Foi Jesús González, amigo de Tres Cantos, perto de Madrid, na Espanha, quem me falou de Belén Gopegui pela primeira vez. Já faz um bom par de anos que isso aconteceu. Comprei dois livros dela (Tocarnos la cara e A escala de los mapas) mas, ai de mim, claro que deixei nos guardados para ler um outro dia e esqueci deles. Noutro dia encontrei este "O pai da Branca de Neve", uma edição robusta e bem cuidada da Minotauro e não me furtei em comprar e, desta vez, começei a ler de pronto. É um romance engajado, um romance político, em que se defende uma tese sobre o comportamento de uma sociedade complexa, como é o caso da espanhola. A abordagem (quase marxista, lembrando os temas, não a forma, daqueles vetustos romances do Jorge Amado, quando ainda era filiado ao partidão), a princípio me irritou, mas acabei me acostumando com o ritmo e com a narrativa. Acho mesmo que é a linguagem, a forma de apresentar o livro, que dá estofo a ele. Gopegui utiliza protótipos de cartas, diários, cadernos de notas, relatórios de trabalho, num mosaico de registros distintos daquilo que é vivido na história. Ao invés dela emular diálogos reais, Gopegui parece registrar aquilo que pensamos e preparamos antecipadamente para falar com alguém mas acabamos não falando e sim guardando conosco. Ela dá voz até a um coletivo de organismos, algas microscópicas, em contraste com indivíduos, homo sapiens sapiens, que convivem ora harmoniosamente, ora conflituosamente, na turbulenta Madrid de meados dos anos 2000. Seu livro foi publicado às vésperas da grande crise financeira americana de 2008, cujos desdobramentos escancaram os problemas espanhóis (bolha imobiliária, crédito barato mal administrado, baixa produtividade, educação deficiente, desemprego estrutural, conservadorismo entranhado), que podemos acompanhar facilmente pelos jornais hoje em dia. Até que ponto um artista consegue emular de fato uma realidade? Os personagens de Gopegui (duas famílias mais ou menos comuns, de classe média) se envolvem em um processo de produção de algas comestíveis e fixação de carbono. As preocupações ecológicas, a rotina de assembléias dos grupos de discussão, lembram um tanto aquilo que vemos ativamente nas redes sociais de comunicação contemporâneas, uma espécie de militancia revisitada, menos orgânica e marcial que as experiências utópicas do século XX. Na utopia inventada por Gopegui o personagem mais torturado, dilacerado, é o "Pai da Branca de Neve", ou seja, um sujeito sobre o qual nada sabemos, mas sobre o qual, como no conto de fadas original, podemos depositar toda a culpa pelos aborrecimentos e perigos pelos quais passam os demais personagens do livro (os voluntariosos ecologistas que se esforçam por dar sua cota de trabalho e tempo para tornar o mundo um lugar melhor), papel talvez similar a heroína do conto de fadas, a "Branca de Neve". Não sei se a literatura tem este poder de transformar o mundo diretamente, servindo de modelo de comportamento. De qualquer forma a proposta de Gopegui não é piegas. O livro se deixa ler com prazer. As propostas de transformação social, que são públicas, e os medos privados dos indivíduos, que são apenas homens afinal de contas, covardes passíveis de pena quase sempre, são discutidos em grande estilo e invenção. Ainda voltarei aos demais livros dela que escondi na minha prateleira. É tempo. [início 21/04/2012 - fim 23/05/2012]
"O pai da Branca de Neve", Belén Gopegui,
tradução de Miguel Serras Pereira, São Paulo: editora Minotauro (edições 70, grupo Almedina), 1a.
edição (2011), capa-dura 14,5x22 cm, 378 págs. ISBN:
978-85-63920-03-4 [edição original: El Padre de Blancanieves (Madrid: editorial Anagrama) 2007]
Um comentário:
Ôxi, meu pai.
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