto no mundo urbano, citadino, quanto no mundo do campo, periférico, das pequenas cidades. Os temas dos contos são variados. Alguns flertam com causos ou lendas urbanas (a do americano que ao fazer uma pesquisa médica no campo é visto como um vampiro no imaginário do povo, a do destino do dinheiro talvez escondido por um fazendeiro de origem italiana, a do médico inepto que por acaso descobre uma doença real em um paciente, a do diplomata que faz parecer que sabe muito sobre o mundo das mulheres, a do amigo estudante que volta de Paris e conta histórias em um bar, a de uma velha senhora que morre queimada, a de um bastardo "alemão" do norte brasileiro que se entrega a bebida). Outros contos tratam do ambiente escolar, tanto das seculares quanto das confessionais (são onde o sarcasmo domina a narrativa, demonstrando como a experiência pessoal pode se metamorfosear em literatura sem ofender ninguém). Como já registrei acima, o que se destaca em todos os contos é a capacidade de criar personagens (além de provocar o leitor com deliciosos jogos verbais). Lembrei muito do Elias Canetti, de um livro dele onde são apresentados perfis de pessoas, associados a suas características físicas ("O Todo ouvidos"), que li há décadas. É isso, vamos seguir em nosso baile macabro de pandemia. Vale!
Registro #1564 (contos #182)
[início: 13/08/2020 - fim: 18/08/2020]
"Estudo sobre a carne humana", Deonísio da Silva, Curitiba: Editora Hoje, 1a. edição (1975), brochura 12x19,5 cm, 83 págs., sem ISBN

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

aurora bernardini: entrevista

"Aurora Bernardini: entrevista" é o primeiro volume de uma coleção de entrevistas publicada pela editora Medusa, de Curitiba. Aurora Bernardini é italiana de nascimento (1941), mas radicou-se no Brasil na adolescência (1954) e fez carreira universitária na USP, onde foi de aluna (de graduação, mestrado e doutorado, nos anos 1960 e 1970 ) a professora titular. Além das atividades acadêmicas ela também traduziu ou profissionalmente ou apenas por prazer muitos autores, sobretudo italianos e russos, sendo bastante respeitada pela qualidade de seu trabalho. Neste volume estão reunidas basicamente duas entrevistas e um conjunto de exemplos de tradução, comentados por ela. A primeira entrevista é bastante curta, cousa de dez laudas, e é conduzida Andréia Guerini, uma das organizadoras do volume. A segunda entrevista foi conduzida por Leandro Silveira Pereira é bem mais longa (quase quatro vezes mais extensa) e já havia sido publicada na Revista Getúlio, em 2007. Em ambas ela fala algo de sua vida, sua formação, suas escolhas estilísticas, seu amor pela poesia, sua experiência no complicado mundo editorial, entre outros assuntos literários. O tema que mais surpreende o leitor é sua descrição de como envolveu-se na tradução de "boletins amazônicos" produzidos por um conterrâneo seu, o nobre italiano Ermanno Stradelli, um explorador, etnógrafo e folclorista que viveu no Brasil entre os anos 1879 e 1926 (quando morreu, em Manaus). Como ela mesmo diz em algum momento da segunda entrevista, ela o fez porque gostaria de compensar-se da frustração de trazer ao Brasil grandes autores (Velimir Khlébnikov, Boris Pasternak, Marina Tsvetáieva, Luigi Pirandello, Giuseppe Ungaretti), que o público não lê.  Os exemplos de tradução reunidos neste volume são do russo Khlébnikov, do italiano Pirandello, do brasileiro Raduan Nassar e do italiano Eugenio Montale (onde ela se corresponde com um outro grande tradutor brasileiro, o paulista Haroldo de Campos). O livro inclui também uns mimos: um curto ensaio e um apêndice (confusos à beça, pois trata-se de uma comunicação acadêmica sem o aparato visual que deve ter sido utilizado na ocasião); uma longa lista das traduções publicadas por Bernardini; uma relação de alguns de seus artigos artigos publicados em livros, revistas e sites eletrônicos. Ao leitor só resta agradecer a Aurora Bernardini por ser tão diligente e industriosa. Evoé! Em breve registro aqui o outro volume da coleção, entrevistas com o catarinense Donaldo Schüler. Segue o baile. Vale!
Registro #1563 (perfis e memórias #100)
[início: 19/06/2020 - fim: 21/06/2020]
"Aurora Bernardini: entrevista", Andréia Guerini e Sérgio Medeiros (organização), Curitiba: Editora Medusa (coleção Palavra do tradutor), 1a. edição (2018), brochura 13,5x19,5 cm, 116 págs., ISBN: 978-85-64029-57-6

terça-feira, 1 de setembro de 2020

beer

Já contei aqui que há tempos ganhei de presente de don Renato Cohen um pacote com vários livros de arte (Vintage Pictures and advertising), para serem utilizados em fins decorativos. Naquela oportunidade falei de um livro com rótulos de vinhos e cartazes de propaganda de vinícolas (Wine Labels). Esse outro volume é irmão daquele. Agora trata-se de uma coleção de reproduções de garrafas ou latas de cervejas e de cervejarias. Assim como a anterior são um pouco mais de cem reproduções. O leitor perde-se ao folhear o livrinho sem pressa, deixar-se levar pela aventura daqueles rótulos que provavelmente nunca encontrará adornando garrafas reais, que se possa encontrar em uma loja. O design dos rótulos é realmente antigo, acredito que da primeira metade do século passado, ou ainda mais velhos. O leitor pode ter uma amostra do efeito visual dos rótulos neste link Pinterest: clika! Li/vi esse livrinho faz tempo, mas a experiência estética foi agradável o suficiente, prazerosa o suficiente, para que, mesmo nestes tempos dementes e sombrios de pandemia, a vida fosse minimamente tolerável lá nas terras altas de Itaara, onde fiquei cinco meses isolado. Segue o baile. Vale! 
Registro #1562 (livro de arte #36) 
[início - fim: 11/06/2020] 
"Beer: Vintage Pictures and advertising", Hong Kong: Retro Books Team (CookLovers), 1a. edição (2012), capa-dura 14x17,5 cm, 64 págs. ISBN: 978-8562-24766-8