quinta-feira, 10 de setembro de 2020

los emplazados

Nos idos de março, quando subi para as terras altas de Itaara, em meu isolamento por conta da pandemia, levei um bom estoque de livros. Achei adequado levar alguns de Elías Canetti, sujeito que entendia muito sobre a morte. Pois fiz bem. Alternando Canetti com outros livros e divertimentos alcancei não deixar-me derrotar pela solidão, frio ou medo da morte. Reli as três peças reunidas neste volume: La boda, La comedia de la vanidad e Los emplazados. Como cada uma envolve reflexões muito especiais, farei registros separados delas. "Los emplazados" é de 1964. O título original é Die Befristeten, que dá a ideia de limitação, de algo temporário. Em espanhol se dá a ideia de "colocados", colocar alguma coisa em seu lugar, ou de convocar oficialmente alguém, na tradução inglesa (The Numbered), se enfatiza algo particular da peça, o fato de todos os personagens serem identificados por números, e a tradução publicada no Brasil (Os que Têm a Hora Marcada) talvez se associe mais precisamente ao título original. Bueno. Li essa peça pela primeira vez em 1983, na mesma época em que li "Auto de Fé", o romance fundamental de Canetti. Esta curiosa peça parte de uma situação absurda, distópica, para provocar no leitor/espectador boas reflexões sobre a condição humana. Canetti propõe um mundo (pós-apocaliptico?, pós-científico?), no qual a sociedade é organizada de tal forma que todos, ao nascer, recebem como nome um número, que corresponde aos anos que viverá (esse número é guardado em uma cápsula que todos carregam presas ao pescoço). Assim sendo, trata-se exatamente o contrário da realidade, pois não há em sua proposta dramática a loteria da vida, com a qual estamos suficientemente acostumados, que implica em aceitar que o momento da morte de cada um não é algo previsível. A sociedade é uma teocracia, ou seja, a religião fundamenta o poder político, organiza as leis. Não aceitar a inevitabilidade da morte no ano do seu nome equivale a um anátema, a excomunhão, ao exílio social. "Cinquenta", o protagonista da história, não aceita a ideia de morrer com cinquenta anos e questiona o sujeito responsável por verificar os prazos de vida ("Capsulón", na tradução espanhola). Um terceiro personagem principal, "Amigo", lamenta o desaparecimento de sua irmã, que fugiu da sociedade ao cumprir seus doze anos. A recusa de Cinquenta em aceitar seu destino provoca uma espécie de revolução, o início de uma nova seita, de organização social. Canetti parece antecipar o controle biométrico das pessoas (via implantes de chips no corpo, algo real neste nosso século XXI), de uma espécie de controle técnico do tempo de vida (com os avanços da medicina moderna) e da atração natural entre semelhantes (os jovens - pessoas com números baixos - só se identificam com jovens, os velhos - pessoas com números altos, socialmente admirados - exploram os demais). Filosoficamente, o leitor é apresentado a vários espantos: Seria bom se cada um de nós soubesse antecipadamente nosso tempo de vida?; neste mundo, viveríamos plenamente ou igualmente escravizados?; a ideia da morte e a ideia da vida são especulares, complementares ou contraditórias entre si?; viver ignorante de nosso destino não seria preferível?; em um mundo onde o tempo é propriedade de cada um, não compartilhável, é necessário aprender algo, reproduzir-se, fazer planos?; o mundo onde o medo da morte não existe, é bom? (lembrei de uma passagem do Blade Runner, em que Roy, um dos replicantes, diz a Decker, o humano: "que bom viver com medo!", - teria Phillip F. Dick conhecido esta peça?, a ver!). Grande Canetti. Poucos escritores escreveram tão bem sobre a morte e descreveram tão bem a psiquê de nós, pobres e limitados homo sapiens. Em breve farei registros das outras duas peças reunidas neste volume. Segue o baile. Vamos em frente. Vale!
Registro #1566 (drama #22)
[início: 13/04/2020 - fim: 19/04/2020]
"Los emplazados", Elías Canetti, Barcelona: Muchnik Editores, 1a. edição (1982), brochura 13x20 cm, 260 págs., ISBN: 84-85501-46-2 [edição original: Die Befristeten (München: Deutscher Taschenbuch Verlag) 1964]

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