domingo, 20 de setembro de 2020

à espera dos bárbaros

Noutro dia o Robson Greystoke avisou-me do lançamento de "Waiting for the Barbarians", filme estrelado pelo Johnny Depp e baseado num livro do J.M. Coetzee, prêmio Nobel de literatura de 2003. Eu disse a ele que havia lido o livro há décadas e que era bom. Fui aos guardados e resolvi reler. Coetzee publicou-o originalmente em 1980. O título remete a um famoso poema de Kaváfis. A trama envolve a incompreensão entre os povos, a inexorável passagem do tempo, sobre o quão rude, perverso e mau pode um homo sapiens ser, sobre quanta dor e perdas uma pessoa pode suportar. Em uma fortificação remota, na fronteira quase irreal de um império não nominado, um velho magistrado narra os sucessos da chegada de um destacamento vindo da capital imperial, para os preparativos de uma guerra contra os bárbaros do país vizinho. O magistrado sabe que os tais bárbaros não existem, pois o povo dali é formado apenas por pescadores, pobres agricultores, nômades do deserto, vendedores de artesanato. Seu passatempo é reunir fragmentos de uma antiga civilização que existiu naquela região, vestígios de uma cultura sofisticada e rica, mas que agora é incompreensível. O coronel que lidera o destacamento imperial é um sujeito taciturno, obcecado por cumprir suas ordens, capaz de mandar torturar e matar sem culpa. O jovem oficial que o acompanha, igualmente cruel, sonha antecipadamente com a glória de conquistas que jamais se materializarão. Coetzee descreve a degradação física e moral destes três personagens, que se dá de diferentes formas. Ele contrasta a desonra destes três homens com a de uma garota, presa pelo Coronel imperial em sua primeira incursão ao país dos bárbaros e que pouco compreende a espiral de tragédias na qual vê-se envolvida. A tensão sexual entre ela e o velho magistrado é apenas outra forma alegórica de Coetzee descrever a cumplicidade, mesmo inconsciente, que têm todos aqueles que servem um governo despótico, um sistema judicial corrompido, uma sociedade indecente. O magistrado recupera algo de sua humanidade (no processo em que perde todo seu poder, respeito e amor-próprio), mas a destruição e mortes provocadas pelo império decadente naquela remota colônia permanecerá para sempre (assim como a da antiga civilização sobre a qual o forte foi construído). Coetzee sempre alcança nos ensinar o quão pouco vale a vida de um ser humano, o quão inútil é a presença do homo sapiens neste planeta. Belo livro. Vale!
Registro #1570 (romance #387) 
[início: 20/06/2020 - fim: 28/06/2020]
"À espera dos bárbaros", J.M. Coetzee, tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo, São Paulo: Editora Best Seller, 1a. edição (1989), brochura 14x21 cm., 191 págs., ISBN: 85-7123-097-8 [edição original: Waiting for the Barbarians (Londres: Secker & Warburg) 1980]

2 comentários:

Paulo Sousa disse...

Grande Guina!
O enredo do livro me remeteu a outro clássico, no caso "O deserto dos tártaros", a mítica saga do Tenente Drogo à espera de uma nunca chegada invasão ao forte para onde foi destacado. Do Coetzee só li "Desonra", já há alguns anos, mas foi um livraço de leitura. Pretendo por mais dos autor nesses meses finais de 2020 pra dar algum requinte a esses dias tenebrosos...Evoé!

Aguinaldo Medici Severino disse...

Paulo meu querido, como vais? Estamos vivos, mesmo após esses seis meses dementes. Segue o baile. Acompanho de longe tuas postagens, tuas leituras. Bela sequencia de leituras você tem mantido. Preciso ler o "Deserto dos Tártaros". Tenho uma edição vagabunda daquelas da RioGráficaEditora, capa cor de rosa, folhas amarelas, mas foi a que eu li, lá nos anos 1980. Talvez seja o caso de reler. Putabraço. Tudo de bom.